quarta-feira, 30 de maio de 2012

UM FERIADO PARA COMEMORAR: A MEMÓRIA EM FORMA DE CALENDÁRIO


 


JOSÉ LUCIANO DE QUEIROZ AIRES


Sendo o calendário uma construção cultural, muito embora muitos povos tenham tomado a natureza como parâmetro para elaboração destas marcas do tempo, é uma forma do Homem se situar no mesmo, localizando acontecimentos, podendo julgá-los por critérios de anterioridade, posterioridade e simultaneidade. Como construção histórica, pois, sofre as interferências dos seres humanos e se adéqua a diversos interesses. Um exemplo, dentre tantos, é o calendário revolucionário francês, dando denominações aos meses de forma a rememorar a Revolução de 1789. A institucionalização de um feriado exemplifica essa busca de controle do tempo pelo Homem, uma vez que se constitui como um momento de suspensão do cotidiano em que se demarca algum evento especial. Há, portanto, uma pausa no ritmo diário do trabalho e da dinâmica do dia-a dia para a realização das comemorações.
A comemoração pretende exorcizar o esquecimento de modo que os organizadores das festas revolucionárias procuram, anualmente, afirmar a revolução, ensinando-a a quem não a conheceu diretamente.
Passemos às comemorações do aniversário de morte de João Pessoa. Inicialmente, faz-se importante recorrermos ao projeto de lei que alterou o calendário da Paraíba, instituindo o 26 de julho como feriado estadual, o ato instituinte:

Projecto Nº 1- A Assembléia Legislativa do Estado da Parahyba, Resolve:- Art. 1º- Considera-se feriado estadual o dia vinte e seis de julho, em homenagem ao inolvidável presidente João Pessoa. Art 2º- Revogam-se as disposições em contrário. Assembléia Legislativa da Parahyba, 12 de agosto de 1930. (a)- Argemiro de Figueiredo.

Em sessão legislativa do dia anterior à apresentação desse projeto, os deputados haviam votado e aprovado um minuto de silêncio em homenagem à memória de João Pessoa. No dia seguinte, era apresentado o primeiro de tantos outros projetos que criavam lugares de memória do presidente morto. Como ocorreria em setembro de 1930, com a apresentação do projeto que propunha a mudança do nome da capital, o autor da propositura que alterava o calendário cívico da Paraíba, foi o deputado campinense Argemiro de Figueiredo, cujo perfil político já fizemos notar no segundo capítulo desse trabalho. No dia 27 de agosto de 1930, ocorrera a primeira discussão do projeto. No dia seguinte, o deputado Generino Maciel recomenda que o mesmo seja enviado à Comissão de Justiça, sendo aprovado, por unanimidade dos votos, na sessão do dia 3 de setembro, e sancionado pelo presidente Álvaro de Carvalho, como Lei nº 702, de 9 de setembro de 1930.
Foi, sem sombra de dúvida, a primeira intervenção oficial na construção da memória de João Pessoa e da “Revolução de 30”, demonstrando que, como fizeram os franceses, “a alteração do calendário pode ser tomada como um exemplo extremo de que controlar o tempo se torna essencial ao poder”. A partir de então, essa data, expressão de lugar de memória, se transformaria, anualmente, em “festa capaz de mobilizar uma cidade ou parte dela, interrompendo o funcionamento das instituições públicas, a rotina de trabalho, alterando o fluxo e o movimento das ruas...”[4]
Tomando por base a institucionalização do feriado de 26 de julho, buscamos compreender a criação e a apropriação feitas por parte do Estado, desse lugar de memória, dando visibilidade maior, já que é a proposta desse capítulo, ao papel das escolas paraibanas e às práticas desenvolvidas no dia do aniversário de morte do ex-presidente João Pessoa.
 Partindo da idéia de um Estado Nacional centralizado, após 1930, cuja intervenção no ensino de História se fazia notar no currículo, que primava pelo realce aos vultos da Pátria, colocam-se alguns questionamentos: Como foi possível celebrar e comemorar um “herói” paraibano? Que práticas culturais-simbólicas compunham a programação dessas festas cívicas? Qual o papel da escola nesse universo simbólico da comemoração?
O nacionalismo era a tônica da Era Vargas. Sendo dessa forma, João Pessoa passa à condição de “herói” nacional como uma construção histórica da Aliança Liberal. A documentação que analisamos, é enfática em mostrar a imagem de João Pessoa como “vulto da pátria”, como “herói” da História nacional. Senão, vejamos:

(...)Seus passos ficaram marcados na história nacional e só a lembrança do seu nome equivale a um depoimento justificativo da sua superioridade. (...) É que esse homem foi um assombro da pureza republicana, tendo pela Pátria um culto inverossimilhante alto e absorvente. Foi por ele que os olhares do Brasil se fixaram na Paraíba, tornada, então, barreira aos desmandos de uma época mais do que calamitosa para o país.

Esse trecho é bastante relevante no tocante à inserção de um mito que veio reafirmar a identidade de um povo bravo e resistente, o paraibano, mas no contexto do Estado Nacional centralizado. Essa era a visão de mundo do grupo da Aliança Liberal na Paraíba, que buscava articular-se ao quadro político nacional. Por outro lado, tudo que o varguismo queria, era evitar os regionalismos em favor do nacionalismo, daí, parece que a solução encontrada para a questão de alguns mitos regionais, era cultuá-los como “heróis da Pátria”. Assim também ocorreu, na mesma época, com o mito dos bandeirantes, de modo que o “passado bandeirístico legitimava ainda a dominação paulista frente ao Brasil, porque havia sido o bandeirante quem dilatara a pátria, implantando uma conduta disciplinadora pela ação guerreira e mística”. Mas, desta feita, o bandeirante aparece nitidamente como “herói da Pátria”.
Outra questão interessante, na citação acima, é a utilização da memória mitificada de João Pessoa como forma de legitimar o regime republicano, sobretudo, da segunda república. A documentação que trabalhamos, é rica em afirmações que buscam uma linearidade de “heróis” que sempre lutaram pela república, desde os tempos coloniais até o presidente João Pessoa. Reiterar a paraibanidade, heróica e republicana, estava sempre na ordem do dia, como podemos perceber a seguir:

João Pessôa, pelo cunho excepcional das circunstâncias que lhe cercaram a ação e o sacrifício e pelo sentido grandioso e profundo da sua atitude perante a história política do Brasil, avançou sôbre o futuro. Antecipou-se á consagração da posteridade. Póde-se dizer que, na mesma hora em que êle tombou, fez-se em torno do seu nome êsse halo de imortalidade e de glória que circunda um Tiradentes, um Miguelinho, um Frei Caneca. Um dêsses símbolos impressionantes e eternos do idealismo e da bravura do homem consubstanciado numa causa libertária e generosa.

Pelo visto, o discurso acima enunciado, tem uma conotação bastante predestinada, João Pessoa parece escrever o futuro, à luz de mitos do passado.
Fazendo uso da epígrafe com que abrimos esse ponto de nosso trabalho, não podemos pensar nas festas cívicas sem as remetermos para a sua função pedagógica. A historiadora Iara Lis Souza, analisando as festas cívicas, no contexto da transição do Brasil colonial para o Império, alude ao fato de que “essa festa de intenso teor político precisava dizer algo, dirigir-se ao povo, enviando-lhe uma mensagem sobre o assunto da separação entre Brasil e Portugal”. E afirma que “este gênero de festa tinha horror ao nada dizer ou conseguir comunicar, ao vazio, ao silêncio dos espectadores ou a sua recusa em participar. Tais comemorações, portanto, objetivavam, no caso citado pela autora e, com a participação da população, a consolidação do processo de adesão à figura de D. Pedro I.
A pedagogia das festas comemorativas da memória de João Pessoa, como o “herói da Revolução de 1930”, também tinha uma mensagem a passar, como forma de dar legitimidade ao Estado Nacional varguista e seus representantes no controle do aparelho de estado paraibano. Colar na imagem mítica de João Pessoa tinha por finalidade justificar os governos que foram se sucedendo de 1930 a 1945. Com o artigo escrito por José Fernandes de Luna, para o Jornal A União, podemos exemplificar a questão:

Não é necessário ser muito perspicaz para reconhecer o traço de semelhança que há entre o nosso atual interventor e o presidente João Pessôa. Como êste, Ruy Carneiro experimentou anos de lutas e sacrifícios até alcançar a posição de relêvo que hoje desfruta. Desde os dias agitados da campanha redentora de 1930, esse jovem governante tem pautado as suas ações pelos princípios sadios e humanitários do Grande Presidente. Como êle, ainda, Ruy Carneiro e o seu povo fortalecem a coluna altiva da Democracia Brasileira, lutando pela União Nacional em tôrno de Getúlio Vargas, para que o Brasil progrida num ambiente de tranqüilidade e mútua compreensão.

Nessa citação, vemos o caso do estabelecimento da continuidade histórica entre Ruy Carneiro e João Pessoa, mas a documentação oficial é farta dessas bricolagens presente-passado com os outros interventores/governador, a saber: José Américo (1930), Antenor Navarro (1930-1932), Gratuliano de Brito (1932-1934), Argemiro de Figueiredo (1935-1940) e o próprio Ruy Carneiro (1940-1945). Outra questão perceptível na referida citação é a reprodução, nos estados, do projeto político-ideológico do Estado Nacional. Os interventores serão coadjuvantes na reiteração do nacionalismo autoritário, sobretudo, a partir de 1937, com o golpe do Estado Novo. Em resumo: a cada ano que se celebrava o aniversário de morte de João Pessoa, havia a legitimação do governo paraibano e da ideologia do Estado Nacional varguista.
Festejava-se por toda parte, do recinto de várias instituições à praça pública. Esta se torna lugar privilegiado para as comemorações cívicas, uma vez que “educa” as pessoas que não freqüentavam as escolas, misturando, num espaço único, uma diversidade de sujeitos: alunos, famílias, autoridades e a população, de um modo geral. Constitui-se um método educacional de vasto alcance e preenche as expectativas dos organizadores das festas.

 AS PRÁTICAS COMEMORATIVAS SOBRE JOÃO PESSOA

Falar em organizadores das festas suscita entrarmos na discussão das outras questões propostas anteriormente: as práticas constitutivas das comemorações e o papel das instituições em tais festejos, sobretudo, a instituição escolar.
Pelo que pudemos apurar, a sistematização das festas cívicas do 26 de julho, na Paraíba, estava a cabo do Centro Cívico “João Pessoa” e do Estado, como instituições diferentes, porém, compostas, basicamente, pelas mesmas pessoas.
Nossa leitura conceitual de Estado, nessa análise, fundamenta-se na teoria do marxista italiano Antonio Gramsci. Partindo da noção de Estado Ampliado, Gramsci entende o Estado abrangendo tanto o aparelho repressivo (sociedade política) quanto os aparelhos ideológicos (sociedade civil), sendo que, ambos, de uma forma ou de outra, cumprem a missão de produzir e reproduzir a hegemonia.
É o que podemos ver no pós-1930, na Paraíba, com a devida cautela nos usos dos conceitos. Tanto a sociedade política quanto a sociedade civil estavam mobilizadas  para manter a hegemonia do bloco histórico vitorioso após a “Revolução de 1930”. No caso das festas cívicas do 26 de julho, a sociedade civil participa de forma atuante, destacando-se, na organização das comemorações. Dentre suas instituições, podemos apontar: o Centro Espírita “Tomaz de Aquino”; as escolas (Escola de Aprendizes Artífices, Academia de Comércio “Epitácio Pessoa”, Liceu Paraibano, Colégio Diocesano, Instituto Comercial “João Pessoa”, apenas para citar as mais importantes); a Associação Paraibana de Imprensa; a Rádio Tabajara; a Rádio Club da Parahyba; o Jornal A União; a Igreja Católica; os sindicatos e associações (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Cimento, Cal e Gesso, Centro Beneficiente Paraibano, Centro Proletário “Alberto de Brito”, Liga Beneficiente Operária, União Beneficiente do Trabalhador, Aliança Proletária Beneficiente, Sociedade Literária Ruy Barbosa); entidades de Cultura e Desporto (Sport Club “João Pessôa”, Liga Suburbana de Desporto, orfeões, bandas de músicas, etc).
Todas essas instituições, além de participarem das festas na praça pública, também realizavam sessões cívicas no interior de seus recintos. Fazia-se questão de noticiar o ato cívico, pelas páginas oficiais do Jornal A União.
No primeiro ano após a morte de João Pessoa, as comemorações tiveram uma dimensão de largas proporções, certamente porque ainda era bastante recente o fato. Houve programação por uma semana inteira, cada dia reservado a um determinado setor da sociedade. A praça pública tornou-se um espaço de pretensa unidade e, ao mesmo tempo, de segmentação. Isso porque o Estado, com o fim de tornar coletiva a memória de João Pessoa, e assim, buscar legitimar-se, procurava apoio nos diversos segmentos sociais. Interessante observarmos a teia de relações institucionais construída no momento de comemoração cívica do 26 de julho. Poderíamos resumir dessa forma: escola-Estado, sindicatos-Estado, militares-Estado, Associação Comercial-Estado, Funcionários públicos-Estado e Igreja Católica-Estado. Nessa teia de relações, havia espaços que funcionavam de forma simbólica. Como vimos no quadro acima, cada dia estava reservado à comemoração por parte de determinados setores da sociedade. Sendo assim, cada grupo social, ao realizar a romaria ao Altar da Pátria, partia de um espaço material e simbolicamente representativo de seu grupo e/ ou classe. Por exemplo: os estudantes, professores e diretores ficavam próximos ao Altar da Pátria, de fronte à Escola Normal, a fim de recepcionarem o interventor e sua comitiva oficial, que traziam a efígie de João Pessoa para colocá-la no referido altar. Os operários e trabalhadores, de um modo geral, partiam da Praça do Trabalho; as “classes armadas” tomavam como ponto de partida os quartéis; os comerciantes, por sua vez, saiam da Associação Comercial; o clero e Associações de Caridade reuniam-se  na catedral; todos em direção ao Altar da Pátria, rumando ao encontro da efígie do mito João Pessoa e dos representantes do Estado que lá estavam.
Se o objetivo dos organizadores das festas era promover a coesão social em torno de um elemento congregador, o culto à memória de João Pessoa, por outro lado, podemos perceber nitidamente a segmentação social, demonstrada pela programação, cada qual no seu canto, em seu lugar institucional, mas de acordo com uma “ordem”.
A maior demonstração dos usos político-ideológicos das festas cívicas do 26 de julho pode ser vista na idéia de continuidade histórica da obra de João Pessoa. Ao passo que se cultuava o mito, também se homenageava os governantes da época, como seguidores das práticas “modernas” de administração do presidente morto. No Jornal A União, podemos observar que, ao lado da fotografia de João Pessoa, estava o interventor federal que estivesse no cargo, na ocasião. Celebrava-se o morto e homenageava-se o vivo, aquele que podia realizar a “grande obra” do presidente João Pessoa. Também podemos ver, sobretudo nos primeiros anos das comemorações do 26 de julho, os governantes aproveitando o feriado mítico para inaugurações de obras, mais precisamente, aquelas que João Pessoa iniciara. Na semana de comemorações em 1931, no dia 26 de julho, o interventor Antenor Navarro inaugurou o Pavilhão do Chá e a Ponte do Mulungú, divulgou a continuidade da construção da obra do Hotel Parahyba e assinou o contrato para a construção do Porto de Cabedelo, todas as obras, apostas no periódico oficial como a continuação do programa de governo de João Pessoa.
As comemorações, porém, não se restringiam à Paraíba. Na capital federal, o Presidente da República, Getúlio Vargas, e comitiva faziam uma romaria ao cemitério São João Batista, cultuando a memória de João Pessoa, diante do monumento erguido em homenagem ao ex-presidente da Paraíba.
A partir de 1932, as festas eram realizadas apenas no dia 26 de julho, em diversas instituições, e em vários municípios paraibanos. A programação se iniciava com a “missa de réquiem”, seguida de uma romaria em direção ao Altar da Pátria.
Nesse ano, o 22º BC, símbolo da tomada do poder em 1930, quando os insurretos iniciaram o movimento na Paraíba, desfilou nas ruas do Rio de Janeiro entoando o hino de João Pessoa. Pelo que podemos analisar, tomando como contexto a rebelião paulista de 1932, a memória do ex-presidente paraibano era por demais utilizada como demonstração de apoio do Norte ao governo Vargas. De modo que, do ponto de vista simbólico, o desfile representava de que lado estava a Paraíba naquele conflito, o apoio a Vargas, que se fez, inclusive, no plano militar, quando o interventor Gratuliano de Brito enviou tropas da Polícia Militar da Paraíba a fim de combaterem os paulistas.
O Altar da Pátria se constituiu como lugar sagrado e cívico, santificando João Pessoa para legitimar seus herdeiros políticos no controle do aparelho de Estado paraibano. As pessoas adoravam o altar de João Pessoa, tal qual adoram, nas igrejas, o Santíssimo Sacramento. Se tratava de uma construção imponente, iluminada, na qual, na base, se encontrava uma imensa efígie de João Pessoa. No centro, podemos ver a Bandeira do Nego, já no seu formato atual, como uma representação da Paraíba sobressaindo-se perante os demais estados que se encontram, ordenadamente, em placas, na torre do referido altar. É um símbolo do nacionalismo varguista, da pretensa união dos estados em torno do projeto desenvolvido por Getúlio, após o movimento de 1930, e a reestruturação do novo Estado nacional brasileiro.
Em 1933, devido à proximidade da inauguração do monumento a João Pessoa, o qual analisamos no segundo capítulo, a comemoração oficial ocorreu de forma mais simples, resumindo-se à tradicional “missa de réquiem”, romaria ao Altar da Pátria e discursos. De 1934 a 1945, após a celebração religiosa na catedral, a romaria tomava o rumo da Praça João Pessoa, comemorando ao pé do monumento do ex-presidente. “Cada cidadão permanecerá ao pé da estátua cerca de meia hora, em turmas previamente organizadas”[10], sendo que havia inscrições, na sede do jornal oficial do governo, para quem se dispusesse a participar do ritual da guarda ao monumento.
Após esse breve histórico, retomamos à questão da sociedade civil paraibana e à reprodução da ideologia dos grupos dominantes, utilizando as festas cívicas de forma pedagógica.
Vamos começar com a imprensa. A Rádio Tabajara, órgão estatal, criada em 1937, durante o governo Argemiro de Figueiredo, além de transmitir, ao vivo, toda a programação dos festejos do 26 de julho, na praça pública, dedicava um programa em homenagem a João Pessoa, intitulado “A Hora do Grande Presidente”. Em alguns municípios do interior, a transmissão de suas festividades era operada pela tradicional difusora local. Além do rádio, que se constituía como veículo de propaganda oficial, também atuavam os jornais, merecendo destaque o estatal A União e o jornal católico A Imprensa. Pelo que pudemos averiguar no trabalho de investigação que realizamos, sobretudo no primeiro, a partir do dia 23 de julho de cada ano, o periódico iniciava as notícias das comemorações, com convite do governo e do Centro Cívico e sinalizando com a programação. Passado o dia 26, continuava a divulgar matérias sobre o evento, inclusive, transcrevendo cópias de telegramas recebidos de demais municípios, comunicando sobre a realização de rituais cívicos. Nos primeiros anos, o Jornal A União ainda trazia, na primeira página, a foto do ex-presidente João Pessoa, de corpo inteiro.
Martha Falcão Santana realça o papel da imprensa no governo Argemiro de Figueiredo (1935-1940), melhorando o parque gráfico do Jornal A União, inaugurando a Rádio Tabajara e criando serviços radiofônicos nos municípios paraibanos, transmitindo sua palavra meia hora antes do programa “Voz do Brasil”. A autora ainda destaca trecho de um discurso de Argemiro, no qual enfatizava o papel educativo da referida emissora de rádio.
As religiões também se colocavam como aparelhos ideológicos, nesse particular. Além do Centro Espírita “Tomaz de Aquino”, que realizava sessão solene naquela instituição, era a religião Católica o grande baluarte das comemorações cívicas. Nesse momento, a instituição vinha em processo de reconciliação com o Estado, após a “separação” ocorrida legalmente com a Constituição de 1891. No início da Era Vargas, com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, que defendia uma escola laica, pública, gratuita e nacional, verificou-se a oposição de setores católicos, como era de se esperar. Entretanto, no ministério de Capanema, Estado e Igreja Católica se reaproximaram.
Poucas eram as solenidades que não começavam por uma missa pela alma de João Pessoa. O início da programação das festas na capital sempre se dava com a “missa de réquiem”, assim que amanhecia o dia 26 de julho. Na maioria delas, era o próprio arcebispo, o celebrante. Da catedral metropolitana, autoridades e população realizavam uma romaria em direção ao monumento do ex-presidente.
A preocupação com as classes trabalhadoras, por parte do governo, fica evidente no tocante à participação de associações e sindicatos na programação cívica do 26 de julho. Reproduzindo o que ocorria a nível nacional, o Estado se colocava como árbitro das questões envolvendo patrões e empregados, justamente para evitar a luta de classes. Igreja, Estado, escolas, meios de comunicação, etc, se encarregavam de difundir a propaganda anti-comunista e veicular como “ideal” os princípios totalitários circulantes no cenário internacional.
Em diversos municípios da Paraíba, no auge do argemirismo, foram implantadas Comissões Nacionais de Propaganda Sisthemática contra o Comunismo, das quais muitos membros eram professores, médicos, padres, jornalistas, advogados, dentre outros profissionais liberais.
No primeiro ano da comemoração, o proletariado prestou homenagem à memória de João Pessoa, ao colocar, na Praça do Trabalho, um bloco de pedra pesando vinte e duas toneladas. Neste bloco, foram apostas uma coroa de louro e uma placa de bronze, cujos dizeres aludiam à homenagem dos trabalhadores paraibanos ao presidente morto. Houve uma solenidade, inclusive, com a participação do interventor, ao transportar-se o referido bloco da estação da “Great Western” para a citada praça.
Eliete Gurjão ressalta que as relações entre os trabalhadores operários e os dois primeiros interventores ocorreram, relativamente, de forma amistosa, tendo se alterado a partir de 1934/1935, durante o governo de Argemiro de Figueiredo. Para a autora:

(...) o culto à memória de João Pessoa de certa forma, unia a classe subalterna ao projeto político da interventoria. Acrescente-se o impacto das obras contra as secas e a decretação das leis trabalhistas como instrumentos de persuasão incutindo a imagem do Estado protetor.

Logo após o movimento de outubro de 1930, a interventoria promoveu um Congresso Operário, cuja abertura foi solenemente revestida de uma homenagem à memória de João Pessoa. O Jornal A União  assim se reporta àquele momento:

 Instalação onte-ontem no Teatro Santa Rosa do Congresso Proletário, na ocasião o retrato de João Pessoa envolvido com os pavilhões da República e da Paraíba, occupava no recinto o logar de maior destaque. O senhor Fiúza Lima, que presidiu a sessão, pediu que todos permanecessem de pé, por um minuto, em silêncio como homenagem ao grande e inolvidável estadista sacrificado pela inveja e pelo ódio dos poderosos de então e ainda como reverência a memória dos proletários mortos na Revolução.

Fazemos coro com Eliete Gurjão, ao demonstrar o quanto a memória de João Pessoa era utilizada, ideologicamente, como forma de unir a classe subalterna ao projeto político do bloco dirigente. Entretanto, arrisco a hipótese de que os segmentos das classes trabalhadoras não eram massas de manobra, e sim, quando não resistiam sabiam negociar ao ler os jogos de interesses e dele tirarem proveito.
Pelo visto, e pesquisado, sempre as classes trabalhadoras participavam da festa oficial. Em 1937, na efervescência da repressão e às vésperas do golpe do Estado Novo, o Centro Beneficiente Paraibano se fizera representar nas comemorações, por intermédio de um discurso de Lourenço da Graça, orando como representante do operariado. Repetiu a participação nos anos de 1938 a 1943, até onde pudemos apurar. Para Eliete Gurjão (1994, p. 169), os

(...) dirigentes de entidades operárias, a partir de então (período da repressão argemirista), sempre aparecem nas cerimônias oficiais, ao lado das autoridades, cooptados, portanto, pelo regime, fornecendo a impressão de que ele contava com o respaldo popular. Complementando o trabalho ideológico, constantemente eram realizadas conferências nas escolas, nas associações operárias etc, como parte da intensa campanha cultural contra o bolchevismo.

Exemplo mais significativo foi a participação do líder do Partido Comunista, na Paraíba, João Santa Cruz de Oliveira. Nas comemorações de 26 de julho de 1938, às 18 horas, fechavam a solenidade oficial, na Praça João Pessoa, os discursos de João de Deus Mindêllo, Luis Pinto e João Santa Cruz de Oliveira. Estava o comunista participando da mesma festa organizada pelo interventor Argemiro de Figueiredo, três anos depois de ser preso por este, na chamada Intentona Comunista. Fica aberta a questão: será que as lideranças trabalhistas não tiravam algum proveito ao participar do teatro do poder? Por segmentos das classes populares participavam da festa oficial?
A arte também cumpriu seu papel nas festividades do mito João Pessoa. O cinema, por exemplo, ao mesmo tempo veio reafirmar com louvor a memória do ex-presidente. Nas comemorações de 1935, foi exibido, nos cinemas da capital, o filme “A vida pela liberdade”, película que documentava os acontecimentos vividos em 1930. O porta-voz oficial assim se reportava sobre a exibição;

A fim de exhibir num dos nossos cinemas o film “A Vida pela Liberdade” encontra-se nesta capital, vindo da Bahia, o Sr. Alcides de Souza. Essa pellicula, que docummenta os acontecimentos que encheram dias de agitação e de soffrimentos, vividos pela Parahyba, merece ser vista pela população pessoense, que venera a memória do seu Grande Presidente.

No dia seguinte, o jornal oficial noticiava mais uma nota sobre os usos do cinema na socialização da memória histórica de João Pessoa. Anunciava que, no Cinema “Rio Branco”, por deliberação do seu diretor, Einar Svendsen, seriam projetadas as películas dos funerais de João Pessoa bem como das suas viagens aos estados de São Paulo e Minas Gerais, durante a campanha da Aliança Liberal. Em 1939, o filme dos funerais voltou a ser exibido, conforme divulga o periódico estatal.
Assinala Mona Ozouf (1988, p.219) que

(...) as festas da Revolução são festas faladas, muito mais do que festas mostradas ou representadas (...) Acolhem intermináveis discursos, encarregados de precisar seu alcance histórico. São sempre cuidadosas em limitar o desvio da interpretação, confiando a uma guarnição de cartazes e bandeiras, nos seus cortejos, o sentido dos grupos que desfilam. (...) A decoração, pouco confiante em sua pedagogia tácita, necessita de palavras para estabelecer sua adequação à cerimônia. Sente-se que importa menos a essas festas renovar uma emoção do que fixar uma narrativa. (Grifos nossos).

Evidentemente que a autora está se referindo às festas de comemoração da Revolução Francesa. Isso não implica dizer que não possamos pensar o caso da “Revolução de 1930”, à luz desse referencial. Talvez possamos fazer um reparo à frase final da citação, no sentido de que se renovava a emoção social para fixar a narrativa.
Comemorar João Pessoa e a “revolução”, anualmente, no 26 de julho, passava por práticas festivas demasiadamente faladas. O poder da retórica se fazia operante no sentido do fazer crer. Em todos os espaços institucionais, desde a pregação do arcebispo, passando pelas preleções escolares e a festa na Praça, havia uma numerosa gama de discursos. No entanto, como fez notar Ozouf, as palavras não eram pronunciadas sem um acompanhamento decorativo, os símbolos e o embelezamento da festa funcionavam de forma a se juntarem ao poder das palavras, no sentido de fixar a narrativa e assegurar a compreensão da mensagem.
Pelo que podemos perceber, da documentação colimada, os custos financeiros das festas cívicas do 26 de julho não eram ônus apenas do aparelho de Estado. Havia contribuições de toda parte. Em 1931, por exemplo, os funcionários da Prefeitura da Capital, da alfândega, os operários da Pedreira Cobé, estavam na lista de “patrocinadores” da Semana de João Pessoa. Os grupos populares, quando não contribuíam diretamente com as festividades, empenhando determinadas quantias, acabavam arcando com os custos de uma consolidação da memória histórica, cujos objetivos eram legitimar um governo das elites. Isso porque havia uma mercantilização de símbolos, a fim de cobrir as despesas com a construção de lugares de memória. A título de exemplos, cabe-nos citar a venda do retrato de João Pessoa para ser utilizado nas lapelas, e de bandeirinhas do “Nego”, cujos recursos, em tese, destinavam-se à construção do arco do triunfo. Também com o mesmo destino, foram postos à venda 800 folhetos biográficos de João Pessoa, de autoria do Dr. José Euclides.
 O Jornal A União também traz as seguintes notas publicitárias: “A manteiga ‘JOÃO PESSOA’ encontra-se á venda em toda parte”; “Comer só manteiga ‘JOÃO PESSOA’ é ter amor á saúde;” “Addicione todas as manhãs ao café, um pouco de manteiga ‘JOÃO PESSOA’ e verão que bebida deliciosa.” Deduzimos, pois, que devia se tratar de um pequeno negócio privado, mas que se apropriou da marca simbólica de poder preponderante naquele momento. Devem os liberais tê-la consumido demasiadamente! Em suma: o 26 de julho na Paraíba fez parte de um conjunto de tradições inventadas objetivando legitimar o mito João Pessoa como o ícone fundamental para o projeto político advindo em 1930.

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

“NEM PERREPISTA, NEM LIBERAL: DEVOLVAM O NOME PARAHYBA A NOSSA CAPITAL”.





José Luciano de Queiroz Aires

Era o dia primeiro de setembro de 1930. Luto e luta, choro e romaria, canto e conflito. Uma multidão se agigantava na dinâmica da então cidade da Parahyba, esbanjando uma mistura de revolta e dor. Achava-se o legislativo estadual reunido para a apreciação do projeto que mudava o nome da capital paraibana de Parahyba para João Pessoa, enquanto as galerias e a frente do prédio estavam repletas de manifestantes. No decorrer da sessão, o deputado Argemiro de Figueiredo, autor do projeto, requereu ao presidente da Casa que a mesma fosse suspensa para que os parlamentares tomassem conhecimento de uma manifestação do povo da capital.
Havia se passado um pouco mais de um mês do assassinato do presidente João Pessoa, ocorrido em 26 de julho daquele ano, na confeitaria Glória, no Recife. Segundo José Jóffily (1979, p. 298/299)

Da morte de João Pessoa até a madrugada da Revolução, vivemos dois longos meses de corre-corres e quebra-quebras sob a trepidação de eloqüências inesgotáveis... Era uma legião sem uniformes. Tinha, porém, um distintivo comum para homens e mulheres: o lenço encarnado na cabeça, no pescoço ou na cinta. A palavra vermelho era empregada como sinônimo de liberal. A partir do dia 27, a casa que não ostentasse uma bandeirola preta ficaria suspeita de perrepismo, isto é, de “assassino de João Pessoa”. Após aquele sábado trágico, as passeatas adquiriram mais alvoroço e maior participação para pressionar o Governo no sentido de mudar o nome da Capital e de adotar a nova bandeira- a do NÉGO até hoje instituída.

E Jóffily (1979, p.300) defende o projeto com base na vontade “popular”.

Registra nossa História várias alterações toponímicas. Temos Petrópolis, Teresópolis, Florianópolis e outras homenagens a estadistas. Todas, porém, foram impostas de cima para baixo, por mera força de decreto. Bem diverso é o caso da Paraíba, que resultou de irresistível pressão popular. Nem a Revolução Francesa trocou o nome de Paris. Para nos situarmos em nosso século: nem sequer foi tentada a mudança de Dallas ou de Brookline- cidade natal do presidente assassinado- para o nome de “Kennedy”.

Acho que devo introduzir uma questão problematizadora. Quais os objetivos de uma ala da Aliança Liberal paraibana em alterar o topônimo da capital da Paraíba? Defendo a tese de que o Poder Simbólico é tão ou mais forte do que a força física, pois, como diria Pierre Bourdieu (1989, p. 14/15) ele age de acordo com os objetivos de quem o institui, porém, não se coloca como arbitrário tendo em vista que o que o torna legítimo é “a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia”. (BOURDIEU, p. 14/15).
Ora, a Aliança Liberal havia sido derrotada no plano das urnas, nas eleições de 1º de março de 1930. Como, porém, destituir Washington Luiz e chegar ao Catete? Parece-me interessante citar uma observação feita pelo governador perrepista de Pernambuco, Estácio Coimbra, na qual afirmava, após a morte de João Pessoa, que “a Aliança Liberal agora tem um mártir” (VIDAL, 1978, p. 178). O “mártir” vira símbolo, tem Poder Simbólico, é fabricado sob forma de mito e apropriado demasiadamente, primeiro, para legitimar a tomada do poder iniciada na madrugada de 3 de outubro, na Paraíba, com vitória final em 24 daquele mês, com a ascensão de Vargas ao Catete. Mas a simbologia mitificada de João Pessoa era muito poderosa e rendeu dividendos políticos, pelo menos por mais quinze anos (esse foi o recorte que estudei, o mito se arrasta até nossos dias)- procurando legitimar o Estado Nacional autoritário que emergiu da conjuntura do movimento de 1930, assim como, os baluartes da ala revolucionária da Aliança Liberal paraibana, que se projetaram sempre à sombra do espírito de João Pessoa.
Em nome de João Pessoa, a Aliança Liberal casou e batizou. A princípio, planejou e conseguiu tomar o Catete. A posteriori, rachada, suas duas alas planejavam suas ações tomando o “herói” como ponto de partida. O PP invocava João Pessoa para legitimar José Américo, que se tornou ministro de Vargas. O PRL incorporava o espírito de João Pessoa para tentar a continuidade da família no comando do estado, apostando em Joaquim Pessoa para substituir o irmão. Pelo visto, a alma do ex-presidente paraibano não descansava em paz. Era acionada do além, para trabalhar em prol das querelas terrenas. Foi assim que, em 1932, o interventor Gratuliano de Brito, ao discursar para os soldados paraibanos que partiam para combater os paulistas, se expressou:

(...) Marchae soldados da Parahyba que a Victória é certa. Só tenho duas cousas a pedir-vos: no aceso do combate, lembre-vos de que antes de tudo soes parahybanos e que o espírito de João Pessoa paira por sobre as vossas cabeças, illuminando a vossas trincheiras e abençoando a vossa bravura. ( apud GURJÃO, 1994, p. 114)

José Américo, discursando em São Paulo, não deixava por menos: “... E dar a São Paulo a certeza que estamos dispostos a derramar todo o nosso sangue para não macularmos o sangue de João Pessoa, para não sermos infiéis ao sacrifício do nosso grande mártyr.” (GURJÃO, 1994, p. 115).
Em nome da memória de João Pessoa, os interventores paraibanos governaram. Buscaram legitimação. É tanto que festejaram sua memória anualmente, nas comemorações do feriado do 26 de julho. Procuravam, por meio de um sujeito singular coletivo chamado “povo paraibano”, coesão social, evitando todos os tipos de lutas e conflitos, apresentando uma imagem oficial de “Paraíba unida”, como se todos comungassem com a memória criada em torno daquele mito. Sendo assim, empurravam para os subterrâneos do silêncio as memórias das elites perrepistas derrotadas nos planos político e simbólico. Essas, tentavam aterrisar, tomar fôlego, gritar, pediam, desesperadamente, que alguém as ouvisse. E houve quem as escutasse, mas em outras redes de sociabilidades, sobretudo, as familiares, por meio da tradição oral.
Conforme assinala  Michael Pollak (1989), o processo de enquadramento da memória, oficializada, perpassa pela arbitrariedade de se colocar como a memória englobante de toda sociedade, jogando aos subterrâneos da marginalidade as memórias das oposições a esse projeto maior de coesão social. Foi assim que ocorreu com o movimento de 1930 na Paraíba. Enquanto foram criados vários lugares de memória (Nora), institucionalizando o mito João Pessoa, como o “herói” da revolução e dos “novos” tempos, as memórias perrepistas foram silenciadas providencialmente pelos vencedores de 1930. Entre esses lugares de memória destaco a criação da Bandeira do Nego, da edificação de uma verdadeira estatuomania, para lembrar o historiador francês Maurice Agulhon, da composição do Hino de João Pessoa, da escrita da história imediatamente materializada em livros apologéticos, da institucionalização de um feriado do 26 de julho com toda gama de comemorações cívicas e da mudança do nome da capital paraibana. Sobre esse lugar de memória é que darei ênfase nesse artigo.
 Um dia antes dessa sessão legislativa que votava a mudança do nome da capital foi distribuído entre a população local um boletim, cujo teor abaixo transcrevo:

Ao povo-No intuito de prestar mais uma homenagem à memória do inolvidável e querido Presidente João Pessoa, indo ao encontro da vontade de quase totalidade dos paraibanos, cogita o povo de nossa terra promover os meios necessários, no sentido de ser mudado o nome da capital do Estado para o de João Pessoa. Para este fim, a comissão abaixo assinada convida todas as classes desta cidade para uma grande reunião, amanhã, 2ª feira, às 13 horas, na praça que tem o nome do grande benfeitor da Paraíba, onde, após um discurso de consagrado orador, irá toda a população à Assembléia Legislativa solicitar a execução dos seus desejos.Para maior realce dessa procissão cívica, encarece a comissão o fechamento de todo o comércio àquela hora, a fim de que possam os interessados-que são todos os filhos dignos da Paraíba-tomar parte direta no grande acontecimento que vem homenagear o maior vulto do Brasil dos nossos dias. Paraíba, 31 de agosto de 1930.-A comissão: América de Oliveira, Alexandrina Pinto Cavalcanti, Isaura Miranda, Moça Viana, Anatilde Morais, Celina Rosas Rabelo, Júlia de Miranda Peregrino, Rita Miranda, Corintia Rosas Monteiro, Donzinha Andrade, Analice Caldas, Francisca d´Ascenção Cunha, Nevinha de Oliveira, Aurélia Rattacazo, Leonídia Coutinho, Mignon Freire, Corina Ramos de Vasconcelos, Helena Meira Lima, Nazinha Coutinho. (VIDAL, 1978, p. 337, grifos nossos).


A leitura desse documento comporta algumas observações que destaco a seguir. Como podemos notar, havia um grau de sistematização de grande envergadura no tocante à mitificação do presidente morto e à elaboração da memória oficial. Em primeiro lugar, notamos que o boletim conclamava todo o “povo”, todas as “classes” para pressionarem os parlamentares no dia da votação, justamente porque a manutenção do apoio popular, em torno da memória de João Pessoa, era imprescindível, nesse momento, aos planos golpistas da Aliança Liberal. Em segundo lugar, fica explícito o grau de organização do movimento visto que, na programação, constava um “discurso de consagrado orador”, revelando algo tramado nos bastidores da política e assinado por senhoras da elite local. De acordo com Jóffily (1979, p. 273) “Na Paraíba, o padre Mathias Freire, em comícios permanentes, convocava as lideranças femininas”, de modo que podemos pensar a participação feminina durante aquele contexto, à sombra da Igreja Católica, propagando a ideologia da “ordem” e da moral.
Em verdade, havia uma sistematização dessa memória oficial com vistas a se contrapor à memória subterrânea das elites perrepistas derrotadas e, ao mesmo tempo, tomar os grupos e classes populares como aliados. Não estamos querendo dizer, com isso, que a população não quisesse manifestar-se; havia, na capital, um clima propício para as manifestações, tendo em vista a aceitação positiva do governo João Pessoa. Porém, a vontade do grito nas ruas se somava aos mecanismos criados pela sociedade política para manter essa população vibrando com a criação dos lugares de memória que se destinavam a lembrar o mito.
O fato de a multidão estar nas ruas não representava comando do processo de institucionalização dos lugares de memória; o povo formava o ambiente adequado para os planos do golpe urdidos pela sociedade política e era potencial para apoiar os planos dessa.
No dia 1º de setembro de 1930, achava-se o legislativo estadual reunido para a apreciação do projeto enquanto as galerias e a frente do prédio estavam repletas de manifestantes. Será que o objetivo dos manifestantes era apenas pressionar os deputados para que aprovassem o projeto? Pensamos que essa não era a principal razão, até porque não corria risco de rejeição, uma vez que a maioria dos deputados perrepistas não mais comparecia às sessões e, como observa o próprio Ademar Vidal, (1978, p.336) “apenas dois ou três deputados afinavam com o pensamento isolado do governo”. É tanto que o projeto foi aprovado por unanimidade. Portanto, manter a população nas ruas tinha um objetivo muito maior, a tomada do poder, e longe da espontaneidade da população, tudo era programado e ritualizado por homens do governo, mas sem a participação do governador (na época, presidente de estado).
A memória oficial ia sendo elaborada com a participação popular, mas coordenada pelos membros “revolucionários” da Aliança Liberal. Tudo em forma de cerimonial, de ritual, como rezam as tradições inventadas, para citarmos Eric Hobsbawm. No dia 4 de setembro de 1930, em mais uma sessão legislativa, o deputado João Mauricio pede a palavra e requer a suspensão da mesma para a Assembléia participar do ato solene da sanção do projeto que muda o nome da capital. Durante a solenidade, coube ao deputado Lima Mindêllo fazer o discurso de saudação ao novo topônimo, seguido do ritual da sanção, o qual foi realizado com uma caneta de ouro cuja aquisição foi feita mediante “subscripção popular” realizada pela comissão de mulheres.                                                                                                                                                                                             
Após o ato, a senhora Olívia Athayde discursou em nome da comissão. Dirigindo-se ao presidente Álvaro de Carvalho, solicitou apoio ao projeto da bandeira rubro-negra.
O chefe do Executivo estadual estava ladeado pelo Secretário de Segurança Pública, José Américo de Almeida, o Secretário da Fazenda Flodoardo Lima da Silveira e pelos deputados Velloso Borges, Lima Mindêllo e Guedes Pereira. Esse bloco não era homogêneo e nele existia um conflito que podemos dimensionar na dicotomia - tradição antiga versus tradição nova, ou melhor, “ordem, pacificação” versus “agitação, revolução”. O discurso de Álvaro de Carvalho, naquele momento, reflete a postura de epitacistas antigos, aqueles que “preferiam dez vezes Júlio Prestes a uma Revolução”. Falou do “amor às tradições” e disse que “sacrificava o seu ponto de vista pessoal em favor da vontade de seus concidadãos” (Jornal A União, 5  set. 1930).
Mesmo com a ressalva de Álvaro de Carvalho, o projeto nº 4 se transformou em Lei nº 700 e, mais do que simplesmente uma homenagem a João Pessoa, o que ocorreu naquele momento, foi uma vitória da ala “revolucionária” da Aliança Liberal, chefiada por José Américo, que assumirá o governo da Paraíba após a tomada do Quartel do 22º BC.
E assim se fez mais uma alteração toponímica na capital paraibana. De Felipéia de Nossa Senhora das Neves, em homenagem ao rei Felipe II, da Espanha e a um nome Cristão, passou, em 1634, com a invasão holandesa à Frederica, prestando homenagem ao príncipe flamengo, Frederico. Com a expulsão dos holandeses, em 1654, passou à Parahyba, topônimo tupi que significa rio ruim e, em 1930, volta a homenagear um homem: João Pessoa.
Os perrepistas nunca aceitaram essa mudança. Ainda hoje, alguns remanescentes, cujas memórias, mesmo vividas por tabela, como assinala Pollak, rejeitam esse novo lugar de memória.
O depoimento de Inadi Torres Vilar é pertinente ao que afirmamos, senão vejamos: “lá na capital, na Parahyba, que aquela merda se chama Parahyba, registre é um velho com setenta e oito anos que está dizendo”. Em tom de provocação, insistimos no assunto, interpelando se ele não chamava a capital pelo nome de João Pessoa. A resposta sobreveio de imediato: “só quando eu erro”, respondeu o entrevistado.
Além das palavras, vale ressaltar a entonação da voz do entrevistado, falando com ódio, alterando a voz no decorrer da conversa, como se estivesse fisicamente vivendo os acontecimentos daquele contexto histórico.
Entendemos que o conceito de pertencimento grupal, que é afetivo, e não apenas físico, como analisa Maurice Halbwachs, explica a continuidade do passado no presente da memória. Márcia Mansor D`Áléssio, em artigo para a Revista Brasileira de História, analisa a categoria memória nas obras de Pierre Nora e Maurice Halbwachs. Analisando este último autor, ela afirma que

(...) situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu.Aliás, ao que pertence, pois só se fez parte de um grupo no passado se se continua afetivamente a fazer parte dele no presente. Se no presente, alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo- ainda que pertencesse fisicamente-, já que é o afetivo que indica o pertencimento”.(D`ÁLÉSSIO, 1992, p. 98-99).

A transmissão oral, efetivada no seio dos grupos familiares, foi o mecanismo essencial para a manutenção de sua versão, diferentemente dos vitoriosos de 1930, que vão instituir uma memória pautada por um imaginário situado mais no ângulo dos lugares de memória institucionalizados. Como argumenta Michael Pollak (1989, p.3), o fato das memórias vencidas pela oficialidade não se configurarem nos chamados lugares de memória, não implica em esquecimento total, elas se conservam na marginalidade, à espera de um contexto futuro que possa tirá-las do silêncio.