Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)
Antes
de mais nada, gostaria de dizer da minha indignação com o assassinato do garoto
Everton e do inocente Batista e que seja feita justiça, punindo todos os
envolvidos de acordo com a legislação vigente. Estou iniciando esse texto,
fazendo essa justificativa, porque circula pelas redes sociais comentários do
tipo que eu estaria mais preocupado em defender as religiões de matriz
afro-ameríndias do que mesmo com a morte brutal do garoto. O que não é verdade,
pois, indiscutivelmente, toda uma região está de luto e há uma revolta coletiva
com o assassinato do garoto e, sobretudo, pela forma fria, calculada e selvagem
como se deu. Quando escrevi o primeiro texto, esbocei uma preocupação política que
circula no entorno do lamentável fato. E volto a escrever para reforçar minha
preocupação.
Estive
em Sumé e Serra Branca entre ontem e hoje. O assunto não é outro senão esse. A
revolta das pessoas é perfeitamente compreensível, contudo, ouvi de várias bocas
a reprodução discursiva das notícias que circulam nas mídias televisiva, radiofônica
e digital. Após a conclusão da investigação policial na qual alguém que se
denomina e é denominado “pai de santo” confessa os detalhes do macabro ritual,
tem se acentuado o discurso que relaciona o ocorrido em Sumé com as religiões
de matriz afro-ameríndias. Defendo que devemos repudiar e punir o sacrifício de
Everton sem cair na generalização, no desconhecimento e no preconceito para com
os umbandistas, candomblecistas e juremeiros do Brasil, de modo geral e do Cariri,
de modo específico.
Acompanhado
de mais dois professores do CDSA-UFCG, fui conversar com os pais e mães de
santo que entrevistamos para o projeto que coordeno junto ao Ministério da
Cultura. Fomos prestar solidariedade e formalizar apoio e parceria entre a
universidade e os terreiros. Um deles nos contou que no trabalho tem ouvido
vários tipos de preconceitos, coisa do tipo “isso é coisa de macumbeiro”. O
preconceito é uma construção histórica e cultural, principalmente em uma região
colonizada juntamente com a ideologia da Igreja Católica, mas o conhecimento
histórico, antropológico e sociológico deve desconstruir determinados estereótipos
identitários.
Os
terreiros de Pai Inacinho, Madame Jô, Sandra e Antonio Graxuá (Sumé) e de Pai
Washington, Pai Lima e Pai Dinei (Monteiro), até onde pude perceber são de
tradição umbandista cultuando os orixás (na tradição afro) e os mestres, boiadeiros
e caboclos (na tradição da jurema). Na Umbanda ocorrem sacrifícios de animais e
oferendas como bebidas, cigarro, flores, perfumes, comidas de santo (acarajé, arroz,
farofa, abóbora, frutas, etc). Os rituais mais realizados são as festas aos
orixás e a entrega de oferendas no mar (caso de Yemanjá), no rio (caso de Oxum)
ou na pedreira (caso de Xangô). No ritual da jurema, o toque envolve o uso do
cachimbo e bebidas, pois os mestres, boiadeiros, preto-velhos e índios vêm ao
terreiro para beber e dançar. Nos trabalhos realizados a pedido de consulentes
e filhos da casa, os casos mais procurados são relacionados ao amor e são
feitos com maçã, mel, fitas coloridas, bonecos de pano, champanhe e cigarro ofertados
a exu e pomba gira. Portanto, desconheço a existência de práticas de
sacrifícios humanos em rituais de Umbanda e Candomblé. Se alguém o faz,
acredito que não são práticas condizentes com a tradição afro-ameríndia que
conhecemos, cultuamos e respeitamos.
Outro
ponto importante a ser destacado se refere ao fato do processo de iniciação e
feitura de um pai e mãe de santo. Para ser considerado Babalorixá (pai de
santo) ou ialorixá (mãe de santo), o iniciado faz oferendas aos seus orixás de
cabeça e passam alguns dias trancados no quarto do santo (peiji, camarinha)
tendo contato apenas com a mãe da casa. Em alguns terreiros são raspados e
catulados. No dia da saída do quarto ocorre uma festa na qual uma mãe, um pai e
uma madrinha de santo lhe entrega um anel de búzios (espécie de anel de
formatura), uma faca (mão de faca=significa que agora ele ou ela já podem
cortar para o orixá) e o presidente da Federação de Cultos Afros entrega um diploma.
A partir daquele momento, aquela pessoa que estava em obrigação no quarto do
santo se torna babalorixá ou ialorixá e, apenas, a partir de todo esse processo
de ritualização da feitura do santo, essa pessoa pode abrir um terreiro e pode
ser considerado pai ou mãe de santo. O terreiro tem que ser vinculado à
Federação e esta expede um documento permitindo a abertura da casa.
Essa
é a forma de tradição religiosa que defendemos contra o preconceito e a
intolerância religiosa. E essa tradição não tem nada a ver com charlatões nem
sacrifícios humanos. Entretanto, o que está ocorrendo no Cariri é a imediata
vinculação do ritual nefasto sobre o sangue de Everton com as boas tradições
umbandistas e candomblecistas. Isso não ajuda muito, pois consciente ou
inconscientemente, reforça o preconceito religioso e ainda incorre num erro
grosseiro de generalização por desconhecimento.
Espero
que o caso seja inteiramente elucidado e punido pela policia e pela justiça,
mas que não cometamos violência simbólica para com os terreiros do Cariri
Paraibano que já sofrem pela invisibilidade e demonização. Não esqueçamos que
pelo Brasil a fora terreiros têm sido invadidos e o povo do santo também tem
sido violentado fisicamente. Espero e apelo, ainda, que a mídia que tem dado
tanto destaque ao fato abra espaço para que o conhecimento possa explicar as
religiões afro-ameríndias por um prisma da desconstrução de equívocos e
estereótipos e que os diretores de escolas e gestores municipais cumpram as
Leis 10.639 e 11.645 que obrigam a inclusão da História da África e da cultura
afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares. A falta de conhecimento
leva à cegueira, às generalizações e visões de mundo preconceituosas. Espero e conclamo, ainda, que após as conclusões das investigações, as Federações de Cultos
Afros no estado da Paraíba possam se pronunciar sobre o ocorrido em Sumé e
apoiar os terreiros caririzeiros.