sexta-feira, 16 de outubro de 2015

MAIS UM CAPÍTULO DA TRAGÉDIA DE SUMÉ

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Antes de mais nada, gostaria de dizer da minha indignação com o assassinato do garoto Everton e do inocente Batista e que seja feita justiça, punindo todos os envolvidos de acordo com a legislação vigente. Estou iniciando esse texto, fazendo essa justificativa, porque circula pelas redes sociais comentários do tipo que eu estaria mais preocupado em defender as religiões de matriz afro-ameríndias do que mesmo com a morte brutal do garoto. O que não é verdade, pois, indiscutivelmente, toda uma região está de luto e há uma revolta coletiva com o assassinato do garoto e, sobretudo, pela forma fria, calculada e selvagem como se deu. Quando escrevi o primeiro texto, esbocei uma preocupação política que circula no entorno do lamentável fato. E volto a escrever para reforçar minha preocupação.
Estive em Sumé e Serra Branca entre ontem e hoje. O assunto não é outro senão esse. A revolta das pessoas é perfeitamente compreensível, contudo, ouvi de várias bocas a reprodução discursiva das notícias que circulam nas mídias televisiva, radiofônica e digital. Após a conclusão da investigação policial na qual alguém que se denomina e é denominado “pai de santo” confessa os detalhes do macabro ritual, tem se acentuado o discurso que relaciona o ocorrido em Sumé com as religiões de matriz afro-ameríndias. Defendo que devemos repudiar e punir o sacrifício de Everton sem cair na generalização, no desconhecimento e no preconceito para com os umbandistas, candomblecistas e juremeiros do Brasil, de modo geral e do Cariri, de modo específico.
Acompanhado de mais dois professores do CDSA-UFCG, fui conversar com os pais e mães de santo que entrevistamos para o projeto que coordeno junto ao Ministério da Cultura. Fomos prestar solidariedade e formalizar apoio e parceria entre a universidade e os terreiros. Um deles nos contou que no trabalho tem ouvido vários tipos de preconceitos, coisa do tipo “isso é coisa de macumbeiro”. O preconceito é uma construção histórica e cultural, principalmente em uma região colonizada juntamente com a ideologia da Igreja Católica, mas o conhecimento histórico, antropológico e sociológico deve desconstruir determinados estereótipos identitários.
Os terreiros de Pai Inacinho, Madame Jô, Sandra e Antonio Graxuá (Sumé) e de Pai Washington, Pai Lima e Pai Dinei (Monteiro), até onde pude perceber são de tradição umbandista cultuando os orixás (na tradição afro) e os mestres, boiadeiros e caboclos (na tradição da jurema). Na Umbanda ocorrem sacrifícios de animais e oferendas como bebidas, cigarro, flores, perfumes, comidas de santo (acarajé, arroz, farofa, abóbora, frutas, etc). Os rituais mais realizados são as festas aos orixás e a entrega de oferendas no mar (caso de Yemanjá), no rio (caso de Oxum) ou na pedreira (caso de Xangô). No ritual da jurema, o toque envolve o uso do cachimbo e bebidas, pois os mestres, boiadeiros, preto-velhos e índios vêm ao terreiro para beber e dançar. Nos trabalhos realizados a pedido de consulentes e filhos da casa, os casos mais procurados são relacionados ao amor e são feitos com maçã, mel, fitas coloridas, bonecos de pano, champanhe e cigarro ofertados a exu e pomba gira. Portanto, desconheço a existência de práticas de sacrifícios humanos em rituais de Umbanda e Candomblé. Se alguém o faz, acredito que não são práticas condizentes com a tradição afro-ameríndia que conhecemos, cultuamos e respeitamos.
Outro ponto importante a ser destacado se refere ao fato do processo de iniciação e feitura de um pai e mãe de santo. Para ser considerado Babalorixá (pai de santo) ou ialorixá (mãe de santo), o iniciado faz oferendas aos seus orixás de cabeça e passam alguns dias trancados no quarto do santo (peiji, camarinha) tendo contato apenas com a mãe da casa. Em alguns terreiros são raspados e catulados. No dia da saída do quarto ocorre uma festa na qual uma mãe, um pai e uma madrinha de santo lhe entrega um anel de búzios (espécie de anel de formatura), uma faca (mão de faca=significa que agora ele ou ela já podem cortar para o orixá) e o presidente da Federação de Cultos Afros entrega um diploma. A partir daquele momento, aquela pessoa que estava em obrigação no quarto do santo se torna babalorixá ou ialorixá e, apenas, a partir de todo esse processo de ritualização da feitura do santo, essa pessoa pode abrir um terreiro e pode ser considerado pai ou mãe de santo. O terreiro tem que ser vinculado à Federação e esta expede um documento permitindo a abertura da casa.
Essa é a forma de tradição religiosa que defendemos contra o preconceito e a intolerância religiosa. E essa tradição não tem nada a ver com charlatões nem sacrifícios humanos. Entretanto, o que está ocorrendo no Cariri é a imediata vinculação do ritual nefasto sobre o sangue de Everton com as boas tradições umbandistas e candomblecistas. Isso não ajuda muito, pois consciente ou inconscientemente, reforça o preconceito religioso e ainda incorre num erro grosseiro de generalização por desconhecimento.

Espero que o caso seja inteiramente elucidado e punido pela policia e pela justiça, mas que não cometamos violência simbólica para com os terreiros do Cariri Paraibano que já sofrem pela invisibilidade e demonização. Não esqueçamos que pelo Brasil a fora terreiros têm sido invadidos e o povo do santo também tem sido violentado fisicamente. Espero e apelo, ainda, que a mídia que tem dado tanto destaque ao fato abra espaço para que o conhecimento possa explicar as religiões afro-ameríndias por um prisma da desconstrução de equívocos e estereótipos e que os diretores de escolas e gestores municipais cumpram as Leis 10.639 e 11.645 que obrigam a inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares. A falta de conhecimento leva à cegueira, às generalizações e visões de mundo preconceituosas. Espero e conclamo, ainda, que após as conclusões das investigações, as Federações de Cultos Afros no estado da Paraíba possam se pronunciar sobre o ocorrido em Sumé e apoiar os terreiros caririzeiros. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

CRIANÇA MORTA EM RITUAL DE “MAGIA NEGRA” NA CIDADE DE SUMÉ?

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Acabo de assistir no JPB- 2ª edição, que o delegado João Joaldo Ferreira, titular da Delegacia Seccional de Monteiro, trabalha com a hipótese de que o assassinato do garoto, na cidade de Sumé, fora realizado por razões de rituais de “magia negra”. Imediatamente, parei com o que estava fazendo, para publicar minha opinião sobre o assunto. E o faço por várias preocupações políticas e éticas que o tema demanda.
Nem quero aqui entrar no debate semântico que implica a denominação de um rito da Umbanda ou do Candomblé como sendo de “magia negra”, como se do outro lado pudesse haver uma magia “menos mal”, embranquecida e revestida pela adjetivação menos racista. O que me preocupa, nesse momento, é que o delegado e a mídia deveriam ser mais cautelosos quando ainda se trabalha com hipótese de um crime, pois a veiculação de uma matéria desse porte em uma sociedade cristocêntrica e preconceituosa para com as religiões de matriz afro-ameríndias, certamente reforçará o estigma da demonização construído historicamente sobre elas. O pior é que muitos jornalistas e delegados sequer leram ou tem um conhecimento razoável sobre a Umbanda e o Candomblé e, assim, sem o rigor do conhecimento científico não podem, senão, cair no sensacionalismo que o assunto pode promover.
A palavra de um delegado de polícia ou de um jornalista tem um poder de autoridade no dizer, tem poder de credibilidade para muitos, pois são apresentadas como “imparciais” e “verdadeiras”, quando na verdade se tratam de visões de mundo subjetivas e interessadas. Não é de se espantar que, a essa altura, muitos telespectadores já estejam comentando que uma criança foi sacrificada em ritual de “magia negra” na cidade de Sumé, pois os consumidores da mídia nem sempre são ativos, trapaceiros e resistentes. Assim, informações desse tipo, num contexto de avanço da extrema direita fascista no Brasil, ajudam a reforçar esse projeto de Brasil intolerante para com o povo do santo.
Gostaria de dizer que há 15 anos conheço vários terreiros na Paraíba, inclusive estou concluindo um trabalho de pesquisa, financiado pelo Ministério da Cultura, intitulado O SEMIÁRIDO PARAIBANO TAMBÉM É AFRO-BRASIELIRO: A PRODUÇÃO DE MEMÓRIAS DOS TERREIROS DA REGIÃO. Durante esse projeto, entrevistamos vários babalorixás e ialorixás nos municípios de Cajazeiras, Sousa, Monteiro e Sumé e nunca vi, nem ouvi nada referente a sacrifícios de crianças em rituais de Umbanda e Candomblé. Portanto, se algum terreiro ou alguma pessoa que se identifique como pai de santo ou mãe de santo sacrificou essa criança encontrada nas matas do município de Sumé, essa pessoa precisa ser presa e responder por homicídio conforme reza a legislação vigente, mas, para isso, o delegado e o JPB precisam dar uma resposta à sociedade sem generalizações e com responsabilidade e conhecimento político das religiões de matriz afro-ameríndias.
Gostaria de conclamar o Pai Washington, o Pai Lima e o Pai Dinei, (todos de Monteiro) e Madame Jô, Sandra, Pai Inacinho e Antonio Graxuá, (todos de Sumé) a acompanharem os resultados do inquérito policial e das informações midiáticas a fim de que estes representantes de terreiros na região do Cariri não possam ser responsabilizados por, supostamente, serem associados a comandar uma religião que sacrifica crianças.
Repito: vamos esperar o resultado das investigações policiais, mas desde já, caso se confirme a hipótese do delegado, que fique bastante claro que esse tipo de sacrifício não faz parte da Umbanda, da Jurema e do Candomblé cujos terreiros são filiados a uma Associação de Cultos Afros. Cuidado com o que a mídia diz, pois eles adoram matérias desse tipo para fazer sensacionalismo. Caso a hipótese do delegado não se confirme, a equipe do JPB deveria ser acionada para desconstruir a matéria estereotipada de hoje. A grande mídia brasileira é isso aí: ela e você, nada a ver.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

2015: UMA GREVE NECESSÁRIA E DERROTADA

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires

A greve é uma instituição política inventada durante a Modernidade, mas ainda um importante instrumento da luta de classe na Pós-Modernidade. Até que se prove o contrário, outros tipos de enfrentamentos, embora necessários, não substituirão o movimento paredista a ponto de minar sua existência. Pelo menos, não agora.  Igualmente importantes e necessários, são os sindicatos da classe trabalhadora na qualidade de instituições representativas de uma luta coletiva contra o capitalismo e os interesses das várias frações burguesas de classe. Enterrar a greve e o sindicato no túmulo do passado, como algo superado no tempo, em favor do novo que ainda não nasceu nem sabemos como será, significa assinar o atestado de óbito de experiências vitoriosas de lutas coletivas no âmbito do movimento sindical.
O ANDES-SN é exemplo desse movimento sindical classista, democrático nas decisões (sempre consultando as bases) e combativo, isso porque não expressa a velha tradição corporativista da Era Vargas, mas atua na linha da autonomia em relação ao aparelho de Estado. Entretanto, outros sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais, estudantis e populares, optaram pelo “peleguismo” e, desde a chegada do PT ao governo brasileiro, trocaram a linha de frente do combate classista pelo aparelhamento na burocracia estatal, sempre alisando no pelo dos governos Lula e Dilma. Talvez, essa cooptação seja um dos fatores fundamentais que impossibilitam a construção de uma greve geral no país. Defender o mandato da presidente passou a ser a bandeira mais importante nesse difícil ano de 2015.
Nesse sentido, defendo que a greve construída no âmbito do Fórum dos Servidores Públicos Federais e, particularmente, no setor da Educação (ANDES, SINASEFE, FASUBRA, ANEL e oposição de esquerda da UNE), foi mais do que necessária e oportuna. No contexto de um mandato presidencial que foge, completamente, a linha ideológica prometida no debate da campanha e que trai os segmentos de esquerdas que foram decisivos no 2º turno, não resta outra coisa, a nós, senão parar as universidades e tentar parar o país. Quando deflagramos a greve, acusavam-nos de tentar desestabilizar o governo e de que o ajuste fiscal era algo inelutável, como uma estrutura de rocha na qual os sujeitos grevistas iriam bater a cabeça e quebrar a cara. Contra esses argumentos eu diria: não somos e não fomos nós quem desestabilizou o governo, mas os próprios caciques que andam diariamente no interior do Palácio do Planalto; e mais, partir numa luta com certo fatalismo e ceticismo não é o mais recomendável, o fazer-se da classe se dar na experiência da luta e o futuro é incerto, mesmo avaliando a correlação de forças desvantajosa para nós trabalhadores. Por isso, melhor lutar jogando a cabeça na rocha dura do capital, do que se conformar com um status quo vigente que governa para o grande capital financeiro, empresarial e agroexportador.
Fizemos nossa parte. Durante três meses paramos para discutir a universidade que queremos, fomos às ruas e as praças, gritamos na frente e no interior da reitoria, ocupamos o gabinete do Ministro da Educação. Somos poucos, mas corajosos e audaciosos, conscientes da importância da defesa de um projeto de universidade pública, gratuita e laica, uma universidade que se expanda para o acesso e a permanência de pobres, negros, índios, camponeses e não o projeto privatista do governo federal com o aval dos reitores que preferem a terceirização, a precarização das condições de trabalho, o fim da gratuidade de alguns cursos no interior das universidades públicas e os cortes no orçamento público destinado a educação. Muito mais do que apenas reposição salarial (que um direito constitucional que conquistamos), reestruturação da carreira, autonomia universitária, paridade entre ativos e inativos, nosso grito em 2015 foi contra o FIES, contra a privatização, contra o desmonte do serviço público, contra o ajuste fiscal e cortes de verbas, contra o fim de projeto como o PIBID e PET. Nesse particular, avalio como positiva nossa participação, mesmo sendo vozes isoladas no interior das universidades. Nós enfrentamos os gigantes do capital, o Estado Burguês e os reitores complacentes, não é uma luta fácil, mas importante e necessária.
Por outro lado, passados quatro meses de greve, considero que fomos derrotados nessa batalha, o que não significa perder as esperanças de continuar o combate e construirmos outras batalhas. E perdemos por várias razões que gostaria de mencionar: a) O governo não dialoga com nossa pauta setorial, o ministro da Educação sequer nos recebeu para o debate; nosso projeto de universidade diverge do projeto governista, pois enquanto este retira verbas das universidades públicas repassa milhões via FIES e Prouni para os grandes grupos empresariais que mercantilizam a educação; b) quanto mais a greve se estendia, mais o governo caminhava na contramão do lado da classe trabalhadora. Vieram mais cortes, inclusive na pós-graduação ao passo em que a Agenda Brasil e o ajuste fiscal foram sendo acionados sinalizando com mais impostos, mais retirada de direitos trabalhistas e mais criminalização de movimentos sociais e repressão; c) o MEC não tem autonomia, quem define tudo é o MPOG e o Ministério da Fazenda, os ministérios do ajuste e dos banqueiros; d) no interior da nossa universidade não contamos com o apoio da administração central, tivemos que fazer pressão para o reitor abrir as contas e mostrar o impacto dos cortes, isso sem falar que várias reuniões de câmaras foram convocadas a revelia do comando de greve, o que demonstra um desrespeito para com as categorias em greve; e) tivemos que gastar tempo com fura greve, profissionais que não respeitaram as deliberações democráticas da Assembleia e insistiram em trabalhar e nos dá trabalho; f) muitos companheiros que votaram em favor da greve não formaram conosco no comando local de greve, reforçando o esvaziamento da luta e a sobrecarga de atividades para poucos militantes; g) muitos estudantes desqualificaram, vergonhosamente, os professores sindicalistas, expressando uma fraseologia de triste memória a denominar-nos de “vagabundos”; h) esses argumentos anteriores, significa que no interior das universidade ocorre também o desmonte de um pensamento crítico e uma visão de mundo coletiva, conduzindo a maioria dos estudantes e professores a abraçarem a ideologia neoliberal da fragmentação, do individualismo, da competitividade e do conformismo.
Por essas e outras, entendo que chegar a quatro meses de greve apenas com uma proposta governamental de um índice de reajuste salarial muito abaixo da inflação é a derrota da classe trabalhadora e da universidade pública e a vitória do capital financeiro e empresarial que engorda suas contas por dentro do aparelho de Estado. A luta de classe é sempre desfavorável para os trabalhadores, pois os lugares políticos e sociais ocupados são assimétricos e ainda temos que contar com as fissuras e conflitos no interior da luta docente, por exemplo. Dividir para reinar é a lógica do governo. E muitos professores e estudantes têm caído nessa lógica fazendo a briga errada.
Para finalizar, gostaria de agradecer a tod@s @s estudantes que se juntaram a nós nessa luta, o movimento estudantil é brilhante, vigoroso e aguerrido e tem muito a contribuir nas trincheiras da resistência.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

“GALINHA PRETA” & “BANDEIRA LILÁS”

Prof. José Luciano de Queiroz Aires (UAH/UFCG)

O Comando Local de Greve da ADUFCG se reuniu com o reitor Edilson Amorim, na tarde do dia 21 de julho, para discutir os cortes orçamentários do MEC na educação pública federal e seus impactos concretos na Universidade Federal de Campina Grande. Durante a exposição do reitor, o historiador Luciano Mendonça de Lima fez um aparte denunciando algumas práticas de proselitismo religioso realizadas no âmbito da UFCG, ameaçando, assim, o caráter laico da referida instituição. Denúncia que eu me encarreguei de complementar quando afirmei ao reitor que durante as colações de grau, no auditório do Centro de Extensão José Faria Nóbrega, ocorrem “cultos ecumênicos” e que no site da UFCG havia sido publicado um artigo de um professor da instituição citando a Bíblia para fins de proselitismo e não de hermenêutica.
Durante o debate, dois professores usaram a palavra se pronunciando a respeito da questão religiosa no âmbito da universidade. E, para minha tristeza, foram duas falas infelizes as quais discordo e combato nesse texto.
Um deles, demonstrando mais preocupação com o consumo de maconha no interior da universidade do que com a questão da religião, acabou reiterando uma cultura preconceituosa para com as religiões de matriz afro-ameríndias ao dizer que não se importava, inclusive, com o fato de sacrificar “galinha preta”, sinalizando quanto a possibilidade de ter espaço para todas as religiões no interior da UFCG. Nesse caso, tenho uma dupla discordância. Primeiro, que a universidade não é espaço para nenhum tipo de culto religioso, mas para a discussão histórica, sociológica e antropológica das religiões. Sendo assim, ela pode cumprir um importante papel político que é o de conhecer para conviver com as diferenças, dentro e fora do âmbito acadêmico. Segundo, ao representar a Umbanda e o Candomblé, a partir do estereótipo da “galinha preta”, se reafirma a cultura histórica da desqualificação das práticas religiosas que sacrificam animais e, ainda, se acrescenta a dimensão racial da discriminação quando se afirma a cor da galinha sacrificada. Como um pouco conhecedor das religiões de matriz afro-ameríndias, no trânsito que sempre faço dos livros aos terreiros, gostaria de ressaltar que a dimensão de tais religiões está para além dos sacrifícios de “bode preto” e “galinha preta”, porque também se sacrifica “bode branco” e “galinha branca”. E os sacrifícios de animais são muito legítimos, se os lêssemos a partir da teia de significados, das quais no fala Clifford Geertz, tecidas na subjetividade dos seus praticantes e não na cabeça estranha que compara cultura a partir da sua identidade.
Ainda sobre essa questão, foi aventado, durante o debate, os “cuidados” que os gestores da UFCG devem ter no momento de tentar coibir os proselitismos religiosos, a fim de que os mesmos não possam ser acusados de intolerância religiosa. Esse tipo de fala acaba confundindo mais do que elucidando. Intolerância religiosa é não respeitar o Outro, dentro e fora da universidade. Proselitismo religioso é usar um espaço laico, público e diversificado, cuja missão é a produção do conhecimento, para fins de cultos, sejam eles quaisquer. Vou exemplificar a diferença. Arrancar o crucifixo de um estudante ou de um professor ou tomar de assalto sua Bíblia Sagrada que carrega na bolsa, são exemplos de intolerância religiosa. Proibir que professores rezem o Pai Nosso nas reuniões de Departamento, que se ostente imagens sagradas nos espaços da universidade ou que se professem ritos religiosos, são exemplos de proselitismo que devem ser combatidos e não de intolerância.
Outra confusão que gostaria de meter minha opinião se refere aos discursos que afirmam que, como historiadores ou cientistas sociais, não devemos fazer críticas às religiões, pois estaríamos incorrendo na tal da intolerância religiosa. Mais uma vez, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Escarrar em um crucifixo é diferente de dizer que o catolicismo atuou, ideologicamente, na sustentação da escravidão no Brasil ou foi o bastão do feudalismo clássico, conforme nos mostra Georges Duby; abrir a mala do som de um carro e botar para tocar no mais alto volume à frente da casa de seu vizinho que está realizando um culto evangélico é diferente de dizer que o luteranismo foi a ética que deu sustentação ao Capitalismo, conforme nos mostra o sociólogo Max Weber. Não confundamos alho com bugalho. As religiões, enquanto instituições, não estão imunes a dimensão crítica do conhecimento e isso alguns historiadores se esquecem de levar a cabo, preferindo doutrinar seus alunos, da escola básica ao ensino superior, empurrando goela abaixo um discurso único. É a historicidade das religiões que devemos conhecer e socializar no ensino de História, e não transformar a sala de aula em templo e a aula de História em pregação. E disso, os historiadores-religiosos devem ter consciência a fim de que possam fazer um distanciamento da sua crença em nome da ideia de que são os homens e mulheres que fazem a História e de que ao adentrar a sala de aula encontrará uma turma de alunos bastante diversificada.
Voltando ao assunto da reunião com o reitor e o debate que se configurou em torno dessa temática, gostaria de dialogar com o outro professor. Menos incomodado com a maconha, pareceu mais preocupado com o fato de “bandeira lilás” hasteada sobre a universidade, numa alusão ao arco Iris do Movimento LGBT. Nesse caso, gostaria de dizer que os movimentos sociais também devem ser objeto de produção de conhecimento no espaço acadêmico, mas de um conhecimento que sirva à vida em sociedade. Assim, a universidade cumpre seu papel político para com os excluídos da História, pesquisando sobre eles e atuando junto deles. No caso de se tomar as religiões como objeto de estudo, a universidade deveria atuar no sentido do combate ao fundamentalismo religioso e a defesa da diversidade religiosa. No caso dos movimentos sociais, incluindo as LGBT, igualmente relevante seria o combate a homofobia e ao monopólio da família heterocentrada e a defesa da diversidade de gênero e de tipos de famílias.

Ocorre que há uma diferença histórica gritante. Ao se abrir a universidade para fins de culto, além de ameaçar a laicidade da instituição, tem se reafirmado a perspectiva de discurso único cristocêntrico. Ao se abrir a universidade para índios, negros, pobres, LGBT, mulheres, camponeses, operários, se abrem as portas para a convivência com as diferenças e não para o discurso único. E, assim, a universidade talvez pudesse cumprir um papel mais relevante ao incluir sujeitos marginalizados historicamente, já que ela vem se prestando muito bem aos ditames do mercado e dos conservadorismos. 

domingo, 12 de julho de 2015

DOIS PROJETOS DE UNIVERSIDADE: DE QUE LADO VOCÊ ESTÁ?

José Luciano de Queiroz Aires (UAH-UFCG)

A “Pátria Educadora” está em greve. Uma greve forte que movimenta o país inteiro levando docentes, estudantes e servidores técnico-administrativos às ruas brasileiras. O horizonte de expectativa desse movimento é a construção de uma greve geral que possa resistir ao projeto de educação levado a cabo pelo governo brasileiro com seus aliados internos e externos. Mas, afinal, o que está em jogo na atual conjuntura? Qual a importância de uma greve na educação nesse momento? São essas as questões sobre as quais gostaria de refletir nesse texto.
Inicialmente, gostaria de mencionar a temporalidade na qual estou escrevendo essas linhas. Em grande medida, o que pretendo desenvolver nesse artigo é resultado da experiência vivenciada em doze dias de participação do Comando Nacional de Greve do ANDES-SN e que gostaria de compartilhar com os leitores.
Mais do que o discurso verbalizado pelo governo brasileiro da “necessidade do ajuste fiscal”, em nome do qual é acionada a tesoura que corta mais de 9,4 bilhões do orçamento das instituições federias públicas, o que está em jogo é o embate entre dois projetos de universidade para o nosso país. Mais do que cortes, supostamente “momentâneos”, o que vai se consolidando é o modelo privatista, empresarial e mercadológico de educação, enterrando a universidade pública, gratuita, laica e de qualidade como direito social. A greve é fundamental e deve ser compreendida como arma necessária para enfrentarmos o projeto da mercantilização da educação dirigido pelas ambições dos empresários que se encostam às pilastras estruturadas em torno do orçamento da União.
Como é sabido de todos que acompanhamos a atual conjuntura, a política econômica conduzida por um Ministro da Fazenda, representante dos banqueiros, é direcionada no sentido de ajustar as contas públicas cortando direitos trabalhistas historicamente conquistados, diminuindo, consideravelmente, o repasse de verbas para setores fundamentais como a educação e a saúde pública e aumentando impostos e o custo de vida que afeta o andar de baixo da pirâmide social. A tesoura do Levy é bastante afiada quando faz um movimento para baixo e bastante enferrujada e incapaz de construir um movimento de corte para cima.
Saindo da metáfora e indo diretamente aos números, vale salientar que apenas em 2014, 45,11%, o equivalente a 978 bilhões de reais do orçamento da União foi comprometido com pagamento de juros e amortizações da dívida pública, restando apenas 3,73% para a educação. Desse modo, fica bastante evidente a hegemonia do bloco do capital financeiro que enriquece a cada dia que se aumentam as taxas de juros SELIC e quando o governo faz o esforço para manter o superávit primário que alimenta a boca enorme desses monstros que engordam especulando.
No andar de cima também se encontram as poucas famílias que acumulam fortunas e não são tributadas, conforme previsto na Constituição Federal. O Imposto Sobre Grandes Fortunas, caso fosse regulamentado no Brasil, atingiria 0,2% da população que, segundo dados da Receita Federal, corresponde a 221 mil contribuintes que possuem fortuna acima de 1 milhão de reais, muito dos quais escondidos em paraísos fiscais. Se esses afortunados fossem taxados em 1,5%, o governo arrecadaria algo em torno de 100 bilhões de reais por ano, mas o governo fez a opção de ajustar as contas de casa fazendo um ajuste fiscal pesando sobre os ombros já sofridos da classe trabalhadora brasileira.
Apenas essas duas molas mestras: o compromisso com o pagamento da dívida pública e a ausência de uma reforma tributária que taxe o capital e não a renda, já nos rende elementos explicativos para pensar seus reflexos no campo da educação. Ora, se sobra dinheiro para o mercado financeiro e falta a contribuição dos milionários para engrossar a receita, cabe à educação e outros setores considerados direitos sociais apenas a ínfima fatia da pizza do nosso orçamento.
E para piorar a situação, é importante ressaltar que nem toda previsão orçamentária para a educação se destina, exclusivamente, ao setor público. Aliás, o alimento que engorda os grandes grupos multinacionais e associados provém de recursos oriundos de programas como o PROUNI e o FIES. Basta exemplificar que a fusão do grupo Kroton-Anhaguera reúne mais estudantes/consumidores do que todos os matriculados nas 63 universidades federais e que a absoluta maioria dessas matriculas é mantida por meio dos programas acima mencionados. Basta dizer que, enquanto em 2014, o governo alocou R$ 13,5 bilhões para o FIES, as universidades públicas são precarizadas e se encontram ameaçadas de morte. A lógica neoliberal vem imperando no seu interior, inclusive com o aval dos reitores que aceitam a receita do MEC como uma lagartixa a balançar a cabeça para cima e para baixo dizendo “SIM SENHOR” a terceirização e a EBSERH, por exemplo. A fragmentação, o individualismo, a competitividade, vem reinando, absolutamente, entre docentes e estudantes, proporcionando uma disputa por espaços nos quais possam realizar seu “EU” já que cada dia parece se naturalizar a impossibilidade de um “NÓS”. Entretanto, a realização do “EU” pode ser provisória, pois se o teto do projeto de universidade pública desabar, essas cabeças também cairão e ficarão soterradas nos escombros da tragédia juntos com o “NÓS”. Aliás, isso já pode ser notado quando a CAPES corta 75% dos recursos do PROAP e quando projetos como o PIBID e o PARFOR estão ameaçados, por exemplo, uma vez que essa política de distribuição de bolsas por meio de programas tem feito com que muitos professores silenciem a respeito de política salarial justa, data base, carreira docente com possibilidade de progressão mais democrática, isonomia entre ativos e inativos, essa pauta, muitas vezes, é ignorada em função de um olhar direcionado às bolsas oriundas de órgãos de fomento ou empresas privadas ou estatais. Não sabem eles que elas são provisórias? A prova está à vista de todos que queiram enxergar, e são seus cortes e contingenciamentos.
A privatização da educação superior avança em duas frentes. Por um lado, cresce, vertiginosamente, o número de instituições privadas de ensino controladas por quatro grandes oligopólios cuja entrada no mercado acionário movimenta mais de 15 bilhões de reais por ano. Por outro lado, as universidades públicas vão aderindo cada vez mais à lógica privatista e a precarização do trabalho. A título de exemplo, podemos citar alguns casos que apontam nesse horizonte: a) a criação do FUNPRESP, que praticamente obriga os servidores públicos federais a contribuírem com a previdência privada para que não cheguem ao fim da vida com o teto da aposentadoria rebaixado para pouco mais de 4 mil reais; b) a política do MEC, com o aval dos reitores, de entregarem os hospitais universitários a EBSERH; c) o avanço das terceirizações, cujo debate no Congresso Nacional vem sinalizando em direção a atingir o setor fim do serviço público; d) a possibilidade de contratação de professor via Organização Social (OS), já legalizado pelo STF, o que inviabiliza os futuros concursos para docentes na universidades; d) a PEC 395/2014, já aprovada na CCJ da Câmara Federal e que altera o inciso IV do artigo 206 da Constituição Federal acabando com a gratuidade das especializações, aperfeiçoamento e cursos de treinamentos no interior da universidade pública.
Assim, conforme fez notar o historiador Marcelo Badaró, em recente artigo sobre a greve atual, a política de contratar professores, o fim da gratuidade nas universidades públicas e a implantação de políticas de gestão privatizante não ocorrem apenas no Brasil, mas em escala internacional e procuram atender aos receituários dos organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial que, de fato, são os controladores da política educacional vigente nesses tempos de globalização e neoliberalismo.

Por isso, entendo que a construção de uma greve geral é urgente e necessária para enfrentarmos esse projeto de universidade e defendermos a universidade pública, gratuita e de qualidade, incluindo os 10% do PIB e os recursos do pré-sal para ela e não para alimentar a sanha dos grandes empresários que acumulam capital mamando nas tetas do tesouro público nacional.