Prof. Dr. José
Luciano de Queiroz Aires (PET-
História/UFCG)
Falar
de patrimônio remete, imediatamente, à associação a “coisa velha” pertencente
às elites brancas descendentes de portugueses colonizadores, cristãs,
heterossexuais e ocidentalizantes, erguido na base material de pedra e cal.
Pior ainda, são lembrados como sujeitos construtores dessa memória/patrimônio, apenas
os homens brancos livres heterossexuais pertencentes as classes dominantes; os
chamados “grandes vultos”, sujeitos individualizados e heroicizados nas suas
ações, desde padres, políticos, militares, juízes, portanto, homens de comando
do Aparelho de Estado e das Igrejas Cristãs hegemônicas no Brasil. A explicação
para essa concepção de memória e patrimônio no Brasil, como bem sabemos, advém
do Estado Novo, quando se criou o Serviço de Proteção ao Patrimônio Artístico
Nacional, no contexto de um Estado de feição nacionalista/autoritário, cuja
legitimidade também foi buscada hegemonicamente no campo simbólico da memória.
Nesse sentido, a seara foi aberta para os intelectuais orgânicos dos arquitetos
que começaram a preparar o tombamento de casas grandes, igrejas e sobrados
coloniais e imperiais, esquecendo as senzalas, os terreiros, os quilombos e
cortiços dos sujeitos de baixo na estrutura econômica e social dos períodos em
questão. Para embasar minha crítica, nada mais adequado do que citar o clássico
poema de Bertold Brecht, Perguntas de um
Trabalhador que Lê:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedras?
E a Babilônia várias vezes destruída -
quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida,
os que se afogavam gritavam por seus escravos
na noite em que o mar a tragou.
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedras?
E a Babilônia várias vezes destruída -
quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida,
os que se afogavam gritavam por seus escravos
na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou quando sua Armada
naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou quando sua Armada
naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Escrito
na década de 1930, o dramaturgo marxista alemão criticava a exclusão dos
verdadeiros sujeitos da história, da memória e do patrimônio. Daqueles
trabalhadores que, coletivamente, ergueram palácios, templos, pirâmides,
muralhas; que foram lutar nas guerras e sequer foram marcados com honrarias,
arcos do triunfo ou estátuas nas ruas; que construíram a civilização e dela não
puderam desfrutar, pois o belo patrimônio arquitetônico que levantaram com muito
suor e força física não lhes pertenciam e sequer nele puderam entrar após sua
construção. Portanto, nos acostumamos a olhar o patrimônio pelo prisma da
beleza estética, falsamente atribuída a quem não pegou uma pedra para começar
qualquer alicerce. Se seguirmos as lições de uma história e memória a
contrapelo, como sugeridas na poesia de Brecht e teorizadas no clássico texto
de Walter Benjamin, faríamos um exercício de educação patrimonial a partir do
olhar do horror e não da sua monumentalidade. Numa concepção benjaminiana de
cultura
(...)
todos os bens
culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem
horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os
criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim
como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura.
Reforçando o que já
foi dito, cumpre mais uma vez destacar que os sujeitos que ergueram o
patrimônio cultural na história da humanidade não se tratam de “grandes gênios”
individualizados, mas a essa “corveia anônima” de trabalhadores, muitas vezes
escravizados, que são relegados ao plano do esquecimento seletivo da memória,
algo do tipo que o filósofo Paul Ricoeur classifica como memória ideológica.
Ainda fundamentado em
Benjamin, convém destacar que muito do que contemplamos do patrimônio pelo olho
encantado da beleza e diante do qual paramos para tirar uma fotografia, esconde
o suor, a exaustão, o sangue e a morte de muitos que participaram para sua
construção. Por isso, não custa repetir que os bens culturais estão manchados
de sangue e esse sangue tem cor, tem classe, tem gênero, tem religião, tem
cultura, no sentido antropológico.
Feita essa
argumentação conceitual, gostaria mais de levantar questões para o debate sobre
Itabaiana, do que mesmo trazer respostas prontas e acabadas. Até porque, não tenho
pesquisas para embasar empiricamente a teoria que defendo para uma concepção de
educação patrimonial a contrapelo.
Já estive aqui outro
dia e fizemos uma visita pela cidade conhecendo o que nos foi apresentado como
os principais lugares de memória itabaianense a ser tombado pelo IPHAEP como
patrimônio cultural. Parece-me que os maiores destaques foram feitos sobre a
memória de Sivuca, o coreto da praça central, o lugar da Batalha da
Confederação Equador, a casa do Major e a ponte sobre a qual passava o trem. Na
oportunidade, foi citada a existência uma parte do cemitério destinada apenas
ao sepultamento de trabalhadores, a existência de cabarés e de sindicatos
rurais e urbanos. Também falamos bastante sobre os documentos da igreja e dos
cartórios e da necessidade da construção de um arquivo público municipal.
Disso tudo, quero
destacar que, se realmente se quer fazer uma educação patrimonial democrática,
inclusiva, é imprescindível começar pelo exercício do diálogo com a comunidade,
envolvendo associações, sindicatos, igrejas e, evidentemente, as escolas. Sobre
estas, sugerimos a inclusão da história local no currículo do ensino
fundamental das escolas municipais e a produção de um livro didático na linha
da memória histórica de Itabaiana.
Contudo, a linha
teórica e política dessa educação não deve seguir as pegadas do positivismo,
pois não deve se propor ao engrandecimento de políticos, religiosos, militares,
fazendeiros, comerciantes, ou grandes vultos da cultura local. Há que se
perguntar sobre o patrimônio intangível que pode está por aí, os saberes,
crenças e práticas da cultura popular que devem sair do anonimato para as
páginas dos riscos e traços mnemônicos. Há que se olhar para o coreto fazendo
perguntas a contrapelo: que foram os trabalhadores que de fato o construiu? A
quem ele serviu? Que políticos a ele subiram para verbalizar discursos
diferentes de projetos políticos efetivos quando chegaram ao poder. Por que não
olhar para a casa do major, perguntando sobre quem de fato construiu aquela
mansão naquelas alturas? E a senzala que está ao lado, não é um bem cultural
manchado de sangue e opressão? E a ponte, tão vislumbrada imediatamente e que
prontamente respondemos “foi construída pelos ingleses”? Por que não educamos
no sentido de perguntar quantos operários trabalharam mais de 10 horas diárias
para levantar essa estrutura de metal sobre o rio? Os proprietários da Great Western cavaram o alicerce,
colocaram vigas, carregaram aço nas costas? Por que os operários dessa empresa
fizeram várias greves no inicio do século XX? E o trem que por ela passava
apitando o progresso, carregava o que? O algodão que era levado para Manchester
e Liverpol para alimentar o capitalismo industrial europeu não era catado pelas
sofridas mãos de meeiros, moradores, foreiros e sitiantes para alimentar a
sanha de coronéis locais? E a feira de mangaio, magistralmente, composta por
Sivuca, que patrimônio seria essa feira? Apenas os mangaios? E os mangaieiros?
Não são os trabalhadores que dão vida a feira, que a movimenta econômica,
politica e culturalmente? Por que não pensar a feira como esse espaço dos de
baixo, principalmente hoje quando ela se encontra tão desvalorizada em razão do
surgimento das redes de supermercados e shopping centers? E os sindicatos e
sindicalistas, tão importantes no processo de luta de classe, porque não
constar na memória? E o cemitério dos trabalhadores, por que não rememorar o
trabalho e os trabalhadores pelo ângulo da morte, muitas das vezes seu caminho
encontrado no terreno da luta de classes? E as prostitutas com seus cabarés?
São essas as questões
que considero importante fazermos para um inicio de conversa a contrapelo. Para
um exercício de educação patrimonial numa linha diferente da contemplação de
meros estilos arquitetônicos ou de uma memória oficial. O engajamento com o
passado só tem sentido a partir do engajamento das lutas do presente, no campo
material e simbólico.
Palestra proferida durante o I Seminário Educação
Patrimonial do Vale do Paraíba, na cidade de Itabaiana, em 16 de novembro de
2017.
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