Sendo o calendário uma construção cultural, muito embora muitos povos
tenham tomado a natureza como parâmetro para elaboração destas marcas do tempo,
é uma forma do Homem se situar no mesmo, localizando acontecimentos, podendo
julgá-los por critérios de anterioridade, posterioridade e simultaneidade. Como
construção histórica, pois, sofre as interferências dos seres humanos e se
adéqua a diversos interesses. Um exemplo, dentre tantos, é o calendário
revolucionário francês, dando denominações aos meses de forma a rememorar a
Revolução de 1789. A
institucionalização de um feriado exemplifica essa busca de controle do tempo
pelo Homem, uma vez que se constitui como um momento de suspensão do cotidiano
em que se demarca algum evento especial. Há, portanto, uma pausa no ritmo
diário do trabalho e da dinâmica do dia-a dia para a realização das
comemorações.
A comemoração pretende exorcizar o esquecimento de modo que os
organizadores das festas revolucionárias procuram, anualmente, afirmar a revolução,
ensinando-a a quem não a conheceu diretamente.
Passemos às comemorações do aniversário de morte de João Pessoa.
Inicialmente, faz-se importante recorrermos ao projeto de lei que alterou o
calendário da Paraíba, instituindo o 26 de julho como feriado estadual, o ato
instituinte:
Projecto Nº 1- A Assembléia Legislativa do Estado da
Parahyba, Resolve:- Art. 1º- Considera-se feriado estadual o dia vinte e seis
de julho, em homenagem ao inolvidável presidente João Pessoa. Art 2º-
Revogam-se as disposições em contrário. Assembléia Legislativa da Parahyba, 12
de agosto de 1930. (a)- Argemiro de Figueiredo.
Em sessão legislativa do dia anterior à apresentação desse projeto, os
deputados haviam votado e aprovado um minuto de silêncio em homenagem à memória
de João Pessoa. No dia seguinte, era apresentado o primeiro de tantos outros
projetos que criavam lugares de memória do presidente morto. Como
ocorreria em setembro de 1930, com a apresentação do projeto que propunha a
mudança do nome da capital, o autor da propositura que alterava o calendário
cívico da Paraíba, foi o deputado campinense Argemiro de Figueiredo, cujo
perfil político já fizemos notar no segundo capítulo desse trabalho. No dia 27
de agosto de 1930, ocorrera a primeira discussão do projeto. No dia seguinte, o
deputado Generino Maciel recomenda que o mesmo seja enviado à Comissão de
Justiça, sendo aprovado, por unanimidade dos votos, na sessão do dia 3 de
setembro, e sancionado pelo presidente Álvaro de Carvalho, como Lei nº 702, de
9 de setembro de 1930.
Foi, sem sombra de dúvida, a primeira intervenção oficial na construção
da memória de João Pessoa e da “Revolução de 30”, demonstrando que, como
fizeram os franceses, “a alteração do
calendário pode ser tomada como um exemplo extremo de que controlar o tempo se
torna essencial ao poder”. A partir de então, essa data, expressão de lugar
de memória, se transformaria, anualmente, em “festa capaz de mobilizar uma cidade ou parte dela, interrompendo o
funcionamento das instituições públicas, a rotina de trabalho, alterando o
fluxo e o movimento das ruas...”[4]
Tomando por base a institucionalização do feriado de 26 de julho,
buscamos compreender a criação e a apropriação feitas por parte do Estado,
desse lugar de memória, dando visibilidade maior, já que é a proposta
desse capítulo, ao papel das escolas paraibanas e às práticas desenvolvidas no
dia do aniversário de morte do ex-presidente João Pessoa.
Partindo da idéia de um Estado
Nacional centralizado, após 1930, cuja intervenção no ensino de História se
fazia notar no currículo, que primava pelo realce aos vultos da Pátria,
colocam-se alguns questionamentos: Como foi possível celebrar e comemorar um
“herói” paraibano? Que práticas culturais-simbólicas compunham a programação
dessas festas cívicas? Qual o papel da escola nesse universo simbólico da
comemoração?
O nacionalismo era a tônica da Era Vargas. Sendo dessa forma, João Pessoa
passa à condição de “herói” nacional como uma construção histórica da Aliança
Liberal. A documentação que analisamos, é enfática em mostrar a imagem de João
Pessoa como “vulto da pátria”, como “herói” da História nacional. Senão,
vejamos:
(...)Seus passos ficaram marcados na história
nacional e só a lembrança do seu nome equivale a um depoimento
justificativo da sua superioridade. (...) É que esse homem foi um assombro da pureza
republicana, tendo pela Pátria um culto inverossimilhante alto e
absorvente. Foi por ele que os olhares do Brasil se fixaram na Paraíba,
tornada, então, barreira aos desmandos de uma época mais do que calamitosa para
o país.
Esse trecho é bastante relevante no tocante à inserção de um mito que
veio reafirmar a identidade de um povo bravo e resistente, o paraibano, mas no
contexto do Estado Nacional centralizado. Essa era a visão de mundo do grupo da
Aliança Liberal na Paraíba, que buscava articular-se ao quadro político
nacional. Por outro lado, tudo que o varguismo queria, era evitar os
regionalismos em favor do nacionalismo, daí, parece que a solução encontrada
para a questão de alguns mitos regionais, era cultuá-los como “heróis da
Pátria”. Assim também ocorreu, na mesma época, com o mito dos bandeirantes, de
modo que o “passado bandeirístico
legitimava ainda a dominação paulista frente ao Brasil, porque havia sido o
bandeirante quem dilatara a pátria, implantando uma conduta disciplinadora pela
ação guerreira e mística”.
Mas, desta feita, o bandeirante aparece nitidamente como “herói da
Pátria”.
Outra questão interessante, na citação acima, é a utilização da memória
mitificada de João Pessoa como forma de legitimar o regime republicano,
sobretudo, da segunda república. A documentação que trabalhamos, é rica em
afirmações que buscam uma linearidade de “heróis” que sempre lutaram pela
república, desde os tempos coloniais até o presidente João Pessoa. Reiterar a
paraibanidade, heróica e republicana, estava sempre na ordem do dia, como
podemos perceber a seguir:
João Pessôa, pelo cunho excepcional das circunstâncias
que lhe cercaram a ação e o sacrifício e pelo sentido grandioso e profundo da
sua atitude perante a história política do Brasil, avançou sôbre o futuro.
Antecipou-se á consagração da posteridade. Póde-se dizer que, na mesma hora em
que êle tombou, fez-se em torno do seu nome êsse halo de imortalidade e de
glória que circunda um Tiradentes, um Miguelinho, um Frei Caneca. Um
dêsses símbolos impressionantes e eternos do idealismo e da bravura do homem
consubstanciado numa causa libertária e generosa.
Pelo visto, o discurso acima enunciado, tem uma conotação bastante
predestinada, João Pessoa parece escrever o futuro, à luz de mitos do passado.
Fazendo uso da epígrafe com que abrimos esse ponto de nosso trabalho, não
podemos pensar nas festas cívicas sem as remetermos para a sua função
pedagógica. A historiadora Iara Lis Souza, analisando as festas cívicas, no
contexto da transição do Brasil colonial para o Império, alude ao fato de que “essa festa de intenso teor político
precisava dizer algo, dirigir-se ao povo, enviando-lhe uma mensagem sobre o
assunto da separação entre Brasil e Portugal”. E afirma que “este gênero de festa tinha horror ao nada
dizer ou conseguir comunicar, ao vazio, ao silêncio dos espectadores ou a sua
recusa em participar.
Tais comemorações, portanto, objetivavam, no caso citado pela autora
e, com a participação da população, a consolidação do processo de adesão à
figura de D. Pedro I.
A pedagogia das festas comemorativas da memória de João Pessoa, como o
“herói da Revolução de 1930”,
também tinha uma mensagem a passar, como forma de dar legitimidade ao Estado
Nacional varguista e seus representantes no controle do aparelho de estado
paraibano. Colar na imagem mítica de João Pessoa tinha por finalidade
justificar os governos que foram se sucedendo de 1930 a 1945. Com o artigo
escrito por José Fernandes de Luna, para o Jornal A União, podemos
exemplificar a questão:
Não é necessário ser muito perspicaz para reconhecer o
traço de semelhança que há entre o nosso atual interventor e o presidente
João Pessôa. Como êste, Ruy Carneiro experimentou anos de lutas e
sacrifícios até alcançar a posição de relêvo que hoje desfruta. Desde os dias
agitados da campanha redentora de 1930, esse jovem governante tem pautado as
suas ações pelos princípios sadios e humanitários do Grande Presidente. Como
êle, ainda, Ruy Carneiro e o seu povo fortalecem a coluna altiva da Democracia
Brasileira, lutando pela União Nacional em tôrno de Getúlio Vargas, para que
o Brasil progrida num ambiente de tranqüilidade e mútua compreensão.
Nessa citação, vemos o caso do estabelecimento da continuidade histórica
entre Ruy Carneiro e João Pessoa, mas a documentação oficial é farta dessas
bricolagens presente-passado com os outros interventores/governador, a saber:
José Américo (1930), Antenor Navarro (1930-1932), Gratuliano de Brito
(1932-1934), Argemiro de Figueiredo (1935-1940) e o próprio Ruy Carneiro
(1940-1945). Outra questão perceptível na referida citação é a reprodução, nos
estados, do projeto político-ideológico do Estado Nacional. Os interventores
serão coadjuvantes na reiteração do nacionalismo autoritário, sobretudo, a
partir de 1937, com o golpe do Estado Novo. Em resumo: a cada ano que se
celebrava o aniversário de morte de João Pessoa, havia a legitimação do governo
paraibano e da ideologia do Estado Nacional varguista.
Festejava-se por toda parte, do recinto de várias instituições à praça
pública. Esta se torna lugar privilegiado para as comemorações cívicas, uma vez
que “educa” as pessoas que não freqüentavam as escolas, misturando, num espaço
único, uma diversidade de sujeitos: alunos, famílias, autoridades e a
população, de um modo geral. Constitui-se um método educacional de vasto
alcance e preenche as expectativas dos organizadores das festas.
AS PRÁTICAS COMEMORATIVAS SOBRE JOÃO PESSOA
Falar em organizadores das festas suscita entrarmos na discussão das
outras questões propostas anteriormente: as práticas constitutivas das
comemorações e o papel das instituições em tais festejos, sobretudo, a
instituição escolar.
Pelo que pudemos apurar, a sistematização das festas cívicas do 26 de julho,
na Paraíba, estava a cabo do Centro Cívico “João Pessoa” e do Estado, como
instituições diferentes, porém, compostas, basicamente, pelas mesmas pessoas.
Nossa leitura conceitual de Estado, nessa análise, fundamenta-se na
teoria do marxista italiano Antonio Gramsci. Partindo da noção de Estado
Ampliado, Gramsci entende o Estado abrangendo tanto o aparelho
repressivo (sociedade política) quanto os aparelhos ideológicos (sociedade
civil), sendo que, ambos, de uma forma ou de outra, cumprem a missão de produzir
e reproduzir a hegemonia.
É o que podemos ver no pós-1930, na Paraíba, com a devida cautela nos
usos dos conceitos. Tanto a sociedade política quanto a sociedade civil estavam
mobilizadas para manter a hegemonia do
bloco histórico vitorioso após a “Revolução de 1930”. No caso das festas
cívicas do 26 de julho, a sociedade civil participa de forma atuante,
destacando-se, na organização das comemorações. Dentre suas instituições,
podemos apontar: o Centro Espírita “Tomaz de Aquino”; as escolas (Escola de
Aprendizes Artífices, Academia de Comércio “Epitácio Pessoa”, Liceu Paraibano,
Colégio Diocesano, Instituto Comercial “João Pessoa”, apenas para citar as mais
importantes); a Associação Paraibana de Imprensa; a Rádio Tabajara; a Rádio
Club da Parahyba; o Jornal A União; a Igreja Católica; os sindicatos e
associações (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Cimento, Cal e Gesso,
Centro Beneficiente Paraibano, Centro Proletário “Alberto de Brito”, Liga
Beneficiente Operária, União Beneficiente do Trabalhador, Aliança Proletária
Beneficiente, Sociedade Literária Ruy Barbosa); entidades de Cultura e Desporto
(Sport Club “João Pessôa”, Liga Suburbana de Desporto, orfeões, bandas de
músicas, etc).
Todas essas instituições, além de participarem das festas na praça
pública, também realizavam sessões cívicas no interior de seus recintos.
Fazia-se questão de noticiar o ato cívico, pelas páginas oficiais do Jornal A
União.
No primeiro ano após a morte de João Pessoa, as comemorações tiveram uma
dimensão de largas proporções, certamente porque ainda era bastante recente o
fato. Houve programação por uma semana inteira, cada dia reservado a um
determinado setor da sociedade. A praça pública tornou-se um espaço de pretensa
unidade e, ao mesmo tempo, de segmentação. Isso porque o Estado, com o fim de
tornar coletiva a memória de João Pessoa, e assim, buscar legitimar-se,
procurava apoio nos diversos segmentos sociais. Interessante observarmos a teia
de relações institucionais construída no momento de comemoração cívica do 26 de
julho. Poderíamos resumir dessa forma: escola-Estado, sindicatos-Estado,
militares-Estado, Associação Comercial-Estado, Funcionários públicos-Estado e
Igreja Católica-Estado. Nessa teia de relações, havia espaços que funcionavam
de forma simbólica. Como vimos no quadro acima, cada dia estava reservado à
comemoração por parte de determinados setores da sociedade. Sendo assim, cada
grupo social, ao realizar a romaria ao Altar da Pátria, partia de um espaço
material e simbolicamente representativo de seu grupo e/ ou classe. Por
exemplo: os estudantes, professores e diretores ficavam próximos ao Altar da
Pátria, de fronte à Escola Normal, a fim de recepcionarem o interventor e sua
comitiva oficial, que traziam a efígie de João Pessoa para colocá-la no referido
altar. Os operários e trabalhadores, de um modo geral, partiam da Praça do
Trabalho; as “classes armadas” tomavam como ponto de partida os quartéis; os
comerciantes, por sua vez, saiam da Associação Comercial; o clero e Associações
de Caridade reuniam-se na catedral;
todos em direção ao Altar da Pátria, rumando ao encontro da efígie do mito João
Pessoa e dos representantes do Estado que lá estavam.
Se o objetivo dos organizadores das festas era promover a coesão social
em torno de um elemento congregador, o culto à memória de João Pessoa, por
outro lado, podemos perceber nitidamente a segmentação social, demonstrada pela
programação, cada qual no seu canto, em seu lugar institucional, mas de acordo
com uma “ordem”.
A maior demonstração dos usos político-ideológicos das festas cívicas do
26 de julho pode ser vista na idéia de continuidade histórica da obra de João
Pessoa. Ao passo que se cultuava o mito, também se homenageava os governantes
da época, como seguidores das práticas “modernas” de administração do
presidente morto. No Jornal A União, podemos observar que, ao lado da
fotografia de João Pessoa, estava o interventor federal que estivesse no cargo,
na ocasião. Celebrava-se o morto e homenageava-se o vivo, aquele que podia
realizar a “grande obra” do presidente João Pessoa. Também podemos ver,
sobretudo nos primeiros anos das comemorações do 26 de julho, os governantes
aproveitando o feriado mítico para inaugurações de obras, mais precisamente,
aquelas que João Pessoa iniciara. Na semana de comemorações em 1931, no dia 26
de julho, o interventor Antenor Navarro inaugurou o Pavilhão do Chá e a Ponte
do Mulungú, divulgou a continuidade da construção da obra do Hotel Parahyba e
assinou o contrato para a construção do Porto de Cabedelo, todas as obras,
apostas no periódico oficial como a continuação do programa de governo de João
Pessoa.
As comemorações, porém, não se restringiam à Paraíba. Na capital federal,
o Presidente da República, Getúlio Vargas, e comitiva faziam uma romaria ao
cemitério São João Batista, cultuando a memória de João Pessoa, diante do
monumento erguido em homenagem ao ex-presidente da Paraíba.
A partir de 1932, as festas eram realizadas apenas no dia 26 de julho, em
diversas instituições, e em vários municípios paraibanos. A programação se
iniciava com a “missa de réquiem”, seguida de uma romaria em direção ao Altar
da Pátria.
Nesse ano, o 22º BC, símbolo da tomada do poder em 1930, quando os
insurretos iniciaram o movimento na Paraíba, desfilou nas ruas do Rio de
Janeiro entoando o hino de João Pessoa. Pelo que podemos analisar, tomando como
contexto a rebelião paulista de 1932,
a memória do ex-presidente paraibano era por demais
utilizada como demonstração de apoio do Norte ao governo Vargas. De modo que,
do ponto de vista simbólico, o desfile representava de que lado estava a
Paraíba naquele conflito, o apoio a Vargas, que se fez, inclusive, no plano
militar, quando o interventor Gratuliano de Brito enviou tropas da Polícia
Militar da Paraíba a fim de combaterem os paulistas.
O Altar da Pátria se constituiu como lugar sagrado e
cívico, santificando João Pessoa para legitimar seus herdeiros políticos no
controle do aparelho de Estado paraibano. As pessoas adoravam o altar de João
Pessoa, tal qual adoram, nas igrejas, o Santíssimo Sacramento. Se tratava de
uma construção imponente, iluminada, na qual, na base, se encontrava uma imensa
efígie de João Pessoa. No centro, podemos ver a Bandeira do Nego, já no seu
formato atual, como uma representação da Paraíba sobressaindo-se perante os
demais estados que se encontram, ordenadamente, em placas, na torre do referido
altar. É um símbolo do nacionalismo varguista, da pretensa união dos estados em
torno do projeto desenvolvido por Getúlio, após o movimento de 1930, e a
reestruturação do novo Estado nacional brasileiro.
Em 1933, devido à proximidade da inauguração do
monumento a João Pessoa, o qual analisamos no segundo capítulo, a comemoração
oficial ocorreu de forma mais simples, resumindo-se à tradicional “missa de
réquiem”, romaria ao Altar da Pátria e discursos. De 1934 a 1945, após a
celebração religiosa na catedral, a romaria tomava o rumo da Praça João Pessoa,
comemorando ao pé do monumento do ex-presidente. “Cada cidadão permanecerá ao pé da estátua cerca de meia hora, em
turmas previamente organizadas”[10],
sendo que havia inscrições, na sede do jornal oficial do governo,
para quem se dispusesse a participar do ritual da guarda ao monumento.
Após esse breve histórico, retomamos à questão da sociedade civil
paraibana e à reprodução da ideologia dos grupos dominantes, utilizando as
festas cívicas de forma pedagógica.
Vamos começar com a imprensa. A Rádio Tabajara, órgão estatal, criada em
1937, durante o governo Argemiro de Figueiredo, além de transmitir, ao vivo,
toda a programação dos festejos do 26 de julho, na praça pública, dedicava um
programa em homenagem a João Pessoa, intitulado “A Hora do Grande Presidente”.
Em alguns municípios do interior, a transmissão de suas festividades era
operada pela tradicional difusora local. Além do rádio, que se constituía como
veículo de propaganda oficial, também atuavam os jornais, merecendo destaque o
estatal A União e o jornal católico A Imprensa. Pelo que pudemos
averiguar no trabalho de investigação que realizamos, sobretudo no primeiro, a
partir do dia 23 de julho de cada ano, o periódico iniciava as notícias das
comemorações, com convite do governo e do Centro Cívico e sinalizando com a
programação. Passado o dia 26, continuava a divulgar matérias sobre o evento,
inclusive, transcrevendo cópias de telegramas recebidos de demais municípios,
comunicando sobre a realização de rituais cívicos. Nos primeiros anos, o Jornal
A União ainda trazia, na primeira página, a foto do ex-presidente João
Pessoa, de corpo inteiro.
Martha Falcão Santana realça o papel da imprensa no governo Argemiro de
Figueiredo (1935-1940), melhorando o parque gráfico do Jornal A União,
inaugurando a Rádio Tabajara e criando serviços radiofônicos nos municípios
paraibanos, transmitindo sua palavra meia hora antes do programa “Voz do
Brasil”. A autora ainda destaca trecho de um discurso de Argemiro, no qual
enfatizava o papel educativo da referida emissora de rádio.
As religiões também se colocavam como aparelhos ideológicos, nesse
particular. Além do Centro Espírita “Tomaz de Aquino”, que realizava sessão
solene naquela instituição, era a religião Católica o grande baluarte das
comemorações cívicas. Nesse momento, a instituição vinha em processo de
reconciliação com o Estado, após a “separação” ocorrida legalmente com a
Constituição de 1891. No início da Era Vargas, com o Manifesto dos Pioneiros da
Escola Nova, que defendia uma escola laica, pública, gratuita e nacional,
verificou-se a oposição de setores católicos, como era de se esperar.
Entretanto, no ministério de Capanema, Estado e Igreja Católica se reaproximaram.
Poucas eram as solenidades que não começavam por uma missa pela alma de
João Pessoa. O início da programação das festas na capital sempre se dava com a
“missa de réquiem”, assim que amanhecia o dia 26 de julho. Na maioria delas,
era o próprio arcebispo, o celebrante. Da catedral metropolitana, autoridades e
população realizavam uma romaria em direção ao monumento do ex-presidente.
A preocupação com as classes trabalhadoras, por parte do governo, fica
evidente no tocante à participação de associações e sindicatos na programação
cívica do 26 de julho. Reproduzindo o que ocorria a nível nacional, o Estado se
colocava como árbitro das questões envolvendo patrões e empregados, justamente
para evitar a luta de classes. Igreja, Estado, escolas, meios de comunicação,
etc, se encarregavam de difundir a propaganda anti-comunista e veicular como
“ideal” os princípios totalitários circulantes no cenário internacional.
Em diversos municípios da Paraíba, no auge do argemirismo, foram
implantadas Comissões Nacionais de Propaganda Sisthemática contra o Comunismo,
das quais muitos membros eram professores, médicos, padres, jornalistas,
advogados, dentre outros profissionais liberais.
No primeiro ano da comemoração, o proletariado prestou homenagem à
memória de João Pessoa, ao colocar, na Praça do Trabalho, um bloco de pedra
pesando vinte e duas toneladas. Neste bloco, foram apostas uma coroa de louro e
uma placa de bronze, cujos dizeres aludiam à homenagem dos trabalhadores
paraibanos ao presidente morto. Houve uma solenidade, inclusive, com a
participação do interventor, ao transportar-se o referido bloco da estação da “Great
Western” para a citada praça.
Eliete Gurjão ressalta que as relações entre os trabalhadores operários e
os dois primeiros interventores ocorreram, relativamente, de forma amistosa,
tendo se alterado a partir de 1934/1935, durante o governo de Argemiro de
Figueiredo. Para a autora:
(...)
o culto à memória de João Pessoa de certa forma, unia a classe subalterna ao projeto
político da interventoria. Acrescente-se o impacto das obras contra as secas e
a decretação das leis trabalhistas como instrumentos de persuasão incutindo a
imagem do Estado protetor.
Logo após o
movimento de outubro de 1930,
a interventoria promoveu um Congresso Operário, cuja
abertura foi solenemente revestida de uma homenagem à memória de João Pessoa. O
Jornal A União assim se reporta
àquele momento:
Instalação onte-ontem no Teatro Santa Rosa do
Congresso Proletário, na ocasião o retrato de João Pessoa envolvido com os
pavilhões da República e da Paraíba, occupava no recinto o logar de maior
destaque. O senhor Fiúza Lima, que presidiu a sessão, pediu que todos
permanecessem de pé, por um minuto, em silêncio como homenagem ao grande e
inolvidável estadista sacrificado pela inveja e pelo ódio dos poderosos de
então e ainda como reverência a memória dos proletários mortos na Revolução.
Fazemos coro com Eliete Gurjão, ao demonstrar o quanto a memória de João
Pessoa era utilizada, ideologicamente, como forma de unir a classe subalterna
ao projeto político do bloco dirigente. Entretanto, arrisco a hipótese de que
os segmentos das classes trabalhadoras não eram massas de manobra, e sim,
quando não resistiam sabiam negociar ao ler os jogos de interesses e dele
tirarem proveito.
Pelo visto, e pesquisado, sempre as classes trabalhadoras participavam da
festa oficial. Em 1937, na efervescência da repressão e às vésperas do golpe do
Estado Novo, o Centro Beneficiente Paraibano se fizera representar nas
comemorações, por intermédio de um discurso de Lourenço da Graça, orando como
representante do operariado. Repetiu a participação nos anos de 1938 a 1943, até onde
pudemos apurar. Para Eliete Gurjão (1994, p. 169), os
(...) dirigentes de entidades operárias, a partir de
então (período da repressão argemirista), sempre aparecem nas cerimônias
oficiais, ao lado das autoridades, cooptados, portanto, pelo regime, fornecendo
a impressão de que ele contava com o respaldo popular. Complementando o
trabalho ideológico, constantemente eram realizadas conferências nas escolas,
nas associações operárias etc, como parte da intensa campanha cultural contra o
bolchevismo.
Exemplo mais significativo foi a participação do líder do Partido
Comunista, na Paraíba, João Santa Cruz de Oliveira. Nas comemorações de 26 de
julho de 1938, às 18 horas, fechavam a solenidade oficial, na Praça João
Pessoa, os discursos de João de Deus Mindêllo, Luis Pinto e João Santa Cruz de
Oliveira. Estava o comunista participando da mesma festa organizada pelo
interventor Argemiro de Figueiredo, três anos depois de ser preso por este, na
chamada Intentona Comunista. Fica aberta a questão: será que as lideranças
trabalhistas não tiravam algum proveito ao participar do teatro do poder? Por
segmentos das classes populares participavam da festa oficial?
A arte também cumpriu seu papel nas festividades do mito João Pessoa. O
cinema, por exemplo, ao mesmo tempo veio reafirmar com louvor a memória do
ex-presidente. Nas comemorações de 1935, foi exibido, nos cinemas da capital, o
filme “A vida pela liberdade”, película que documentava os acontecimentos
vividos em 1930. O porta-voz oficial assim se reportava sobre a exibição;
A fim de exhibir num dos nossos cinemas o film “A Vida
pela Liberdade” encontra-se nesta capital, vindo da Bahia, o Sr. Alcides de
Souza. Essa pellicula, que docummenta os acontecimentos que encheram dias de
agitação e de soffrimentos, vividos pela Parahyba, merece ser vista pela
população pessoense, que venera a memória do seu Grande Presidente.
No dia seguinte, o jornal oficial noticiava mais uma nota sobre os usos
do cinema na socialização da memória histórica de João Pessoa. Anunciava que,
no Cinema “Rio Branco”, por deliberação do seu diretor, Einar Svendsen, seriam
projetadas as películas dos funerais de João Pessoa bem como das suas viagens
aos estados de São Paulo e Minas Gerais, durante a campanha da Aliança Liberal.
Em 1939, o filme dos funerais voltou a ser exibido, conforme divulga o
periódico estatal.
Assinala Mona Ozouf (1988, p.219) que
(...) as festas da Revolução são festas faladas, muito
mais do que festas mostradas ou representadas (...) Acolhem intermináveis
discursos, encarregados de precisar seu alcance histórico. São sempre
cuidadosas em limitar o desvio da interpretação, confiando a uma guarnição de
cartazes e bandeiras, nos seus cortejos, o sentido dos grupos que desfilam.
(...) A decoração, pouco confiante em sua pedagogia tácita, necessita de
palavras para estabelecer sua adequação à cerimônia. Sente-se que importa menos
a essas festas renovar uma emoção do que fixar uma narrativa. (Grifos
nossos).
Evidentemente que a autora está se referindo às festas de comemoração da
Revolução Francesa. Isso não implica dizer que não possamos pensar o caso da
“Revolução de 1930”,
à luz desse referencial. Talvez possamos fazer um reparo à frase final da
citação, no sentido de que se renovava a emoção social para fixar a narrativa.
Comemorar João Pessoa e a “revolução”, anualmente, no 26 de julho,
passava por práticas festivas demasiadamente faladas. O poder da retórica se
fazia operante no sentido do fazer crer. Em todos os espaços
institucionais, desde a pregação do arcebispo, passando pelas preleções
escolares e a festa na Praça, havia uma numerosa gama de discursos. No entanto,
como fez notar Ozouf, as palavras não eram pronunciadas sem um acompanhamento
decorativo, os símbolos e o embelezamento da festa funcionavam de forma a se
juntarem ao poder das palavras, no sentido de fixar a narrativa e assegurar a
compreensão da mensagem.
Pelo que podemos perceber, da documentação colimada, os custos
financeiros das festas cívicas do 26 de julho não eram ônus apenas do aparelho
de Estado. Havia contribuições de toda parte. Em 1931, por exemplo, os
funcionários da Prefeitura da Capital, da alfândega, os operários da Pedreira
Cobé, estavam na lista de “patrocinadores” da Semana de João Pessoa. Os grupos
populares, quando não contribuíam diretamente com as festividades, empenhando
determinadas quantias, acabavam arcando com os custos de uma consolidação da
memória histórica, cujos objetivos eram legitimar um governo das elites. Isso
porque havia uma mercantilização de símbolos, a fim de cobrir as despesas com a
construção de lugares de memória. A título de exemplos, cabe-nos citar a
venda do retrato de João Pessoa para ser utilizado nas lapelas, e de
bandeirinhas do “Nego”, cujos recursos, em tese, destinavam-se à construção do
arco do triunfo. Também com o mesmo destino, foram postos à venda 800 folhetos
biográficos de João Pessoa, de autoria do Dr. José Euclides.
O Jornal A União também
traz as seguintes notas publicitárias: “A
manteiga ‘JOÃO PESSOA’ encontra-se á venda em toda parte”;
“Comer só manteiga ‘JOÃO PESSOA’ é ter
amor á saúde;”
“Addicione todas as manhãs ao café, um
pouco de manteiga ‘JOÃO PESSOA’ e verão que bebida deliciosa.” Deduzimos, pois, que devia se tratar de um pequeno negócio privado, mas que se
apropriou da marca simbólica de poder preponderante naquele momento. Devem os
liberais tê-la consumido demasiadamente! Em suma: o 26 de julho na
Paraíba fez parte de um conjunto de tradições inventadas objetivando legitimar
o mito João Pessoa como o ícone fundamental para o projeto político advindo em
1930.