terça-feira, 13 de outubro de 2020

PATRIARCADO E CAPITALISMO: SOBRE O CASO DE MISOGINIA NA UFCG


 

José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Quem falou que homem não pode se meter no tema do feminismo? Pois bem, sou homem, professor de História da UFCG e pretendo me manifestar sobre a postura misógina do colega do curso de Engenharia Elétrica realizada em paginas de redes sociais. Não creio que haja necessidade de reproduzir aqui o conteúdo por ele apresentado, inclusive por já ter viralizado nas próprias redes e ser do conhecimento da ampla maioria das pessoas.

Antes de mais nada, é preciso ampliar a escala de análise no tempo e no espaço, pois esse não é um caso isolado, nem descolado de uma estrutura macroscópica. O patriarcado precede o capitalismo, mas a situação da maioria das mulheres piorou, consideravelmente, com o surgimento do Modo Capitalista de Produção. Nas sociedades pré-capitalistas a divisão do trabalho se circunscrevia ao âmbito de uma economia doméstica na qual as mulheres possuíam um papel importante juntamente com os homens e a economia girava em torno da casa. O capitalismo separou a economia doméstica da economia de mercado, a casa se distanciou da fábrica e as mulheres trabalhadoras passaram a sofrer a exploração econômica e social no chão fabril, sem se libertarem das funções tidas como “femininas”, da “rainha do lar” e “boa mãe de família”. Nesse sentido, há uma enorme diferença entre as condições de ser homem ou ser mulher na sociedade capitalista, pois à (maioria absoluta) delas coube, até hoje, a função da reprodução social no âmbito do lar, trabalho esse, desqualificado e não remunerado. Mais importante para o mundo da produção e circulação de mercadorias.

Junto a essa base material da estrutura capitalista, de suas relações sociais e da sua divisão do trabalho, a burguesia do século XIX encravou um processo ideológico que definia subjetivamente uma concepção de família patriarcal e heterossexual. Ancorada e justificada na ciência moderna, o homem foi classificado como um “ser racional”, “viril” e “forte”, portanto, “naturalmente” determinado para a vida pública, para o mundo lá fora; por outro lado, a mulher foi classificada como um “ser emotivo”, “sexo frágil”, portanto, “por sua essência e natureza” determinada à vida privada. Ser mãe, esposa e dona de casa eram as atribuições que “combinariam” com o gênero feminino. Não custa lembrar que essa ideologia se transforma em força material quando essas representações são essencializadas, naturalizadas e postas em prática. A função da ideologia em Marx é justamente essa.

Por essas é que entendemos o quão estrutural é a questão. O caso do professor misógino da Engenharia Elétrica da UFCG reproduz essa ideologia da família burguesa vitoriana do século XIX. Em geral os próprios cursos de engenharia nas universidades, além de outros, revelam um racismo e um machismo institucionais quando me parece haver uma exclusão de homens negros e de mulheres nos seus corpos docentes. E não me venham aqui falar em meritocracia!

As instituições também não são ilhas incomunicáveis com a terra. Na verdade, elas reproduzem no seu interior as estruturas societárias mais amplas, a exemplo do capitalismo, do patriarcado e do racismo. E pouco fazem para combater essas vigas poderosas que teimam em continuar apesar das lutas sociais e de algumas conquistas de direitos por elas trazidos.

O que nos espanta é um professor universitário botar seu corpo no século XXI e sua cabeça no XIX e achar que os homens trabalhadores executam as mais “nobres” e “pesadas profissões”, enquanto as mulheres trabalhadoras “reclamam da vida” por ter que lavar a louça, trocar a fralda do bebê e fazer o almoço todos os dias. Quando sabemos que muitas mulheres trabalhadoras, durante os mais de três séculos de capitalismo, são exploradas pelos patrões, fazem as máquinas gerar riqueza para eles e ainda não se libertaram da opressão patriarcal, da tripla jornada e da violência doméstica. A propósito, é por achar que o corpo da mulher é propriedade privada do homem, por não aceitar uma traição ou o fim de uma relação que muitos casos de feminicídio se arrastam em estatísticas alarmantes e ainda omissas, apesar da lei Maria da Penha.

Se essas mulheres trabalhadoras forem racializadas, a exploração econômica e o machismo serão reforçados pelo peso do racismo estrutural. Hoje podemos ver muitas delas trabalhando nas funções mais precarizadas do mundo do trabalho, ainda tratadas como escravas, recebendo salários menores do que os dos homens. Essa divisão é propositiva do capitalismo, dividir a maioria das classes e grupos subalternos.

O que fazer? Do meu ponto de vista, continuar combatendo em três frentes, mas no mesmo campo de luta. A emancipação das mulheres, também deve caminhar nas mesmas ruas antirracistas e anticapitalistas, pois, embora devamos fazer notas de repúdios, abrir processos em comissão de ética, lutar por uma lei no parlamento, etc, creio que são paliativos e que, embora importantes, não resolverão o problema que, como formulado por Ângela Davis, é de gênero, raça e classe.  Talvez, uma tarefa número zero fosse derrotar o bolsonarismo, movimento que possibilitou os neofascistas saírem do armário e acreditar que tudo podem dizer e fazer. Mesmo que esse tudo saia da mão de um docente universitário que deve se orgulhar de seus projetos no ramo da engenharia mas resiste em lavar sua própria cueca.