terça-feira, 17 de novembro de 2020

“LUGAR DE FALA” E INTELECTUAL BRANCO

 





José Luciano de Queiroz Aires

Me chamo José Luciano de Queiroz Aires, professor de História do Brasil pela UFCG, militante da Resistência/PSOL e do ANDES-SN, tutor do PET História, trabalhador, branco, nascido e vivido por mais de 27 anos no campo, portanto, filho de agricultor/mangaero e professora primária/dona de casa. Nunca fui muito apegado à roça, sofria de asma e meus pais diziam que “eu tinha nascido para estudar”. Frequentei a vida toda o ensino público e gratuito, do primário ao doutorado e meus pais fizeram de tudo para que eu conseguisse fazer um curso superior. Vim para Campina Grande fazer a Escola Normal em 1989 e depois o curso de História em 1994 morando na casa dos outros. Chorava horrores, porque queria mesmo o aconchego do lar familiar que ficava há 130 Km de distância, no sítio Campo Grande. Com muita luta consegui me formar em História, quando, aos 18 anos, já era professor da rede estadual de ensino. Fiz mestrado e doutorado sem bolsa e trabalhando na universidade, fazendo da migalha de professor substituto um verdadeiro milagre que custeasse os estudos e a reprodução da minha força de trabalho. Hoje coordeno projeto de extensão na Comunidade Quilombola do Grilo e faço parceria política com o Movimento Negro de Campina Grande.

Não pretendia escrever um parágrafo tão carregado na primeira pessoa do singular, mas fui provocado por um professor universitário negro a escrever esse texto. Na última semana recebi um convite da Escola Nossa Senhora de Lurdes, da cidade paraibana de Cajazeiras para proferir uma palestra para estudantes do Ensino Médio cujo título era “A CONDIÇÃO NEGRA NO BRASIL ONTEM E HOJE”. Ao postar o card do evento no meu instagran- (a imagem que abre esse texto)-, um professor universitário negro comentou o seguinte: “lugar de fala meu querido, chama alguém negro para falar”. Após essa intervenção, voltei ao livro de Djamila Ribeiro, ao qual já havia lido antes do brilhante texto de Sílvio Almeida escrito para a mesma coleção.

Embora tenha uma série de divergências teórica e política com Ribeiro, às quais não cabem aqui serem apontadas, penso que o livro dela não caminha nessa direção que virou senso comum, a de que apenas pessoas negras possam falar, pesquisar e estudar a questão racial. “Lugar de fala”, segundo ela, não é um conceito para se aplicar a uma análise individual, mas aos grupos historicamente excluídos e marginalizados pelo o lugar que ocupa na sociedade que distribui privilégios para uns e exclusão para outros. Tampouco parece a autora pretender “proibir” que intelectuais de grupos sociais brancos possam falar sobre raça e racismo. Nesse sentido, o professor que exigiu minha retirada da palestra em nome do conceito de “lugar de fala”, ou não leu, ou não compreendeu muito bem o livro da Djamila Ribeiro.

Iniciei o texto numa concepção individual justamente para mostrar o equívoco do professor ao tratar da questão. Mas se fosse o caso de entender o assunto de forma individual, advogaria minha legitimidade na exposição da palestra, pois apesar de ser branco e nunca ter sofrido racismo, sou um professor de História do Brasil que estuda e ministra aulas sobre todos os temas, inclusive raça e racismo e sou intelectual orgânico sensível às causas do povo negro brasileiro e do combate ao racismo. E até o dia em que for bem recebido pelo Movimento Negro e pelas Comunidades Quilombolas, este intelectual branco estará fora de seu gabinete universitário e marchará ombro a ombro com homens e mulheres negras que tanto sofrem discriminação nesse país que pretende transmitir a ideologia da democracia racial como sua identidade nacional.

Agora pretendo transformar o singular em plural, o individuo em grupos e classes sociais. Somos homens e mulheres brancos pobres, a maioria absoluta do povo da região do meu Cariri Paraibano viveu e vive excluída, marginalizada, explorada e oprimida. São agricultores, donas de casas, meeiros, moradores, vaqueiros, sem terra, explorados pelos herdeiros de uma estrutura colonial agroexportadora e escravagista do império da casa grande. Muitos da minha geração sequer conseguiram assinar o nome, outros foram no limite da conclusão do Ensino Médio, pouquíssimos concluíram um curso superior e menos ainda conseguiram se tornarem mestre ou doutor. Tantos e tantos tiveram que migrar para o sul do país em busca de emprego. A maioria de nós, homens e mulheres brancos da classe trabalhadora foi privada de qualquer privilégio na estrutura social pelo seu condicionamento classista. Ou seja, ser branco não significa automaticamente privilégio e poder, pois o lugar que ocupa na estrutura capitalista de produção é de pobreza, desigualdade e exploração social. A historiadora Maria Silvia de Carvalho Franco já percebia isso para o século XIX quando estudou os homens brancos livres pobres na ordem escravocrata. Contudo, quando essa classe trabalhadora tem gênero e raça não branca, o peso estrutural da opressão e exploração é muito maior do que em relação aos trabalhadores brancos, pois se apresentam sobre suas costas o peso de mais duas estruturas além do capitalismo: o patriarcado e o racismo.

Precisamos cada vez mais complexificar as análises e fugir de binarismo e maniqueísmo do tipo HOMEM x MULHER, HETEROSSEXUAL x LGBTQA+, BRANCOS x NEGROS, BURGUESIA x PROLETARIADO. Até porque, na realidade concreta da estrutura social, temos a classe com gênero (burguesia, classe média e proletariado- homens, mulheres e LGBTQIA+); o gênero com classe (homens, mulheres e LGBTQIA+- burgueses, proletários e de classe média); a classe com raça (burguesia, proletariado e classe média- não brancos); a classe com raça e gênero (burguesia, proletariado e classe média branca e não branca, heterossexual e LGBTQIA+, homens e mulheres). Isso implica dizer não existem grupos homogêneos por simples oposição a outros igualmente constituídos como se fossem sujeitos universais em identidades generalizantes. Cada combinação entre classe, raça e gênero permite adentrar a complexidade do tecido social sem cair na superficialidade, na fragmentação e na guetificação. Se por um lado é verdade que a situação estrutural pesa muito mais sobre as mulheres negras da classe trabalhadora, explorando-as e oprimindo-as, por outro lado, também são alçados à condição de subalternos os homens negros da classe trabalhadora e os homens e mulheres brancas da classe trabalhadora. Na hierarquia dos privilégios, contudo, os homens negros pobres estão em posição de exploração de classe e opressão de raça, mas não gênero; já as mulheres brancas trabalhadoras sofrem exploração de classe e opressão de gênero, sem a opressão racial; enquanto os homens brancos trabalhadores sofrem exploração de classe, mas não podem sentir as opressões de gênero e de raça. No geral, esse conjunto complexo constitui um grande grupo subalterno e é composto pela a maioria da população do planeta explorada e oprimida, guardadas as devidas gradações hierarquizadoras.

Sendo assim, sairíamos todos ganhando politicamente se soubéssemos juntar os 99% do planeta em uma pauta revolucionária anticapitalista, antipatriarcado, antirracista, ecossocialista e laica. Até porque, como afirma Silvio Almeida, o racismo é uma estrutura e não se resume a comportamentos individuais ou funcionamentos institucionais, porque indivíduos e instituições reproduzem o racismo que organiza, distribui privilégios e opressões aos grupos com base no critério racial. Na concepção do autor citado, “além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. (ALMEIDA, 2019, p. 50) Temos que transformar as estruturas e isso requer unidade na diversidade, lutas conjuntas sem perder as pautas específicas e movimento de rua, radical e multitudinal.

Evidentemente que as falas negras em uma sociedade racista e herdeira do legado da escravidão são alijadas de posições hegemônicas em exercício como a produção intelectual, justamente pelo condicionamento estrutural/sistêmico, o “lugar de fala”, na terminologia usada Djamila Ribeiro. E vejo com muita alegria que intelectuais negros sejam alçados cada vez mais à condição de escrever grandes livros, fazer grandes pesquisas e falar muito para toda a sociedade. Aliás, já temos bons nomes no Brasil, como Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Clovis Moura, Luís Gama, Carolina Maria de Jesus, embora ainda seja um número pequeno, porém, em crescimento. Isso não dispensa a fala de grandes intelectuais brancos de esquerda como Florestan Fernandes e Roger Bastide que produziram obras clássicas sobre a questão de raça/classe para o Brasil Capitalista. Ou de um Alberto Banal, intelectual branco, europeu que coordena um trabalho importantíssimo no processo de titulação das terras quilombolas paraibanas.

Conforme aponta Sílvio Almeida (2019, p. 110), “o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real. O fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos que a população negra esteja no poder”. Primeiro, porque uma pessoa negra “empoderada” pode não significar um representante que verbalize as demandas por igualdade racial em relação ao seu grupo de pertença; segundo, porque, mesmo havendo certo compromisso entre as pessoas negras em espaço de poder para com seu grupo racial, isso não significa que elas terão poder necessário para transformar as estruturas políticas e econômicas que se servem do racismo para promover e reproduzir as desigualdades. Nesse particular, acredito que a teoria marxista e o movimento negro ganham, reciprocamente, se dialogar na perspectiva estrutural e materialista, no plano teórico e político. O primeiro, incorporando com força a questão racial na sua teoria e prática política e o segundo, se abrindo para a leitura racial em chaves do materialismo histórico e dialético e emparedando a luta antirracista com a anticapitalista e a luta de raças marchando nas mesmas ruas com a luta de classes.

 Isso implica que ativistas brancos proletários, não sejam jogados fora da luta antirracista, pois o gueto e a fragmentação servem ao sistema. Desde que brancos ou não brancos, falem, gritem, lutem para derrubar o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Eu estou nessa linha. E pretendo continuar falando sobre a questão racial, apesar dos equívocos de quem quer me fazer calar.