segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A PONTE PARA O PASSADO



 Prof. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Imaginemo-nos todos em cima de uma ponte. À frente de nós, na direção temporal da marcha anunciada para o futuro, se encontra um comandante golpista convidando-nos a passar a ponte e seguir no caminho moderno do futuro. O pior é que muita gente acredita que passando a ponte se realizará o reino da felicidade, sem comunismo e sem corrupção. Essas pessoas vestiram a camisa suja da CBF, bateram panelas e seguiram o suposto chefe. Do alto, sobrevoando a ponte em helicópteros isentos de pagamento de impostos, as raposas burguesas jogam file mignon para a massa manipulada que sonha com um sobrevoo, mas mal tem um automóvel. Resultado da ópera: o chefe destituiu a chefe, as classes dominantes desceram dos helicópteros para entregar a receita da política econômica e as frações da classe média que acompanharam o chefe foram por ele abandonadas. A ponte para o futuro era uma ilusão, uma ideologia de classe que mobilizou o golpe institucional reatualizando os discursos da crise econômica, do suposto comunismo e da hipermidiatizada corrupção.
A ponte do Temer não é o caminho em direção ao futuro. Não, ao menos, para o conjunto da classe trabalhadora brasileira. O Golpe parlamentar-midiático-jurídico de 2016 foi um golpe de classe. Já havia escrito sobre isso antes da sua consumação e agora tenho mais evidências concretas para sustentar essa afirmação. Com o golpe ainda em curso, pois acredito que ele ainda não consolidou o projeto das elites burguesas e nem decidiram também como inviabilizar uma candidatura de Lula 2018, o que vem acontecendo cotidianamente é um ataque frontal aos direitos sociais, um desmonte do Estado e a criminalização dos movimentos sociais. A ponte não é o caminho seguro para transpassar sobre o rio que nos levaria ao futuro. O chefão foi embora e se aliou com o povo do alto da FIESP. Os trabalhadores, em geral, abandonados, tiveram que recuar com caranguejos, pagando o pato que distribuíram na Paulista e agora todos nós estamos voltando ao tempo da senzala. Isso mesmo: a ponte nos leva ao passado, mas a um passado sombrio e perigoso, um passado que as gerações que nos antecederam combateram com unas e dentes para deixarem à nossa geração alguma coisa de conquista de direitos sociais. Foi na virada do século XIX para o XX que o movimento operário brasileiro, de tendência sindicalista-revolucionário, anarquista, comunista e socialista organizou a luta de classe. Fundaram sindicatos e federações, organizaram greves e insurreições, foram às ruas, às praças e ao chão da fábrica. Muitos foram presos e exilados. Outros foram torturados ou mortos. Portanto, foi com sangue se escreveu essa página da história social do trabalho no Brasil e foi com luta que se conquistou a Consolidação das Leis Trabalhistas durante o governo Vargas. Não como presente do pai dos pobres, como queria o ditador, mas como conquista histórica da luta de classe. O mesmo pode-se dizer do campo. Quantos movimentos sociais também não derramaram sangue lutando contra o latifúndio e o coronelismo? Que o diga, fazendo uma justa memória, camponeses e camponesas liderados por Conselheiro, José Lourenço, José Maria, João Pedro e Elizabeth Teixeira, Margarida Alves, Chico Mendes e tantos outros e outras. Como não lembrar eles em cada assentamento do presente? Como não ver nessa geração do passado o pouco em que avançamos na reforma agrária? Na universidade para índios e quilombolas mediante projetos como o PRONERA e o Brasil Quilombola?
Parece que nós estamos a caminho de retomar a luta deles, pois as conquistas do século XX estão se esvaindo e escapando às mãos nossas do século XXI. A ponte do passado nos joga para um tempo do eterno retorno. Para um tempo em que se torna mais difícil se aposentar, em que fica mais difícil estudar em universidades públicas, em que se torna mais limitado o acesso ao SUS e a casa própria e em que se a CLT pode sem implodida não sobrando pedra sobre pedra. A ponte para o passado tem nos levado a caminhos aos quais gostaria de visitar e para isso convido a todos a me fazer companhia. Inclusive o povo iludido da ponte do futuro e que agora só tem a opção de fazer uma marcha ré em direção ao passado. Ao final da viagem, espero que possamos voltar mais otimista para dar um salto do tigre em direção a uma temporalidade nova e feita pelas mãos da classe trabalhadora organizada.
Primeira entrada no passado. Nosso primeiro encontro é com o petróleo. Chegamos aos anos 1930 quando foram descobertas as primeiras jazidas de petróleo na Bahia. O Império com suas multinacionais avarentas arregalaram os olhos para nosso subsolo, quase furando de tanta inveja e cobiça. Mas estudantes, políticos nacionalistas de esquerda, classe trabalhadora, foram às ruas e fizeram a campanha O PETRÓLEO É NOSSO. O segundo governo Vargas, em resposta às ruas e aos setores nacional-trabalhista, pegou sua caneta e de dentro do Catete assinou a lei que criava a PETROBRAS, em 1953. É certo que depois eles se matou, mas antes deixou uma carta na qual acusava o Imperialismo. Entretanto, a cobiça sobre nosso petróleo e nosso gás não se enterrou juntamente com Getúlio. Em 1997, Fernando Henrique afirmou, peremptoriamente, que iria destruir a Era Vargas. Na onda da privataria tucana, FHC acabou com o monopólio da PETROBRÁS e assinou a lei do regime de concessãopara a exploração de petróleo, privilegiando, consideravelmente, empresas como a Esso e a Chevron. Durante o governo Lula, em vez do regime de concessão, o nosso pré-sal deveria ser explorado a partir do modelo de partilha, na qual a PETROBRÁS deveria ser a única operadora da exploração e apenas parte do petróleo e do gás ficaria nas mãos das multinacionais. Após o golpe de 2016, a Câmara Federal entrega nossas riquezas trilionárias ao grande capital internacional, honrando os compromissos do tucano José Serra e do golpista Michel Temer.
Segunda entrada no passado. Embora ainda não apresentada no Congresso, alguns ministros já andaram concedendo algumas entrevistas sobre a reforma trabalhista e reforma da previdência. Pelo visto, o que pode vir por aí significa que o negociado prevaleça sobre o legislado, matando, assim, a CLT. Também pode vir aumento de jornada de trabalho, terceirização sem limites, OS, fim de concurso público, aumento para idade de aposentadoria, aumento da contribuição do INSS e revisão severa nos benefícios concedidos pelo INSS. Esse conjunto de ataques é o preço que o trabalhador deve pagar pela crise econômica e fiscal, um remédio amargo do qual a burguesia nunca provou. A classe dominante paga menos impostos, superexplora a força de trabalho, mantém trabalho em condições análogas à escravidão e conta com crédito barato concedido pelo BNDES para tocar a acumulação do capital. Só precisa que o governo dê essa ajudinha, reformando a CLT e as regras da previdência, tida por eles como “atrasadas”, “dinossáuricas”.
Há uma farsa em relação ao discurso governista do déficit da previdência. É mentira. A professora de Economia da UFRJ, Drª Denise Gentil, demonstrou claramente em sua tese de doutorado que o Governo executa uma fraude contábil nos cálculos das receitas e despesas com a Seguridade Social. Esses cálculos são feitos de forma totalmente diferente do que diz a nossa Constituição Federal. Pelo Artigo 195 da Constituição, a Seguridade Social como um sistema de proteção social para os cidadãos e cidadãs tem como fonte de receita a contribuição do INSS, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Contribuições para o PIS/PASEP, contribuições sociais sobre concurso de prognóstico, a exemplo de loteria. Entretanto, quando o governo computa a despesa com o pagamento de aposentados, pensionistas, auxílio-doença, etc, apenas considera a contribuição do INSS e não o conjunto das receitas. A título de exemplo, em 2014 a Seguridade Social obteve a receita de 686 bilhões de reais e a despesa de 632 bilhões o que significa um superávit de 53 bilhões. Nossa previdência é superavitária e se não fosse as aposentadorias gordas de juízes e políticos, seria mais ainda. Desse modo, precisamos rebater o discurso midiático governista burguês do tal déficit que não existe.
Terceira entrada no passado. A PEC 55/2016. Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, segue ao Senado um dispositivo de classe que golpeia os trabalhadores com uma verdadeira punhalada. A maioria dos golpistas, incluindo o chefe-mor, insiste numa retórica de que essa emenda constitucional se trata de um “Novo Regime Fiscal” e culpa os governos anteriores por terem aumentado os gastos públicos em proporções maiores que a receita. Afinal, o que muda com essa PEC da Morte? Vamos ao passado. Em 1983, por meio da Emenda Calmon, constitucionalmente, o governo federal deveria gastar no mínimo 13% com educação e os governos estaduais e municipais, e o distrito federal, 25 %. Com a Constituição de 1988, com Educação o governo federal deve investir no mínimo 15% e os estados, municípios e o distrito federal 25% da receita líquida corrente; ao passo que com a saúde, o governo federal deve investir no mínimo 18% e os estados, municípios e o distrito federal, 25%. Com a aprovação da PEC, o Estado fica desobrigado constitucionalmente desse teto mínimo, que, para mim, já é irrisório, e passa a tomar como referência o valor a ser gasto em 2017 a partir do que foi orçado em 2016 com correção apenas da inflação do ano anterior, o que significa congelamento de gastos públicos por vinte anos. Chegaremos a 2037 com o mesmo orçamento de 2017. Se chegarmos vivos! Na justificativa do documento, o governo é claro: o descontrole das contas públicas é resultado de “um crescimento acelerado da despesa pública primária” e aos “gastos com diversas políticas públicas”, entretanto, não diz que de fato o que se quer é gerar um superávit primário de trilhões de reais para pagar o serviço da dívida e alimentar o capital financeiro. Estudiosos vêm fazendo simulações sobre a possibilidade dessa PEC já está em vigência desde 2006, o salário mínimo nacional hoje seria em torno de 400 reais. O orçamento da saúde que nesse ano de 2016 foi de 102 bilhões de reais, cairia para 65 bilhões e o da educação que em 2016 foi 103 bilhões cairia para 31 bilhões.
Quarta entrada ao passado. O direito de greve. Sabemos que o STF recentemente aprovou a legalidade do corte de ponto de grevistas, procurando inviabilizar a greve geral que vem se desenhando para novembro. Voltemos ao Golpe de 1964. A nova Lei de Greve (1964) reconhecia o direito de greve limitado a questões salariais, desde que fosse objeto de votação em Assembleia Geral organizada por sindicatos controlados pelo Estado (corporativistas) e esgotadas as possibilidades de negociação; foram proibidas greves de servidores da União, por motivo ideológico e ocupação de locais de trabalho por grevistas. Não é mera coincidência. É uma pena que nas universidades encontramos tantos alunos e professores contrários a greve e, assim, fazem coro com os togados da suprema corte ou dos mandarins da administração universitária.
Quinta entrada ao passado. Contra o método de alfabetização de Paulo Freire vieram o MOBRAL e as disciplina de Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica. Professores e estudantes combativos foram amordaçados, presos, torturados. Enquanto os livros da escola mostravam uma visão ufânica e nacionalista do pais do futebol. Pois bem. Aí está o famigerado projeto “Escola sem Partido”, que na verdade é a escola do partido do capital e do fundamentalismo religioso representado pela Bancada da Bíblica. Escola machista, misógina, lgbtfobista, racista e elitista. E junto a essa escola tecnicista vem a medida provisória que propõe reformar o ensino médio banalizando a profissão de professor e oferecendo a contrapartida do “notório saber”, retirando disciplinas como filosofia, sociologia, artes e educação física e com perda de carga horária de História e Geografia. Aqui aproveito para tirar meu chapéu para a estudantada que ocupa escolas, institutos federais e universidades Brasil afora. A luta de classe encontrou nessa juventude a energia da ação e do destemor. Esses jovens nem bateram panelas nem seguiram a ponte para o futuro. Ficaram no presente lutando por outro futuro, por outro Brasil que não este desenhado por William Boner, comentado por Carlos Alberto Sardenberg e Mirian Leitão e escrito por Reinaldo Azevedo.
Fomos ao passado. Encontramos labirintos e caminhos tortuosos. Mas ter consciência histórica ajuda muito a forma na luta. Por isso, convido todos e todas que voltemos dessa viagem munidos de conhecimento, vontade e sabedoria a fim de que possamos parar no presente e construir o futuro. Puxar o freio do trem, para usar uma metáfora de Walter Benjamin, não se iludir com a ponte do futuro e correr na sua direção. O caminho da classe trabalhadora é a contrapelo, realizar os sonhos e projetos do passado, mas também lutar pela manutenção do patrimônio social que os trabalhadores do passado colocaram em nossas mãos. Se quisermos deixar um Brasil melhor para nossos filhos e netos temos que ocupar, ocupar, ocupar... fazer uma grande greve geral, derrubar esse governo e impedir que o destino do Brasil possa ser conhecido 20 anos antes.