sexta-feira, 16 de outubro de 2015

MAIS UM CAPÍTULO DA TRAGÉDIA DE SUMÉ

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Antes de mais nada, gostaria de dizer da minha indignação com o assassinato do garoto Everton e do inocente Batista e que seja feita justiça, punindo todos os envolvidos de acordo com a legislação vigente. Estou iniciando esse texto, fazendo essa justificativa, porque circula pelas redes sociais comentários do tipo que eu estaria mais preocupado em defender as religiões de matriz afro-ameríndias do que mesmo com a morte brutal do garoto. O que não é verdade, pois, indiscutivelmente, toda uma região está de luto e há uma revolta coletiva com o assassinato do garoto e, sobretudo, pela forma fria, calculada e selvagem como se deu. Quando escrevi o primeiro texto, esbocei uma preocupação política que circula no entorno do lamentável fato. E volto a escrever para reforçar minha preocupação.
Estive em Sumé e Serra Branca entre ontem e hoje. O assunto não é outro senão esse. A revolta das pessoas é perfeitamente compreensível, contudo, ouvi de várias bocas a reprodução discursiva das notícias que circulam nas mídias televisiva, radiofônica e digital. Após a conclusão da investigação policial na qual alguém que se denomina e é denominado “pai de santo” confessa os detalhes do macabro ritual, tem se acentuado o discurso que relaciona o ocorrido em Sumé com as religiões de matriz afro-ameríndias. Defendo que devemos repudiar e punir o sacrifício de Everton sem cair na generalização, no desconhecimento e no preconceito para com os umbandistas, candomblecistas e juremeiros do Brasil, de modo geral e do Cariri, de modo específico.
Acompanhado de mais dois professores do CDSA-UFCG, fui conversar com os pais e mães de santo que entrevistamos para o projeto que coordeno junto ao Ministério da Cultura. Fomos prestar solidariedade e formalizar apoio e parceria entre a universidade e os terreiros. Um deles nos contou que no trabalho tem ouvido vários tipos de preconceitos, coisa do tipo “isso é coisa de macumbeiro”. O preconceito é uma construção histórica e cultural, principalmente em uma região colonizada juntamente com a ideologia da Igreja Católica, mas o conhecimento histórico, antropológico e sociológico deve desconstruir determinados estereótipos identitários.
Os terreiros de Pai Inacinho, Madame Jô, Sandra e Antonio Graxuá (Sumé) e de Pai Washington, Pai Lima e Pai Dinei (Monteiro), até onde pude perceber são de tradição umbandista cultuando os orixás (na tradição afro) e os mestres, boiadeiros e caboclos (na tradição da jurema). Na Umbanda ocorrem sacrifícios de animais e oferendas como bebidas, cigarro, flores, perfumes, comidas de santo (acarajé, arroz, farofa, abóbora, frutas, etc). Os rituais mais realizados são as festas aos orixás e a entrega de oferendas no mar (caso de Yemanjá), no rio (caso de Oxum) ou na pedreira (caso de Xangô). No ritual da jurema, o toque envolve o uso do cachimbo e bebidas, pois os mestres, boiadeiros, preto-velhos e índios vêm ao terreiro para beber e dançar. Nos trabalhos realizados a pedido de consulentes e filhos da casa, os casos mais procurados são relacionados ao amor e são feitos com maçã, mel, fitas coloridas, bonecos de pano, champanhe e cigarro ofertados a exu e pomba gira. Portanto, desconheço a existência de práticas de sacrifícios humanos em rituais de Umbanda e Candomblé. Se alguém o faz, acredito que não são práticas condizentes com a tradição afro-ameríndia que conhecemos, cultuamos e respeitamos.
Outro ponto importante a ser destacado se refere ao fato do processo de iniciação e feitura de um pai e mãe de santo. Para ser considerado Babalorixá (pai de santo) ou ialorixá (mãe de santo), o iniciado faz oferendas aos seus orixás de cabeça e passam alguns dias trancados no quarto do santo (peiji, camarinha) tendo contato apenas com a mãe da casa. Em alguns terreiros são raspados e catulados. No dia da saída do quarto ocorre uma festa na qual uma mãe, um pai e uma madrinha de santo lhe entrega um anel de búzios (espécie de anel de formatura), uma faca (mão de faca=significa que agora ele ou ela já podem cortar para o orixá) e o presidente da Federação de Cultos Afros entrega um diploma. A partir daquele momento, aquela pessoa que estava em obrigação no quarto do santo se torna babalorixá ou ialorixá e, apenas, a partir de todo esse processo de ritualização da feitura do santo, essa pessoa pode abrir um terreiro e pode ser considerado pai ou mãe de santo. O terreiro tem que ser vinculado à Federação e esta expede um documento permitindo a abertura da casa.
Essa é a forma de tradição religiosa que defendemos contra o preconceito e a intolerância religiosa. E essa tradição não tem nada a ver com charlatões nem sacrifícios humanos. Entretanto, o que está ocorrendo no Cariri é a imediata vinculação do ritual nefasto sobre o sangue de Everton com as boas tradições umbandistas e candomblecistas. Isso não ajuda muito, pois consciente ou inconscientemente, reforça o preconceito religioso e ainda incorre num erro grosseiro de generalização por desconhecimento.

Espero que o caso seja inteiramente elucidado e punido pela policia e pela justiça, mas que não cometamos violência simbólica para com os terreiros do Cariri Paraibano que já sofrem pela invisibilidade e demonização. Não esqueçamos que pelo Brasil a fora terreiros têm sido invadidos e o povo do santo também tem sido violentado fisicamente. Espero e apelo, ainda, que a mídia que tem dado tanto destaque ao fato abra espaço para que o conhecimento possa explicar as religiões afro-ameríndias por um prisma da desconstrução de equívocos e estereótipos e que os diretores de escolas e gestores municipais cumpram as Leis 10.639 e 11.645 que obrigam a inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares. A falta de conhecimento leva à cegueira, às generalizações e visões de mundo preconceituosas. Espero e conclamo, ainda, que após as conclusões das investigações, as Federações de Cultos Afros no estado da Paraíba possam se pronunciar sobre o ocorrido em Sumé e apoiar os terreiros caririzeiros. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

CRIANÇA MORTA EM RITUAL DE “MAGIA NEGRA” NA CIDADE DE SUMÉ?

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Acabo de assistir no JPB- 2ª edição, que o delegado João Joaldo Ferreira, titular da Delegacia Seccional de Monteiro, trabalha com a hipótese de que o assassinato do garoto, na cidade de Sumé, fora realizado por razões de rituais de “magia negra”. Imediatamente, parei com o que estava fazendo, para publicar minha opinião sobre o assunto. E o faço por várias preocupações políticas e éticas que o tema demanda.
Nem quero aqui entrar no debate semântico que implica a denominação de um rito da Umbanda ou do Candomblé como sendo de “magia negra”, como se do outro lado pudesse haver uma magia “menos mal”, embranquecida e revestida pela adjetivação menos racista. O que me preocupa, nesse momento, é que o delegado e a mídia deveriam ser mais cautelosos quando ainda se trabalha com hipótese de um crime, pois a veiculação de uma matéria desse porte em uma sociedade cristocêntrica e preconceituosa para com as religiões de matriz afro-ameríndias, certamente reforçará o estigma da demonização construído historicamente sobre elas. O pior é que muitos jornalistas e delegados sequer leram ou tem um conhecimento razoável sobre a Umbanda e o Candomblé e, assim, sem o rigor do conhecimento científico não podem, senão, cair no sensacionalismo que o assunto pode promover.
A palavra de um delegado de polícia ou de um jornalista tem um poder de autoridade no dizer, tem poder de credibilidade para muitos, pois são apresentadas como “imparciais” e “verdadeiras”, quando na verdade se tratam de visões de mundo subjetivas e interessadas. Não é de se espantar que, a essa altura, muitos telespectadores já estejam comentando que uma criança foi sacrificada em ritual de “magia negra” na cidade de Sumé, pois os consumidores da mídia nem sempre são ativos, trapaceiros e resistentes. Assim, informações desse tipo, num contexto de avanço da extrema direita fascista no Brasil, ajudam a reforçar esse projeto de Brasil intolerante para com o povo do santo.
Gostaria de dizer que há 15 anos conheço vários terreiros na Paraíba, inclusive estou concluindo um trabalho de pesquisa, financiado pelo Ministério da Cultura, intitulado O SEMIÁRIDO PARAIBANO TAMBÉM É AFRO-BRASIELIRO: A PRODUÇÃO DE MEMÓRIAS DOS TERREIROS DA REGIÃO. Durante esse projeto, entrevistamos vários babalorixás e ialorixás nos municípios de Cajazeiras, Sousa, Monteiro e Sumé e nunca vi, nem ouvi nada referente a sacrifícios de crianças em rituais de Umbanda e Candomblé. Portanto, se algum terreiro ou alguma pessoa que se identifique como pai de santo ou mãe de santo sacrificou essa criança encontrada nas matas do município de Sumé, essa pessoa precisa ser presa e responder por homicídio conforme reza a legislação vigente, mas, para isso, o delegado e o JPB precisam dar uma resposta à sociedade sem generalizações e com responsabilidade e conhecimento político das religiões de matriz afro-ameríndias.
Gostaria de conclamar o Pai Washington, o Pai Lima e o Pai Dinei, (todos de Monteiro) e Madame Jô, Sandra, Pai Inacinho e Antonio Graxuá, (todos de Sumé) a acompanharem os resultados do inquérito policial e das informações midiáticas a fim de que estes representantes de terreiros na região do Cariri não possam ser responsabilizados por, supostamente, serem associados a comandar uma religião que sacrifica crianças.
Repito: vamos esperar o resultado das investigações policiais, mas desde já, caso se confirme a hipótese do delegado, que fique bastante claro que esse tipo de sacrifício não faz parte da Umbanda, da Jurema e do Candomblé cujos terreiros são filiados a uma Associação de Cultos Afros. Cuidado com o que a mídia diz, pois eles adoram matérias desse tipo para fazer sensacionalismo. Caso a hipótese do delegado não se confirme, a equipe do JPB deveria ser acionada para desconstruir a matéria estereotipada de hoje. A grande mídia brasileira é isso aí: ela e você, nada a ver.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

2015: UMA GREVE NECESSÁRIA E DERROTADA

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires

A greve é uma instituição política inventada durante a Modernidade, mas ainda um importante instrumento da luta de classe na Pós-Modernidade. Até que se prove o contrário, outros tipos de enfrentamentos, embora necessários, não substituirão o movimento paredista a ponto de minar sua existência. Pelo menos, não agora.  Igualmente importantes e necessários, são os sindicatos da classe trabalhadora na qualidade de instituições representativas de uma luta coletiva contra o capitalismo e os interesses das várias frações burguesas de classe. Enterrar a greve e o sindicato no túmulo do passado, como algo superado no tempo, em favor do novo que ainda não nasceu nem sabemos como será, significa assinar o atestado de óbito de experiências vitoriosas de lutas coletivas no âmbito do movimento sindical.
O ANDES-SN é exemplo desse movimento sindical classista, democrático nas decisões (sempre consultando as bases) e combativo, isso porque não expressa a velha tradição corporativista da Era Vargas, mas atua na linha da autonomia em relação ao aparelho de Estado. Entretanto, outros sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais, estudantis e populares, optaram pelo “peleguismo” e, desde a chegada do PT ao governo brasileiro, trocaram a linha de frente do combate classista pelo aparelhamento na burocracia estatal, sempre alisando no pelo dos governos Lula e Dilma. Talvez, essa cooptação seja um dos fatores fundamentais que impossibilitam a construção de uma greve geral no país. Defender o mandato da presidente passou a ser a bandeira mais importante nesse difícil ano de 2015.
Nesse sentido, defendo que a greve construída no âmbito do Fórum dos Servidores Públicos Federais e, particularmente, no setor da Educação (ANDES, SINASEFE, FASUBRA, ANEL e oposição de esquerda da UNE), foi mais do que necessária e oportuna. No contexto de um mandato presidencial que foge, completamente, a linha ideológica prometida no debate da campanha e que trai os segmentos de esquerdas que foram decisivos no 2º turno, não resta outra coisa, a nós, senão parar as universidades e tentar parar o país. Quando deflagramos a greve, acusavam-nos de tentar desestabilizar o governo e de que o ajuste fiscal era algo inelutável, como uma estrutura de rocha na qual os sujeitos grevistas iriam bater a cabeça e quebrar a cara. Contra esses argumentos eu diria: não somos e não fomos nós quem desestabilizou o governo, mas os próprios caciques que andam diariamente no interior do Palácio do Planalto; e mais, partir numa luta com certo fatalismo e ceticismo não é o mais recomendável, o fazer-se da classe se dar na experiência da luta e o futuro é incerto, mesmo avaliando a correlação de forças desvantajosa para nós trabalhadores. Por isso, melhor lutar jogando a cabeça na rocha dura do capital, do que se conformar com um status quo vigente que governa para o grande capital financeiro, empresarial e agroexportador.
Fizemos nossa parte. Durante três meses paramos para discutir a universidade que queremos, fomos às ruas e as praças, gritamos na frente e no interior da reitoria, ocupamos o gabinete do Ministro da Educação. Somos poucos, mas corajosos e audaciosos, conscientes da importância da defesa de um projeto de universidade pública, gratuita e laica, uma universidade que se expanda para o acesso e a permanência de pobres, negros, índios, camponeses e não o projeto privatista do governo federal com o aval dos reitores que preferem a terceirização, a precarização das condições de trabalho, o fim da gratuidade de alguns cursos no interior das universidades públicas e os cortes no orçamento público destinado a educação. Muito mais do que apenas reposição salarial (que um direito constitucional que conquistamos), reestruturação da carreira, autonomia universitária, paridade entre ativos e inativos, nosso grito em 2015 foi contra o FIES, contra a privatização, contra o desmonte do serviço público, contra o ajuste fiscal e cortes de verbas, contra o fim de projeto como o PIBID e PET. Nesse particular, avalio como positiva nossa participação, mesmo sendo vozes isoladas no interior das universidades. Nós enfrentamos os gigantes do capital, o Estado Burguês e os reitores complacentes, não é uma luta fácil, mas importante e necessária.
Por outro lado, passados quatro meses de greve, considero que fomos derrotados nessa batalha, o que não significa perder as esperanças de continuar o combate e construirmos outras batalhas. E perdemos por várias razões que gostaria de mencionar: a) O governo não dialoga com nossa pauta setorial, o ministro da Educação sequer nos recebeu para o debate; nosso projeto de universidade diverge do projeto governista, pois enquanto este retira verbas das universidades públicas repassa milhões via FIES e Prouni para os grandes grupos empresariais que mercantilizam a educação; b) quanto mais a greve se estendia, mais o governo caminhava na contramão do lado da classe trabalhadora. Vieram mais cortes, inclusive na pós-graduação ao passo em que a Agenda Brasil e o ajuste fiscal foram sendo acionados sinalizando com mais impostos, mais retirada de direitos trabalhistas e mais criminalização de movimentos sociais e repressão; c) o MEC não tem autonomia, quem define tudo é o MPOG e o Ministério da Fazenda, os ministérios do ajuste e dos banqueiros; d) no interior da nossa universidade não contamos com o apoio da administração central, tivemos que fazer pressão para o reitor abrir as contas e mostrar o impacto dos cortes, isso sem falar que várias reuniões de câmaras foram convocadas a revelia do comando de greve, o que demonstra um desrespeito para com as categorias em greve; e) tivemos que gastar tempo com fura greve, profissionais que não respeitaram as deliberações democráticas da Assembleia e insistiram em trabalhar e nos dá trabalho; f) muitos companheiros que votaram em favor da greve não formaram conosco no comando local de greve, reforçando o esvaziamento da luta e a sobrecarga de atividades para poucos militantes; g) muitos estudantes desqualificaram, vergonhosamente, os professores sindicalistas, expressando uma fraseologia de triste memória a denominar-nos de “vagabundos”; h) esses argumentos anteriores, significa que no interior das universidade ocorre também o desmonte de um pensamento crítico e uma visão de mundo coletiva, conduzindo a maioria dos estudantes e professores a abraçarem a ideologia neoliberal da fragmentação, do individualismo, da competitividade e do conformismo.
Por essas e outras, entendo que chegar a quatro meses de greve apenas com uma proposta governamental de um índice de reajuste salarial muito abaixo da inflação é a derrota da classe trabalhadora e da universidade pública e a vitória do capital financeiro e empresarial que engorda suas contas por dentro do aparelho de Estado. A luta de classe é sempre desfavorável para os trabalhadores, pois os lugares políticos e sociais ocupados são assimétricos e ainda temos que contar com as fissuras e conflitos no interior da luta docente, por exemplo. Dividir para reinar é a lógica do governo. E muitos professores e estudantes têm caído nessa lógica fazendo a briga errada.
Para finalizar, gostaria de agradecer a tod@s @s estudantes que se juntaram a nós nessa luta, o movimento estudantil é brilhante, vigoroso e aguerrido e tem muito a contribuir nas trincheiras da resistência.