terça-feira, 17 de novembro de 2020

“LUGAR DE FALA” E INTELECTUAL BRANCO

 





José Luciano de Queiroz Aires

Me chamo José Luciano de Queiroz Aires, professor de História do Brasil pela UFCG, militante da Resistência/PSOL e do ANDES-SN, tutor do PET História, trabalhador, branco, nascido e vivido por mais de 27 anos no campo, portanto, filho de agricultor/mangaero e professora primária/dona de casa. Nunca fui muito apegado à roça, sofria de asma e meus pais diziam que “eu tinha nascido para estudar”. Frequentei a vida toda o ensino público e gratuito, do primário ao doutorado e meus pais fizeram de tudo para que eu conseguisse fazer um curso superior. Vim para Campina Grande fazer a Escola Normal em 1989 e depois o curso de História em 1994 morando na casa dos outros. Chorava horrores, porque queria mesmo o aconchego do lar familiar que ficava há 130 Km de distância, no sítio Campo Grande. Com muita luta consegui me formar em História, quando, aos 18 anos, já era professor da rede estadual de ensino. Fiz mestrado e doutorado sem bolsa e trabalhando na universidade, fazendo da migalha de professor substituto um verdadeiro milagre que custeasse os estudos e a reprodução da minha força de trabalho. Hoje coordeno projeto de extensão na Comunidade Quilombola do Grilo e faço parceria política com o Movimento Negro de Campina Grande.

Não pretendia escrever um parágrafo tão carregado na primeira pessoa do singular, mas fui provocado por um professor universitário negro a escrever esse texto. Na última semana recebi um convite da Escola Nossa Senhora de Lurdes, da cidade paraibana de Cajazeiras para proferir uma palestra para estudantes do Ensino Médio cujo título era “A CONDIÇÃO NEGRA NO BRASIL ONTEM E HOJE”. Ao postar o card do evento no meu instagran- (a imagem que abre esse texto)-, um professor universitário negro comentou o seguinte: “lugar de fala meu querido, chama alguém negro para falar”. Após essa intervenção, voltei ao livro de Djamila Ribeiro, ao qual já havia lido antes do brilhante texto de Sílvio Almeida escrito para a mesma coleção.

Embora tenha uma série de divergências teórica e política com Ribeiro, às quais não cabem aqui serem apontadas, penso que o livro dela não caminha nessa direção que virou senso comum, a de que apenas pessoas negras possam falar, pesquisar e estudar a questão racial. “Lugar de fala”, segundo ela, não é um conceito para se aplicar a uma análise individual, mas aos grupos historicamente excluídos e marginalizados pelo o lugar que ocupa na sociedade que distribui privilégios para uns e exclusão para outros. Tampouco parece a autora pretender “proibir” que intelectuais de grupos sociais brancos possam falar sobre raça e racismo. Nesse sentido, o professor que exigiu minha retirada da palestra em nome do conceito de “lugar de fala”, ou não leu, ou não compreendeu muito bem o livro da Djamila Ribeiro.

Iniciei o texto numa concepção individual justamente para mostrar o equívoco do professor ao tratar da questão. Mas se fosse o caso de entender o assunto de forma individual, advogaria minha legitimidade na exposição da palestra, pois apesar de ser branco e nunca ter sofrido racismo, sou um professor de História do Brasil que estuda e ministra aulas sobre todos os temas, inclusive raça e racismo e sou intelectual orgânico sensível às causas do povo negro brasileiro e do combate ao racismo. E até o dia em que for bem recebido pelo Movimento Negro e pelas Comunidades Quilombolas, este intelectual branco estará fora de seu gabinete universitário e marchará ombro a ombro com homens e mulheres negras que tanto sofrem discriminação nesse país que pretende transmitir a ideologia da democracia racial como sua identidade nacional.

Agora pretendo transformar o singular em plural, o individuo em grupos e classes sociais. Somos homens e mulheres brancos pobres, a maioria absoluta do povo da região do meu Cariri Paraibano viveu e vive excluída, marginalizada, explorada e oprimida. São agricultores, donas de casas, meeiros, moradores, vaqueiros, sem terra, explorados pelos herdeiros de uma estrutura colonial agroexportadora e escravagista do império da casa grande. Muitos da minha geração sequer conseguiram assinar o nome, outros foram no limite da conclusão do Ensino Médio, pouquíssimos concluíram um curso superior e menos ainda conseguiram se tornarem mestre ou doutor. Tantos e tantos tiveram que migrar para o sul do país em busca de emprego. A maioria de nós, homens e mulheres brancos da classe trabalhadora foi privada de qualquer privilégio na estrutura social pelo seu condicionamento classista. Ou seja, ser branco não significa automaticamente privilégio e poder, pois o lugar que ocupa na estrutura capitalista de produção é de pobreza, desigualdade e exploração social. A historiadora Maria Silvia de Carvalho Franco já percebia isso para o século XIX quando estudou os homens brancos livres pobres na ordem escravocrata. Contudo, quando essa classe trabalhadora tem gênero e raça não branca, o peso estrutural da opressão e exploração é muito maior do que em relação aos trabalhadores brancos, pois se apresentam sobre suas costas o peso de mais duas estruturas além do capitalismo: o patriarcado e o racismo.

Precisamos cada vez mais complexificar as análises e fugir de binarismo e maniqueísmo do tipo HOMEM x MULHER, HETEROSSEXUAL x LGBTQA+, BRANCOS x NEGROS, BURGUESIA x PROLETARIADO. Até porque, na realidade concreta da estrutura social, temos a classe com gênero (burguesia, classe média e proletariado- homens, mulheres e LGBTQIA+); o gênero com classe (homens, mulheres e LGBTQIA+- burgueses, proletários e de classe média); a classe com raça (burguesia, proletariado e classe média- não brancos); a classe com raça e gênero (burguesia, proletariado e classe média branca e não branca, heterossexual e LGBTQIA+, homens e mulheres). Isso implica dizer não existem grupos homogêneos por simples oposição a outros igualmente constituídos como se fossem sujeitos universais em identidades generalizantes. Cada combinação entre classe, raça e gênero permite adentrar a complexidade do tecido social sem cair na superficialidade, na fragmentação e na guetificação. Se por um lado é verdade que a situação estrutural pesa muito mais sobre as mulheres negras da classe trabalhadora, explorando-as e oprimindo-as, por outro lado, também são alçados à condição de subalternos os homens negros da classe trabalhadora e os homens e mulheres brancas da classe trabalhadora. Na hierarquia dos privilégios, contudo, os homens negros pobres estão em posição de exploração de classe e opressão de raça, mas não gênero; já as mulheres brancas trabalhadoras sofrem exploração de classe e opressão de gênero, sem a opressão racial; enquanto os homens brancos trabalhadores sofrem exploração de classe, mas não podem sentir as opressões de gênero e de raça. No geral, esse conjunto complexo constitui um grande grupo subalterno e é composto pela a maioria da população do planeta explorada e oprimida, guardadas as devidas gradações hierarquizadoras.

Sendo assim, sairíamos todos ganhando politicamente se soubéssemos juntar os 99% do planeta em uma pauta revolucionária anticapitalista, antipatriarcado, antirracista, ecossocialista e laica. Até porque, como afirma Silvio Almeida, o racismo é uma estrutura e não se resume a comportamentos individuais ou funcionamentos institucionais, porque indivíduos e instituições reproduzem o racismo que organiza, distribui privilégios e opressões aos grupos com base no critério racial. Na concepção do autor citado, “além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. (ALMEIDA, 2019, p. 50) Temos que transformar as estruturas e isso requer unidade na diversidade, lutas conjuntas sem perder as pautas específicas e movimento de rua, radical e multitudinal.

Evidentemente que as falas negras em uma sociedade racista e herdeira do legado da escravidão são alijadas de posições hegemônicas em exercício como a produção intelectual, justamente pelo condicionamento estrutural/sistêmico, o “lugar de fala”, na terminologia usada Djamila Ribeiro. E vejo com muita alegria que intelectuais negros sejam alçados cada vez mais à condição de escrever grandes livros, fazer grandes pesquisas e falar muito para toda a sociedade. Aliás, já temos bons nomes no Brasil, como Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Clovis Moura, Luís Gama, Carolina Maria de Jesus, embora ainda seja um número pequeno, porém, em crescimento. Isso não dispensa a fala de grandes intelectuais brancos de esquerda como Florestan Fernandes e Roger Bastide que produziram obras clássicas sobre a questão de raça/classe para o Brasil Capitalista. Ou de um Alberto Banal, intelectual branco, europeu que coordena um trabalho importantíssimo no processo de titulação das terras quilombolas paraibanas.

Conforme aponta Sílvio Almeida (2019, p. 110), “o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real. O fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos que a população negra esteja no poder”. Primeiro, porque uma pessoa negra “empoderada” pode não significar um representante que verbalize as demandas por igualdade racial em relação ao seu grupo de pertença; segundo, porque, mesmo havendo certo compromisso entre as pessoas negras em espaço de poder para com seu grupo racial, isso não significa que elas terão poder necessário para transformar as estruturas políticas e econômicas que se servem do racismo para promover e reproduzir as desigualdades. Nesse particular, acredito que a teoria marxista e o movimento negro ganham, reciprocamente, se dialogar na perspectiva estrutural e materialista, no plano teórico e político. O primeiro, incorporando com força a questão racial na sua teoria e prática política e o segundo, se abrindo para a leitura racial em chaves do materialismo histórico e dialético e emparedando a luta antirracista com a anticapitalista e a luta de raças marchando nas mesmas ruas com a luta de classes.

 Isso implica que ativistas brancos proletários, não sejam jogados fora da luta antirracista, pois o gueto e a fragmentação servem ao sistema. Desde que brancos ou não brancos, falem, gritem, lutem para derrubar o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Eu estou nessa linha. E pretendo continuar falando sobre a questão racial, apesar dos equívocos de quem quer me fazer calar.

 


terça-feira, 13 de outubro de 2020

PATRIARCADO E CAPITALISMO: SOBRE O CASO DE MISOGINIA NA UFCG


 

José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Quem falou que homem não pode se meter no tema do feminismo? Pois bem, sou homem, professor de História da UFCG e pretendo me manifestar sobre a postura misógina do colega do curso de Engenharia Elétrica realizada em paginas de redes sociais. Não creio que haja necessidade de reproduzir aqui o conteúdo por ele apresentado, inclusive por já ter viralizado nas próprias redes e ser do conhecimento da ampla maioria das pessoas.

Antes de mais nada, é preciso ampliar a escala de análise no tempo e no espaço, pois esse não é um caso isolado, nem descolado de uma estrutura macroscópica. O patriarcado precede o capitalismo, mas a situação da maioria das mulheres piorou, consideravelmente, com o surgimento do Modo Capitalista de Produção. Nas sociedades pré-capitalistas a divisão do trabalho se circunscrevia ao âmbito de uma economia doméstica na qual as mulheres possuíam um papel importante juntamente com os homens e a economia girava em torno da casa. O capitalismo separou a economia doméstica da economia de mercado, a casa se distanciou da fábrica e as mulheres trabalhadoras passaram a sofrer a exploração econômica e social no chão fabril, sem se libertarem das funções tidas como “femininas”, da “rainha do lar” e “boa mãe de família”. Nesse sentido, há uma enorme diferença entre as condições de ser homem ou ser mulher na sociedade capitalista, pois à (maioria absoluta) delas coube, até hoje, a função da reprodução social no âmbito do lar, trabalho esse, desqualificado e não remunerado. Mais importante para o mundo da produção e circulação de mercadorias.

Junto a essa base material da estrutura capitalista, de suas relações sociais e da sua divisão do trabalho, a burguesia do século XIX encravou um processo ideológico que definia subjetivamente uma concepção de família patriarcal e heterossexual. Ancorada e justificada na ciência moderna, o homem foi classificado como um “ser racional”, “viril” e “forte”, portanto, “naturalmente” determinado para a vida pública, para o mundo lá fora; por outro lado, a mulher foi classificada como um “ser emotivo”, “sexo frágil”, portanto, “por sua essência e natureza” determinada à vida privada. Ser mãe, esposa e dona de casa eram as atribuições que “combinariam” com o gênero feminino. Não custa lembrar que essa ideologia se transforma em força material quando essas representações são essencializadas, naturalizadas e postas em prática. A função da ideologia em Marx é justamente essa.

Por essas é que entendemos o quão estrutural é a questão. O caso do professor misógino da Engenharia Elétrica da UFCG reproduz essa ideologia da família burguesa vitoriana do século XIX. Em geral os próprios cursos de engenharia nas universidades, além de outros, revelam um racismo e um machismo institucionais quando me parece haver uma exclusão de homens negros e de mulheres nos seus corpos docentes. E não me venham aqui falar em meritocracia!

As instituições também não são ilhas incomunicáveis com a terra. Na verdade, elas reproduzem no seu interior as estruturas societárias mais amplas, a exemplo do capitalismo, do patriarcado e do racismo. E pouco fazem para combater essas vigas poderosas que teimam em continuar apesar das lutas sociais e de algumas conquistas de direitos por elas trazidos.

O que nos espanta é um professor universitário botar seu corpo no século XXI e sua cabeça no XIX e achar que os homens trabalhadores executam as mais “nobres” e “pesadas profissões”, enquanto as mulheres trabalhadoras “reclamam da vida” por ter que lavar a louça, trocar a fralda do bebê e fazer o almoço todos os dias. Quando sabemos que muitas mulheres trabalhadoras, durante os mais de três séculos de capitalismo, são exploradas pelos patrões, fazem as máquinas gerar riqueza para eles e ainda não se libertaram da opressão patriarcal, da tripla jornada e da violência doméstica. A propósito, é por achar que o corpo da mulher é propriedade privada do homem, por não aceitar uma traição ou o fim de uma relação que muitos casos de feminicídio se arrastam em estatísticas alarmantes e ainda omissas, apesar da lei Maria da Penha.

Se essas mulheres trabalhadoras forem racializadas, a exploração econômica e o machismo serão reforçados pelo peso do racismo estrutural. Hoje podemos ver muitas delas trabalhando nas funções mais precarizadas do mundo do trabalho, ainda tratadas como escravas, recebendo salários menores do que os dos homens. Essa divisão é propositiva do capitalismo, dividir a maioria das classes e grupos subalternos.

O que fazer? Do meu ponto de vista, continuar combatendo em três frentes, mas no mesmo campo de luta. A emancipação das mulheres, também deve caminhar nas mesmas ruas antirracistas e anticapitalistas, pois, embora devamos fazer notas de repúdios, abrir processos em comissão de ética, lutar por uma lei no parlamento, etc, creio que são paliativos e que, embora importantes, não resolverão o problema que, como formulado por Ângela Davis, é de gênero, raça e classe.  Talvez, uma tarefa número zero fosse derrotar o bolsonarismo, movimento que possibilitou os neofascistas saírem do armário e acreditar que tudo podem dizer e fazer. Mesmo que esse tudo saia da mão de um docente universitário que deve se orgulhar de seus projetos no ramo da engenharia mas resiste em lavar sua própria cueca.

 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

THAMMY MIRANDA, A NATURA E A ESQUERDA





Prof. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Temos acompanhado pelas redes sociais a polêmica em torno da escolha da Empresa Natura pela imagem do homem trans, Thammy Miranda, para a campanha publicitária do Dia dos Pais. O que as forças de esquerda poderiam e deveriam dizer sobre a temática?

Em primeiro lugar, um intelectual marxista fiel aos ensinamentos dos pais do materialismo histórico e do feminismo socialista russo da primeira onda, tem por dever político e teórico, articular luta de classes com luta de gênero e outras lutas, pois a emancipação dos 99% da humanidade deverá ser realizada com a complexidade da análise teórica e a unificação das classes e grupos subalternos na mesma frente de combate. Temos que lutar contra o capitalismo, mas também contra o racismo, o patriarcado e a lgbtfobia. Portanto, os partidos políticos e movimentos sociais e populares mistos, devem sair na defesa de Thammy Miranda, pois isso significa o combate à transfobia.

Por outro lado, não me parece adequado à esquerda sair na defesa da Empresa Natura, pois o nosso engajamento deve ser com os trabalhadores e trabalhadoras desta e de todas as empresas capitalistas. Cabe ressaltar que os empresários vivem de extração de mais valor e superexploração da força de trabalho, muita dela, realizada por mulheres, por negros e negras, por imigrantes e refugiados. Trabalho sem direitos substantivos, já que as contrarreformas trabalhista e da previdência se encarregaram de aprofundar o trabalho intermitente, sem a garantia da aposentadoria futura e da proteção jurídica de uma legislação do trabalho no presente.

Hoje mesmo eu li postagens no facebook nas quais as pessoas, na melhor das intenções, digo isso porque saíram em defesa dos e das pessoas trans, defenderem o não boicote ou o “não cancelamento” à Natura. Alguns até fizeram campanha incentivando o consumo de seus produtos no dia dos pais. Embora tenha entendido perfeitamente as justificativas das pessoas que saíram em defesa de Thammy, creio que defender a empresa capitalista que explora homens e mulheres, não é nossa tarefa. Até porque, não há nenhum engajamento político das empresas e dos empresários na pauta das opressões se não fosse o lucro obtido em um mercado segmentado que tem mercadoria para oferecer às mais diversas identidades sociais. Nesse caso, LGBT são tratadas, ideologicamente, no capitalismo, como meras consumidoras. Na outra ponta, dificilmente pessoas trans, lésbicas ou gays assumidos, serão contratados no mercado quando tiver que concorrer com homens e mulheres heterossexuais na hora da entrevista.

Outra crítica que algumas pessoas fizeram a Thammy Miranda foi realizada no sentido de ele ter, supostamente, votado em Bolsonaro. Nesse ponto, acredito que a melhor saída não seria atacá-lo com discursos transfóbicos, mas problematizarmos as razões que levaram massas de explorados e oprimidos a optarem por um projeto político que é a sua própria destruição. A esquerda, nesse momento de crise profunda no planeta, deverá ter a sabedoria de trabalhar no sentido de reverter esse quadro no qual massas populares aderiram à extrema direita.
Como historiador socialista e marxista, deixo aqui meu repúdio a toda forma de preconceito. Thammy Miranda é mais do que um indivíduo, é a personificação das pessoas trans que derramam sangue nas ruas do Brasil. A essas, nós de esquerda temos que ficar juntos, sobretudo, nos tempos neofascistas que vivemos. Meu repúdio igualmente ao sistema capitalista, materializado, nesse caso, na Empresa Natura, exploradora do Dia dos Pais, data hegemonicamente patriarcal e heterossexual, agora também alargada para outras tipologias de famílias, como forma de “inclusão” pelo consumo e não pela emancipação política. Não será defendendo esse tipo de inclusão mercadológica e publicitária que iremos acabar com o machismo, o racismo e a lgbtfobia no Brasil e no mundo. O capitalismo devora gente, tritura trabalho e vomita mercadoria alienada a ser consumida. O cheiro desse tipo de perfume fede bastante em muitos corpos.

sábado, 25 de julho de 2020

AS DORES DA EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA


José Luciano de Queiroz Aires
Historiador UFCG

Um semestre já se foi de tanto trabalho docente à distância. Seminários, lives, reuniões administrativas, orientações, escrita de artigos e muita leitura. Talvez essa tenha sido, até aqui, a realidade de todos nós professores. Ou seja: muito trabalho. Mas confesso que já não aguento tantas dores. A começar pela da alma, aquela que nos angustia, que nos deprime, que nos isola, que nos estressa; as dores da solidão, dores que mediação técnica nenhuma pode curar, pois necessitamos do calor afetuoso da presença das pessoas. Somos o animal social.
A tela do computador, com aquela fotografia de ícones da distância ao final de nossas atividades, me causa dores profundas, pois lembro com saudade daquelas pessoas da convivência coletiva presencial do nosso cotidiano universitário. O máximo que consigo para suprir a saudade é ter que se contentar com uma imagem e a voz que me chegam por meio da reprodutibilidade técnica. Mas como assinalava Walter Benjamin, para a arte e a cultura de um modo geral, a técnica tem o poder de retirar a aura dos bens culturais em favor da cópia massificadora dos mesmos. Fazendo com ele uma analogia, se a aura se esvai quando da substituição da presença das pessoas nos espetáculos teatrais e a técnica permite que os artistas cheguem as nossas casas por meio do rádio e do cinema, algo semelhante acontece com a nossa educação quando muitos intelectuais relativizam a defesa do encontro aurático na universidade em favor das possibilidades técnicas do home office.
Antes que o leitor me acuse de “dinossaurico”, gostaria de dizer que não sou contra o uso das tecnologias para fins educativos e políticos, desde que não esqueçamos duas condições fundamentais: que elas não podem substituir a realização presencial de assembleias, aulas, eventos acadêmicos, sindicais, partidários, etc; assim como também não podemos esquecer que a técnica não é neutra, mas política e ideológica. No caso atual, de tempos de crise total, as plataformas digitais aparecem para muitos como a saída para o desemprego. Contudo, como demonstrado nas pesquisas dos sociólogos Ricardo Antunes e Ruy Braga, a uberização do mundo do trabalhado tem se intensificado pelo grande capital a fim de extrair mais valor de uma fração cada dia mais precarizada do proletariado mundial. E nós docentes não estamos livres dessa sanha burguesa, pois em muitas universidades e faculdades pelo mundo a fora já impera a figura do “professor horista”, aquele que ganha por seu trabalho intermitente e sem quaisquer garantias de direitos trabalhistas. Minha dor nesse momento é aumentada porque acredito que essa realidade travestida de modernização no mundo do trabalho, nem começou, nem parece terminar com o corona vírus. Pelo contrário, os burgueses estão cada vez mais de olho na possibilidade de fazer da educação à distância uma realidade generalizada e lucrativa. O pior é que muitos professores e estudantes universitários, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, sancionam essa situação sem maiores resistências. Privatizados na sua consciência, olham para si como uma fração de classe média, procuram saídas individuais e se afastam de projetos coletivos, inclusive se retirando dos sindicatos e se afastando das assembleias da categoria. Esquecem apenas que, se a universidade pública, gratuita, presencial e de qualidade desparecer, eles também sucumbirão nos escombros com todo resto de tecnologia que ainda tiver debaixo do braço. 
Além das dores da alma, o semestre de 2020 tem causado muitas dores físicas a todos nós. Isolados em casa também deixamos de praticar alguma atividade física e ficamos mais sedentários do que nunca, o que implica em acometimento de doenças. Porém, com a mesa de trabalho repleta de atividades para cumprir. Recentemente participei de um seminário com carga horária de 20 horas, para o qual tinha que dedicar mais que o dobro para preparar a exposição. Sentado à frente de um computador, 4 horas todas as tardes, durante uma semana. Assim como os outros dois companheiros docentes com os quais dividi a atividades, terminamos muito cansados, exaustos, na verdade. Dores musculares, dores na coluna, fadiga, cansaço pela repetição dessa modalidade super desgastante que é fazer o papel de tutor da EAD. Adoecimento, na verdade, é o que nos causa o já sistema produtivista implantado nas universidades, sobretudo, nos programas de pós-graduação. Multiplique esse adoecimento docente, físico e psíquico, nesses tempos de pandemia. Problemas familiares com covid; no caso das mulheres, jornada tripla de trabalho em função de também desempenharem o trabalho remoto enquanto mãe, mais uma vez sentada à frente de uma tela para acompanhar seus filhos; pressão da burocracia universitária pela volta do semestre de forma à distância; um governo neoliberal e neofascista ameaçando os direitos que ainda restam; o recurso financeiro que temos que retirar do nosso salário para adquirir equipamentos que as universidades não oferecem. 
Tomara que escapemos desse imperativo do reinado do burocratismo doentio e que juntos possamos tomar a vacina produzida pela ciência e pela universidade pública para ficarmos imunizados aos vírus, incluindo nesses o vírus capitalista do trabalho uberizado e o vírus político encarnado naqueles que representam os interesses desse modo de produção. 
Estou ansioso para encontrar as pessoas na universidade, conversar, abraçar, beijar, debater, fazer política e produzir conhecimento histórico com qualidade pedagógica. A presença sempre gratificante e acalentadora das pessoas. Isso faz bem à saúde. 

quinta-feira, 25 de junho de 2020

EM TEMPOS DE PANDEMIA, MESTRADO AMEAÇADO DE FECHAR EM CAMPINA GRANDE!?

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires

Escrevo esse texto para que fique como documento para a posteridade. Nele, quero expressar uma posição política em relação à ameaça de fechamento do Mestrado em História da Universidade Federal de Campina Grande. Como membro permanente do referido programa de pós-graduação não me omitirei em tomar partido em uma conjuntura de crise societária/sanitária tão brutal como a que vivemos.
Nosso Mestrado foi criado em 2006 e já passou por várias avaliações na toda poderosa CAPES sem, contudo, ter conseguido sair do conceito 3 (três). Eu não fui da fundação, pois cheguei ao corpo docente da UFCG apenas em 2010 e, mesmo vinculado à Unidade de Educação do Campo/CDSA/UFCG, entrei para o quadro do PPGH como colaborador e depois membro permanente. Entre 2014/15, passei a fazer parte da Unidade Acadêmica de História por meio de redistribuição.
Durante esse tempo em que atuo no PPGH/UFCG não é a primeira vez que ouço falar que nosso mestrado pode fechar e que nós é que temos que impedir essa tragédia. A burocracia em vez de contestar o modelo draconiano e quantitativista da CAPES dos tempos da ditadura, opta por quase crucificar a nós docentes, colocando sobre nossas costas o peso da responsabilidade e o ônus da culpa caso não consigamos atingir uma nota 4 (quatro). Isso em termos ditos normais já é uma aberração e uma injustiça, pois vivemos com dedicação exclusiva fazendo atividades de ensino, pesquisa e extensão na graduação, especialização e mestrado. Sempre tivemos um bom número de orientandos, coordenamos grupos de pesquisa vinculados ao CNPC, publicamos com nosso próprio dinheiro livros e capítulos de livros, participamos de uma imensa quantidade de bancas examinadoras, fazemos pareceres para revistas científicas, coordenamos PIBIC, PIBID, PET, PROEXT, PROBEX, etc. Dizer, então, que a “culpa” do possível fechamento do mestrado é do corpo docente “improdutivo”, é desconsiderar essas inúmeras atividades nas quais estamos mergulhados o tempo todo.
Recentemente foi enviada a tal Plataforma Sucupira do PPGH/UFCG para ser avaliada pelos devoradores de números, apreciadores de qualis e defensores de Lattes. Entretanto, pela informação da atual coordenação do PPGH/UFCG relatada em reunião da Unidade Acadêmica, há uma ameaça de fechamento do nosso mestrado caso não “retornemos” às atividades de modo remoto. Segundo informa a coordenação, pelas conversas com vários coordenadores de PPGH pelo Brasil inteiro, a coordenação da área de História na CAPES e a PRPG, os mestrados que já tiraram três notas 3 não podem obter a mesma nota, pois seriam fechados. Quanto a isso, já sabemos, embora não seja culpa nossa. Contudo, informa a nossa coordenação que também seremos avaliados para além da Plataforma Sucupira já enviada e o retorno remoto das atividades é condição relevante e quase decisiva para que o programa não seja fechado.
Nesse caso, considero um agravante em relação à pressão que já se faz em tempos ditos “normais”, uma vez que agora se trata de uma chantagem burocrática em tempos difíceis de uma pandemia mundial. Mesmo assim, de acordo com um questionário aplicado pela coordenação de graduação em História da UFCG, a maioria absoluta dos docentes se encontra trabalhando remotamente em diversas atividades o que depõe contra qualquer tentativa de afirmações de que os docentes não estão produzindo conhecimento histórico. Cabe à coordenação do PPGH e a PRPG tornar ciente e fazerem relatórios para a toda poderosa CAPES afirmando que estamos trabalhando, mesmo que de forma precária. Cabe também a eles cobrarem bolsas de mestrado para a turma de 2020 que está sendo pressionada a cursar disciplinas por meios virtuais, mas sem as condições financeiras de arcarem com custos para o desempenho do curso.
A rigor, não sou contra fazermos uma seleção para o ano de 2021 na modalidade virtual, desta feita, sem a necessidade da prova escrita como primeira etapa do processo seletivo. Também sou favorável à realização de defesas de qualificações e do trabalho final de Dissertação, desde que com anuência do mestrando e parecer do orientador. No entanto, sou contrário ao retorno remoto das disciplinas para os mestrandos de 2020, posição igualmente defendida para o curso de graduação.
É verdade que hoje a conjuntura política com um governo ultraneoliberal e neofascista é mais dura para o enfrentamento junto à CAPES e ao MEC. Mas não custa lembrar que durante os “tempos de ouro” dos governos de conciliação de classes pouco se fez para alterar a forma de avaliação da CAPES contando, inclusive, com a conivência, omissão ou pouca disposição por parte de nossos pares na área de História que acompanham a universalização das regras de avaliação sem levar em consideração as diversidades regionais e as condições para publicações que se concentram nas grandes editoras situadas, sobretudo, no sul-sudeste. Chegamos até aqui com as hierarquias funcionando e cada um fazendo seu serviço para satisfazer a CAPES, essa deusa toda poderosa, inquestionável e dogmática. O pior: muitos professores e estudantes viveram e vivem sendo seus devotos.
Para finalizar, gostaria de dizer que tenho publicado capítulos de livros e organizado livros, coordenado o PET por quatro anos, orientado e ministrado aula a semana inteira e ainda tiro o tempo para a militância política. Para quem gosta, basta conferir o tal do meu curriculum lattes. Sendo assim, a depender de mim e de muitos colegas que trabalham bastante, o Mestrado em História jamais será fechado e a ele desejo muitos anos de vida. O que não aceito é chantagem e culpabilização pelo seu possível fechamento, tenho a consciência tranquila do dever cumprido. Acho que o alvo do ataque deve ser à burocracia que chancela as regras do produtivismo e não os professores e estudantes doentes e cansados de trabalhar.
 Espero mesmo que não fechem nosso mestrado, principalmente em um tempo em que se está abrindo e fechando covas para empurrar gente chão à dentro.