José Luciano de
Queiroz Aires
A
escritura desse artigo, para mim, é bastante dolorosa. Isso porque, aos 20 anos
de idade (1994), mesmo sem ser petista filiado eu já era um petista apaixonado,
um jovem que entrara no curso de História da UEPB que acreditava na mudança das
estruturas políticas e socioeconômicas desse país e, por isso, votara em Lula e
Dilma. Vibrei bastante em 2002 quando Fernando Henrique Cardoso passou a faixa
presidencial ao primeiro operário Presidente da República e, mais ainda, quando
o operário repassou a faixa verde amarela para a primeira mulher a ocupar esse
cargo. Hoje, meu sentimento é outro, é de desilusão com a “nossa Democracia” e
de descrença nos partidos políticos, uma posição anárquica parece saltitar
dentro de meu peito. E como dói dizer isso, mas é preciso ser um
eleitor/cidadão autocrítico, para não tapar o sol com a peneira.
Estive
em Brasília, dia 28 de março, participando da Marcha dos funcionários públicos
federais que se dirigiu ao Ministério do Planejamento a fim de pressionar o
governo no sentido do atendimento de uma pauta de reivindicações. Do encontro
entre os sindicatos representantes da classe dos funcionários federais com
Sérgio Mendonça, representando o governo, ouviu-se um NÃO para qualquer
possibilidade de reajuste salarial para 2012. Dos sete pontos constantes na
pauta, apenas três foram discutidos, fazendo com que o governo remarcasse uma
nova audiência para o dia 24 de abril, apostando na desmobilização de nossa
categoria.
Enquanto
isso, eu direcionava olhares para Brasília e como historiador só lembrava as
leituras de história brasileira republicana que faço desde os tempos de
graduação. Minha primeira vez na capital da República tangia meus olhos para
apreciar a arquitetura modernista de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, talvez
aquilo que mais me agradou como marinheiro de primeira viagem perdido no meio
do centro político do Brasil. Assim, depois do NÃO do governo, fomos ao
Congresso Nacional participar de uma discussão sobre Fundo de Previdência
Privada para aposentadorias de funcionários federais. No auditório Senador
Petrônio Portela, muitos palestrantes estudiosos do assunto explicavam-nos as
desvantagens desse projeto de lei já sinalizado em 1998 por FHC e agora enviado
ao Congresso pela presidente Dilma Rousseff. Os oradores ressaltavam que em
outros países como Chile, Argentina e Estados Unidos, o fundo de previdência
privada não só faliu como apenas funcionou no sentido de favorecer o grande
capital financeiro privado (banqueiros) que dele procura tirar proveito.
Falou-se tanto em Karl Marx e no capitalismo que lembrava alguns colegas
historiadores que falam da “falibilidade” do materialismo histórico. Nunca vi
Marx tão atual como naquela hora.
Perto
do fim da tarde houve um comunicado de que, às 18 horas, o Senado Federal
votava o referido projeto. Cogitou-se que deveríamos nos deslocar para as
galerias da “nossa Casa” a fim de pressionar os senadores na hora do voto à
matéria. Nossa!, nunca vi tantos restos autoritários, tantos pedaços de
ditadura militar diante de nossa frente. De modo que, ao entrar no Senado
Federal, pela primeira vez, meu sentimento era o de que “nossa Democracia”, tão
decantada como consolidada, não passa de uma farsa, de um teatro político como
denunciou Roger Gérard-Schwartzenberg para a Europa do pós II Guerra. Faço
questão de rememorar alguns encalços autoritários que estiveram à nossa frente.
Para
inicio, nós do ANDES subimos as escadas do Congresso Nacional vestindo camisa e
portando um boné com a simbólica cor vermelha. E daí em diante não houve como
não lembrar o texto Vigiar e Punir, do filósofo francês Michel Foucault. Diante
de nossa frente estava uma engenharia vigilante, um poder disciplinar, intitulada
de Polícia do Senado. Depois de muita burocracia para ter acesso às escadarias
que nos levavam às galerias do Senado, fomos, literalmente, proibidos de entrar
naquelas dependências. A polícia e os funcionários olhavam-nos como supostos
“baderneiros”, perturbadores da ordem pública, justificando que não poderíamos
mais entrar no Senado por que já passavam das dezessete horas. Entretanto, o
caldo foi engrossando, mais professores foram chegando, fizemos uma pressão até
conseguir adentrar na nossa “própria Casa”. Quando chegamos ao recinto, muitos
senadores já haviam se manifestado a respeito da matéria e, em pouco tempo,
assistíamos “nossos representantes” aprovarem uma privatização da previdência
do servidor público federal.
Mas,
afinal, ainda deu tempo para lembrar as leituras da teatralização do poder que
fiz, recentemente, na minha Tese de Doutorado. Com alguma alteração na
geografia simbólica, em cima, estávamos os sujeitos mais interessados na
matéria (pelo menos, do ponto de vista de uma cidadania para os trabalhadores
no futuro), engaiolados num poleiro, impotentes, vigiados, passiveis de
punição, com direito de expressão, de certa forma, cerceado. Lá embaixo,
estavam “nossos representantes”, munidos de muitíssimo mais poder do que nós. E
do pouco que deu para ver, PT e PSDB abraçados, irmanados na defesa do projeto,
brigando apenas pela paternidade da criança. Os petistas e peemedebistas, base
da Presidente, festejavam a matéria chegando a dizer que, com sua aprovação,
corrigia-se o déficit da Previdência Social e o governo poderia reajustar, com
mais facilidade, o salário dos funcionários. Que maravilha!!!!! O PSDB, por sua
vez, chamava o pioneirismo para si, enaltecia a iniciativa de Fernando
Henrique, barrada, segundo eles, em 1998, pela então oposição petista. Foi isso
que ainda ouvi do discurso do paraibano Cássio Cunha Lima que se pronunciou,
favoravelmente, ao projeto, agora enviado pelo governo do PT.
O
tempo todo olhava para o placar eletrônico, especialmente para os nomes dos
paraibanos Cássio Cunha Lima, Vital do Rego Filho e Cícero Lucena. Até que
chegou a hora da votação. O senador Rondolphe Rodrigues (PSOL), que havia
solicitado votação nominal sumiu do plenário e, por isso, a votação não ocorreu
conforme o mesmo havia solicitado, para a tristeza de alguns colegas
simpatizantes do PSOL que tanto confiaram no mencionado senador.
Continuemos
falando dos encalços autoritários. Não podíamos entrar no Senado de boné, um
símbolo das lutas operárias desde o século XIX que ainda assusta a burguesia
engravatada de nosso país. Não podíamos portar aparelho celular (por que
será?), mas José Sarney, em plena condução de presidência dos trabalhos, falava
o tempo todo ao celular. Não podíamos conduzir máquinas fotográficas, nem
registrar nada por escrito, pois isso cabe a grande mídia e a imprensa oficial
do Congresso nacional. Não podíamos, de modo algum, se manifestar nas galerias.
Isso estava escrito à frente das poltronas que estávamos sentados. É que o
“povo” não pode nada, nem deve querer poder, pois isto é confiado aos
parlamentares que tudo pode em nome da representação do “povo”.
Porém,
como nos ensina Michel de Certeau, ao poder disciplinar e vigilante correspondem
táticas de resistências sutis, pequenas revoluções cotidianas que, pelo ângulo
do não lugar, se contrapõe às estratégias. Começamos, então, a usar a linguagem
gestual, ela também portadora de significados e códigos. A cada discurso de
apoio à matéria, gesticulávamos com o polegar declinando para baixo, diante de
tantos chamados de atenção pela campainha do Senado e pela sua polícia. Quando
a matéria foi aprovada, passamos da mímica para o canto e, em coro, levantamos
e saímos cantando: “PT PAGOU COM TRAIÇÃO, A QUEM SEMPRE LHE DEU A MÃO”. A essa
altura, a campainha da casa não parou de tocar, o senador que estava
discursando, deu pausa a sua oratória, enquanto nós, professores universitários,
éramos advertidos por uma mesa composta por José Sarney e Renan Calheiros. Que
tristeza!!!!!!
Para
finalizar os encalços ditatoriais, pedia um colega para fazer uma fotografia
sentado na rampa do Congresso e o resultado foi
que a guarda chamou a polícia, de maneira que, enquanto eu posava diante
do simbólico Parlamento da “Democracia” brasileira, chegava uma viatura da
polícia para tirar minha bunda de cima da “aurática” rampa, aparentemente
intocável e sagrada. Que decepção!!!!!! Volto à Paraíba, volto à universidade
muito decepcionado, desencantado, mas bastante crítico.
Primeira
crítica, ao PT. Quando Lula se candidatou em 1989, 1994 e 1998, seus cabos
eleitorais, em grande maioria, éramos nós no interior das universidades. A base
eleitoral do PT era a classe média, notadamente, segmentos intelectualizados
encantados pelo discurso esquerdizante e pela proposta revolucionária
assentadas no projeto político encabeçado pelo ex-operário do ABC Paulista. Em
2002, 2006 e 2010, O PT já não era o mesmo, e isso não é grande novidade para
nós. Aliou-se com o grande capital e com as tradicionais oligarquias, selando
acordos políticos, por exemplo, com José Sarney e José de Alencar. Só assim
chegou ao governo. Manteve níveis históricos de popularidade tendo nos projetos
sociais (isso não se pode tirar o mérito), o braço direito propulsor dos
índices de aprovação nacional. Entretanto, não devemos obscurecer que os
governos Lula e Dilma continuam a política neoliberal iniciada por Collor e sedimentada
por Fernando Henrique. Há um grande comprometimento com o grande capital
nacional e internacional, a exemplo do projeto que vi o Senado aprovar, criando
previdência privada. Não resta dúvida, estamos retroagindo no tempo e perto de
perder as conquistas trabalhistas que os trabalhadores do passado tanto lutaram
para conseguir. Resultado: dessa viagem a Brasília o PT perde não apenas um
eleitor, como também um cabo eleitoral, e ainda ganha um crítico, na sala de
aula e na escrita de meus textos. Pelo menos, essa é minha posição atual. Para
a conjuntura atual. A burguesia que outras vezes apoiou Collor e Fernando
Henrique, respectivamente, sai ganhando consideravelmente em relação a nós que
estávamos sempre com Lula e hoje amargamos congelamento de salário e
privatização da previdência.
Segunda
crítica, a Democracia liberal burguesa. E quanto lembrei colegas, professores
universitários, que tanto defendem esse regime político. Volto a ressaltar com
Schartzenberg, a Democracia representativa é um engodo, é um teatro, o que não
quer dizer alienante e, absolutamente, manipuladora de massas. Entretanto,
inegavelmente, é um teatro que tem luz e tem sombra, que visibiliza/dizibiliza,
mas também procura ocultar outros temas e personagens que atuam nos bastidores da
política. No placo eles procuram brilhar, chamar atenção para si, galgar
capital político/simbólico e econômico/social, legitimidade. Nos bastidores,
“nossos” deputados e senadores, no geral, defendem a propriedade privada, a
concentração de renda, a corrupção, o financiamento de campanhas, o
oligarquismo político, as desigualdades de classe e de gênero e os preconceitos
de orientação sexual e religiosa. Eles dizem isso quando sobem à tribuna
(palco)? Isso não existe na cultura política brasileira? Não se pratica um
pouco fora da iluminação do palco?
A
maior ambuiguidade da Democracia representativa esteve diante de meus olhos na
atitude do Senado. Nós, os trabalhadores, defendendo a não privatização da
previdência. “Nossos representantes”, atuando na contramão, apenas demonstrava
quem de fato eles representam. Ora, se é Democracia representativa, por que os
parlamentares não ouviram seus representados? Pelo contrário, ignoraram,
exceto, para chamar atenção no processo de vigilância e defesa da famosa ordem
pública. Para mim, caía a máscara da Democracia representativa, uma vez que
representados e representantes sequer conversaram, até porque diálogo mesmo
deve ter ocorrido nos bastidores da política com os “reais” representados, a
saber, os donos do grande capital.
É
preciso dizer/fazer essa desconstrução discursiva da Democracia representativa.
É necessário ler, estudar, pesquisar, criticar a respeito dos “nossos
representantes” e seus papeis na politica brasileira. A biografia de cada um é,
substancialmente, relevante e reveladora da sua atuação na política. Fazem-se,
significativamente, imprescindíveis seguir os passos de “nossos
representantes”, uma vez que eles pintam e bordam, muitas vezes sem nosso
acompanhamento. Eles sabem que não são tanto (per)seguidos por nós, talvez por
isso fazem/votam em Brasília tantas coisas que nós não nos esforçamos para
querer saber. E assim, depois de uma semana de “trabalho” em Brasília, regada a
luxo e ostentação de privilégios que os representados não têm, lá vêm eles às
tão famosas bases eleitorais trazendo um quinhão retirado do milhão, dos
“reais” representados que são os donos do capital. Não nos enganemos, o pouco
que é colocado a serviço dos direitos sociais, esses, por sua vez, conquistados
a duras penas pelos movimentos sociais, é uma pequena parte que nos cabe desse
latifúndio, para lembrar a poesia de João Cabral de Melo Neto. O grosso da
fortuna é dividido para a corrupção e para as classes hegemônicas dessa
República que até ofende ao sentido etimológico do temo em latim. Afinal de
contas, a maioria de nosso Congresso Nacional é composta por latifundiários ou
por defensores do agronegócio, por isso, nunca se fez uma Reforma Agrária
democratizante nesse país; por uma grande bancada religiosa defensora de uma hegemonia
cultural cristocêntrica e de interesses materiais/financeiros que permeiam o
campo das religiões majoritárias, por isso, não se legisla combatendo a
homofobia e as corrupções daí decorrentes; por representantes da grande mídia
privada, da política de concessões de canais de rádio e TV, por isso, tanto se
embarga os projetos de rádios comunitárias que, em tese, devem está a serviço
dos movimentos sociais e associações comunitárias. Isso apenas para colocar
alguns exemplos.
Terceira
crítica, aos partidos políticos. Essa crítica está interligada às anteriores.
Hoje, me parece sem sentido falar de Direita versus Esquerda. Qual a diferença,
em se tratando de projeto político/ideológico entre PSDB, PMDB e PT, para ficar
apenas com os exemplos mais emblemáticos? Se há diferença, é mínima.
Semelhantemente, defendem os interesses capitalistas, da grande propriedade
privada, da reprodução do capital, de um certo fetiche pelo mercado, de uma
desestatização dos direitos trabalhistas, resguardadas as pequenas diferenças
conjunturais. As divergências partidárias ficam por conta muito mais das
disputas de poder, por controles de ministérios, comissões de orçamento, e uma
imensa quantidade de cargos na burocracia federal. Mantêm-se, em certo sentido,
ainda a lógica implícita aos partidos do Império, no qual Oliveira Viana já
dizia que “nada mais conservador do que um Liberal no poder, e nada mais
liberal do que um Conservador na oposição”.
Quarta
crítica, a alguns professores universitários. Muitos de nós, orgulhosos do
título de Doutor, vivemos trancafiados no interior dos muros acadêmicos, arrotando
teorias e colecionando vaidades. Insensíveis ao mundo lá fora, são intelectuais
orgânicos, no sentido gramsciano, pois, indiretamente, legitimam a hegemonia de
grupos e classes sociais privilegiad@s. Na universidade, conjuga-se o verbo
sempre precedido pelo pronome possessivo a sugerir individualismo e
competitividade, acompanhando as políticas neoliberais: MEU curriculum lattes,
MEU artigo na revista internacional, MEU projeto CNPQ... Infindáveis MEUS, com
o esquecimento total do NOSSO. Por isso, tanta coisa acontece à nossa frente e
com a anuência da academia e seus doutores que vivem, meramente, a disputarem
cargos e reproduzirem a cultura política do clientelismo. Com isso, quem
agradece é o capital, uma vez que não teme mais os intelectuais que parecem
quebrados na sua espinha dorsal com os abalos da queda do Muro de Berlin. Essa
filosofia política não me agrada. O conhecimento científico já fora,
demasiadamente, utilizado para favorecer o paradigma da modernidade
racional-instrumental, o saber já cartografou, classificou, delimitou, incluiu,
excluiu, estereotipou... O saber, como
instrumento de poder e ligado ao poder do Estado Nacional Moderno e do
Imperialismo, como bem notara Edward Said, já serviu à dominação do homem pelo
homem. E parece continuar a fazer isso, em grande medida. Para mim, o
conhecimento deve está a serviço da vida, do ser humano em sua complexidade e
horizontes de expectativas, dos herdeiros de projetos que no passado foram derrotados
ou impedidos.
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