Prof.
Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)
Escrevo
esse texto, na qualidade de Historiador profissional e estudioso da História
Republicana Brasileira. E não gostaria de começar dessa forma, fazendo uma
espécie de auto-apresentação, mas a conjuntura política atual exige que assim o
faça para afirmar meu lugar de pesquisador contra os vulgarizadores,
banalizadores e irresponsáveis para com a manipulação do conhecimento
histórico. Os fake-news metidos a historiadores.
A
começar do presidente da República, seus ministros e seguidores do “mito” da
extrema-direita brasileira. Intelectuais orgânicos do sistema Capitalista, que se
arvoram ao papel de historiadores sem, ao menos, ter cursado uma disciplina de
metodologia da História. Se é verdade que o saber histórico não é monopólio dos
historiadores profissionais, igualmente verdadeiro é defender que somos os mais
qualificados para narrar sobre o tempo, uma vez que vivemos estudando para
tecer a estrutura narrativa com base na profissionalização que o bom ofício
requer.
Dito
isso, gostaria de iniciar manifestando repúdio à decisão do presidente da
República em ordenar que as Forças Armadas comemorassem o 31 de março de 1964
como “uma revolução que salvou o Brasil do Comunismo”. Igualmente repudiável, é
um vídeo que circula nas redes sociais do dia de hoje agradecendo ao Exército
Brasileiro por ter feito a tal “revolução” para “salvar” o Brasil da suposta “ditadura
Comunista”.
Talvez
fosse pedir de mais a turma de Bolsonaro uma leitura da magnífica obra de Paul
Ricoeur: A Memória, a História, o Esquecimento. Lá eles encontrariam um
filósofo defendendo a “justa memória”, a “memória feliz”, aquela que, em nome
da ética, faz justiça às vítimas e não aos seus algozes da memória e da
História oficiais. Os “heróis emoldurados” verdadeiros vampiros do sangue dos
subalternos, tão criticados pelo samba enredo da Estação Primeira de mangueira
no Carnaval de 2019.
Talvez
fosse pedir bastante aos aprendizes de historiadores que conhecessem a
historiografia brasileira sobre o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar, a exemplo
do clássico livro de René Dreifuss que prova, exaustivamente, baseado em
pesquisa empírica nos arquivos do IPES e do IBAD que havia um bloco do capital
multinacional-associado cujos intelectuais orgânicos atuaram no combate ao
bloco reformista-nacionalista durante a luta de classes anterior a 1964.
Portanto, a articulação em torno das classes dominantes e de parte do Exército,
com apoio de fração da classe média tradicional e da Igreja Católica, tinha por
objetivo derrubar o governo trabalhista de Jango, impedir a continuidade da
Democracia Liberal e frear qualquer possibilidade de reformas que viessem na
linha nacionalista e trabalhista. Portanto, foi um golpe de classe, da classe
dominante contra as classes populares que vinham intensificando sua organização
e práxis na defesa dos seus interesses econômicos, políticos e sociais e
lutando contra a opressão Capitalista.
Assim
como o golpe, a Ditadura Militar que, ao contrário do que diz alguns
historiadores revisionistas, durou vinte e um ano, também foi um regime
político compatível com a natureza classista da dominação burguesa, portanto,
uma Ditadura que matou, censurou, exilou e prendeu a fim de defender os
interesses da burguesia local articulada com sua sócia maior transnacional.
A
Ditadura Militar censurou inúmeras peças de teatro, composições musicais,
novelas e a imprensa de modo geral. Ela não sabe conviver com a crítica, a
contradição e a divergência. A Ditadura fez muitos companheiros e companheiras
deixarem o Brasil, pois não podiam amar o regime autocrático enrolado no
patriotismo verde-amarelo e disfarçado no conceito de Pátria propagado no “Ame-o,
ou deixe-o”. A Ditadura prendeu e torturou àqueles e àquelas que sonhavam com
um mundo mais justo e a tortura é a pior face por que passa o ser humano. Ele
se anula na sua humanidade, diante o pau-de-arara. Parece impotente diante da
máquina da morte, operada por gente da qualidade de Carlos Brilhante Ustra cujo
livro da autoria desse monstro hoje é recomendado pelo governo para ser
utilizado nas escolas e quando o mesmo é instado ao panteão dos “heróis”
brasileiros pelo mesmo governo de plantão e seus seguidores. A Ditadura matou
crianças inocentes, exterminou índios, perseguiu homossexuais. Calou a
resistência em nome da “Ordem e Progresso” e em favor da acumulação de capital
burguesa. Intensificou a intervenção e desmantelamento dos sindicatos
trabalhistas, prendeu e torturou camponeses e camponesas que lutavam por um
pedaço de chão para plantar. Era esse o “crime” cometido, a luta para trabalhar
e produzir para se alimentarem, preço que pagaram alto diante do monstro que os
engoliam ainda vivos. A Ditadura trouxe o agronegócio e o agrotóxico, “modernizou”
o campo através do sistema de crédito, da mecanização e da proletarização dos
agricultores, modelo de agricultura centrada na grande propriedade que ainda
hoje vive a exportar e pouco empregar e alimentar os brasileiros. A Ditadura e
a tortura foram patrocinadas pelas grandes empresas nacionais e multinacionais,
incluindo bancos e empresas de meios de comunicação de massa, sem que até hoje ninguém
tenha respondido pelos crimes cometidos contra os direitos humanos. Por fim, a
Ditadura foi um regime político corrupto e deixou o Brasil em 1985 com uma
crise econômica gravíssima: a concentração de renda, a hiperinflação, o aumento
considerável da dívida externa e a dependência externa cada vez maior em
relação aos Estados Unidos. Qualquer semelhança com a conjuntura atual, não é
mera coincidência.
Portanto,
hoje, passados 55 anos do Golpe Militar, não é momento de comemorar, pois a
comemoração de regimes autoritários dessa natureza viola princípios caros de
civilidade e humanidade. É preciso rememorar criticamente, de preferência
ouvindo os historiadores profissionais a fim de que lutemos no presente para
que experiências dessa natureza não se repitam. Façamos justiça às vítimas do
passado, enfrentar governo que namora com a Ditadura é fazer a redenção
benjaminiana do passado ao presente, é denunciar os algozes e fazer justiça às
vítimas. Lutar contra o fechamento do regime atualmente é dever de todos que
conhecem, na prática ou nos bons livros de História, o que se passou naquelas
décadas sombrias. Ter consciência histórica crítica nesse momento é fundamental
para fazermos a grande política. Nessa seara, os bons historiadores deverão
prestar um grande serviço ao país.
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