quarta-feira, 30 de maio de 2012

“NEM PERREPISTA, NEM LIBERAL: DEVOLVAM O NOME PARAHYBA A NOSSA CAPITAL”.





José Luciano de Queiroz Aires

Era o dia primeiro de setembro de 1930. Luto e luta, choro e romaria, canto e conflito. Uma multidão se agigantava na dinâmica da então cidade da Parahyba, esbanjando uma mistura de revolta e dor. Achava-se o legislativo estadual reunido para a apreciação do projeto que mudava o nome da capital paraibana de Parahyba para João Pessoa, enquanto as galerias e a frente do prédio estavam repletas de manifestantes. No decorrer da sessão, o deputado Argemiro de Figueiredo, autor do projeto, requereu ao presidente da Casa que a mesma fosse suspensa para que os parlamentares tomassem conhecimento de uma manifestação do povo da capital.
Havia se passado um pouco mais de um mês do assassinato do presidente João Pessoa, ocorrido em 26 de julho daquele ano, na confeitaria Glória, no Recife. Segundo José Jóffily (1979, p. 298/299)

Da morte de João Pessoa até a madrugada da Revolução, vivemos dois longos meses de corre-corres e quebra-quebras sob a trepidação de eloqüências inesgotáveis... Era uma legião sem uniformes. Tinha, porém, um distintivo comum para homens e mulheres: o lenço encarnado na cabeça, no pescoço ou na cinta. A palavra vermelho era empregada como sinônimo de liberal. A partir do dia 27, a casa que não ostentasse uma bandeirola preta ficaria suspeita de perrepismo, isto é, de “assassino de João Pessoa”. Após aquele sábado trágico, as passeatas adquiriram mais alvoroço e maior participação para pressionar o Governo no sentido de mudar o nome da Capital e de adotar a nova bandeira- a do NÉGO até hoje instituída.

E Jóffily (1979, p.300) defende o projeto com base na vontade “popular”.

Registra nossa História várias alterações toponímicas. Temos Petrópolis, Teresópolis, Florianópolis e outras homenagens a estadistas. Todas, porém, foram impostas de cima para baixo, por mera força de decreto. Bem diverso é o caso da Paraíba, que resultou de irresistível pressão popular. Nem a Revolução Francesa trocou o nome de Paris. Para nos situarmos em nosso século: nem sequer foi tentada a mudança de Dallas ou de Brookline- cidade natal do presidente assassinado- para o nome de “Kennedy”.

Acho que devo introduzir uma questão problematizadora. Quais os objetivos de uma ala da Aliança Liberal paraibana em alterar o topônimo da capital da Paraíba? Defendo a tese de que o Poder Simbólico é tão ou mais forte do que a força física, pois, como diria Pierre Bourdieu (1989, p. 14/15) ele age de acordo com os objetivos de quem o institui, porém, não se coloca como arbitrário tendo em vista que o que o torna legítimo é “a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia”. (BOURDIEU, p. 14/15).
Ora, a Aliança Liberal havia sido derrotada no plano das urnas, nas eleições de 1º de março de 1930. Como, porém, destituir Washington Luiz e chegar ao Catete? Parece-me interessante citar uma observação feita pelo governador perrepista de Pernambuco, Estácio Coimbra, na qual afirmava, após a morte de João Pessoa, que “a Aliança Liberal agora tem um mártir” (VIDAL, 1978, p. 178). O “mártir” vira símbolo, tem Poder Simbólico, é fabricado sob forma de mito e apropriado demasiadamente, primeiro, para legitimar a tomada do poder iniciada na madrugada de 3 de outubro, na Paraíba, com vitória final em 24 daquele mês, com a ascensão de Vargas ao Catete. Mas a simbologia mitificada de João Pessoa era muito poderosa e rendeu dividendos políticos, pelo menos por mais quinze anos (esse foi o recorte que estudei, o mito se arrasta até nossos dias)- procurando legitimar o Estado Nacional autoritário que emergiu da conjuntura do movimento de 1930, assim como, os baluartes da ala revolucionária da Aliança Liberal paraibana, que se projetaram sempre à sombra do espírito de João Pessoa.
Em nome de João Pessoa, a Aliança Liberal casou e batizou. A princípio, planejou e conseguiu tomar o Catete. A posteriori, rachada, suas duas alas planejavam suas ações tomando o “herói” como ponto de partida. O PP invocava João Pessoa para legitimar José Américo, que se tornou ministro de Vargas. O PRL incorporava o espírito de João Pessoa para tentar a continuidade da família no comando do estado, apostando em Joaquim Pessoa para substituir o irmão. Pelo visto, a alma do ex-presidente paraibano não descansava em paz. Era acionada do além, para trabalhar em prol das querelas terrenas. Foi assim que, em 1932, o interventor Gratuliano de Brito, ao discursar para os soldados paraibanos que partiam para combater os paulistas, se expressou:

(...) Marchae soldados da Parahyba que a Victória é certa. Só tenho duas cousas a pedir-vos: no aceso do combate, lembre-vos de que antes de tudo soes parahybanos e que o espírito de João Pessoa paira por sobre as vossas cabeças, illuminando a vossas trincheiras e abençoando a vossa bravura. ( apud GURJÃO, 1994, p. 114)

José Américo, discursando em São Paulo, não deixava por menos: “... E dar a São Paulo a certeza que estamos dispostos a derramar todo o nosso sangue para não macularmos o sangue de João Pessoa, para não sermos infiéis ao sacrifício do nosso grande mártyr.” (GURJÃO, 1994, p. 115).
Em nome da memória de João Pessoa, os interventores paraibanos governaram. Buscaram legitimação. É tanto que festejaram sua memória anualmente, nas comemorações do feriado do 26 de julho. Procuravam, por meio de um sujeito singular coletivo chamado “povo paraibano”, coesão social, evitando todos os tipos de lutas e conflitos, apresentando uma imagem oficial de “Paraíba unida”, como se todos comungassem com a memória criada em torno daquele mito. Sendo assim, empurravam para os subterrâneos do silêncio as memórias das elites perrepistas derrotadas nos planos político e simbólico. Essas, tentavam aterrisar, tomar fôlego, gritar, pediam, desesperadamente, que alguém as ouvisse. E houve quem as escutasse, mas em outras redes de sociabilidades, sobretudo, as familiares, por meio da tradição oral.
Conforme assinala  Michael Pollak (1989), o processo de enquadramento da memória, oficializada, perpassa pela arbitrariedade de se colocar como a memória englobante de toda sociedade, jogando aos subterrâneos da marginalidade as memórias das oposições a esse projeto maior de coesão social. Foi assim que ocorreu com o movimento de 1930 na Paraíba. Enquanto foram criados vários lugares de memória (Nora), institucionalizando o mito João Pessoa, como o “herói” da revolução e dos “novos” tempos, as memórias perrepistas foram silenciadas providencialmente pelos vencedores de 1930. Entre esses lugares de memória destaco a criação da Bandeira do Nego, da edificação de uma verdadeira estatuomania, para lembrar o historiador francês Maurice Agulhon, da composição do Hino de João Pessoa, da escrita da história imediatamente materializada em livros apologéticos, da institucionalização de um feriado do 26 de julho com toda gama de comemorações cívicas e da mudança do nome da capital paraibana. Sobre esse lugar de memória é que darei ênfase nesse artigo.
 Um dia antes dessa sessão legislativa que votava a mudança do nome da capital foi distribuído entre a população local um boletim, cujo teor abaixo transcrevo:

Ao povo-No intuito de prestar mais uma homenagem à memória do inolvidável e querido Presidente João Pessoa, indo ao encontro da vontade de quase totalidade dos paraibanos, cogita o povo de nossa terra promover os meios necessários, no sentido de ser mudado o nome da capital do Estado para o de João Pessoa. Para este fim, a comissão abaixo assinada convida todas as classes desta cidade para uma grande reunião, amanhã, 2ª feira, às 13 horas, na praça que tem o nome do grande benfeitor da Paraíba, onde, após um discurso de consagrado orador, irá toda a população à Assembléia Legislativa solicitar a execução dos seus desejos.Para maior realce dessa procissão cívica, encarece a comissão o fechamento de todo o comércio àquela hora, a fim de que possam os interessados-que são todos os filhos dignos da Paraíba-tomar parte direta no grande acontecimento que vem homenagear o maior vulto do Brasil dos nossos dias. Paraíba, 31 de agosto de 1930.-A comissão: América de Oliveira, Alexandrina Pinto Cavalcanti, Isaura Miranda, Moça Viana, Anatilde Morais, Celina Rosas Rabelo, Júlia de Miranda Peregrino, Rita Miranda, Corintia Rosas Monteiro, Donzinha Andrade, Analice Caldas, Francisca d´Ascenção Cunha, Nevinha de Oliveira, Aurélia Rattacazo, Leonídia Coutinho, Mignon Freire, Corina Ramos de Vasconcelos, Helena Meira Lima, Nazinha Coutinho. (VIDAL, 1978, p. 337, grifos nossos).


A leitura desse documento comporta algumas observações que destaco a seguir. Como podemos notar, havia um grau de sistematização de grande envergadura no tocante à mitificação do presidente morto e à elaboração da memória oficial. Em primeiro lugar, notamos que o boletim conclamava todo o “povo”, todas as “classes” para pressionarem os parlamentares no dia da votação, justamente porque a manutenção do apoio popular, em torno da memória de João Pessoa, era imprescindível, nesse momento, aos planos golpistas da Aliança Liberal. Em segundo lugar, fica explícito o grau de organização do movimento visto que, na programação, constava um “discurso de consagrado orador”, revelando algo tramado nos bastidores da política e assinado por senhoras da elite local. De acordo com Jóffily (1979, p. 273) “Na Paraíba, o padre Mathias Freire, em comícios permanentes, convocava as lideranças femininas”, de modo que podemos pensar a participação feminina durante aquele contexto, à sombra da Igreja Católica, propagando a ideologia da “ordem” e da moral.
Em verdade, havia uma sistematização dessa memória oficial com vistas a se contrapor à memória subterrânea das elites perrepistas derrotadas e, ao mesmo tempo, tomar os grupos e classes populares como aliados. Não estamos querendo dizer, com isso, que a população não quisesse manifestar-se; havia, na capital, um clima propício para as manifestações, tendo em vista a aceitação positiva do governo João Pessoa. Porém, a vontade do grito nas ruas se somava aos mecanismos criados pela sociedade política para manter essa população vibrando com a criação dos lugares de memória que se destinavam a lembrar o mito.
O fato de a multidão estar nas ruas não representava comando do processo de institucionalização dos lugares de memória; o povo formava o ambiente adequado para os planos do golpe urdidos pela sociedade política e era potencial para apoiar os planos dessa.
No dia 1º de setembro de 1930, achava-se o legislativo estadual reunido para a apreciação do projeto enquanto as galerias e a frente do prédio estavam repletas de manifestantes. Será que o objetivo dos manifestantes era apenas pressionar os deputados para que aprovassem o projeto? Pensamos que essa não era a principal razão, até porque não corria risco de rejeição, uma vez que a maioria dos deputados perrepistas não mais comparecia às sessões e, como observa o próprio Ademar Vidal, (1978, p.336) “apenas dois ou três deputados afinavam com o pensamento isolado do governo”. É tanto que o projeto foi aprovado por unanimidade. Portanto, manter a população nas ruas tinha um objetivo muito maior, a tomada do poder, e longe da espontaneidade da população, tudo era programado e ritualizado por homens do governo, mas sem a participação do governador (na época, presidente de estado).
A memória oficial ia sendo elaborada com a participação popular, mas coordenada pelos membros “revolucionários” da Aliança Liberal. Tudo em forma de cerimonial, de ritual, como rezam as tradições inventadas, para citarmos Eric Hobsbawm. No dia 4 de setembro de 1930, em mais uma sessão legislativa, o deputado João Mauricio pede a palavra e requer a suspensão da mesma para a Assembléia participar do ato solene da sanção do projeto que muda o nome da capital. Durante a solenidade, coube ao deputado Lima Mindêllo fazer o discurso de saudação ao novo topônimo, seguido do ritual da sanção, o qual foi realizado com uma caneta de ouro cuja aquisição foi feita mediante “subscripção popular” realizada pela comissão de mulheres.                                                                                                                                                                                             
Após o ato, a senhora Olívia Athayde discursou em nome da comissão. Dirigindo-se ao presidente Álvaro de Carvalho, solicitou apoio ao projeto da bandeira rubro-negra.
O chefe do Executivo estadual estava ladeado pelo Secretário de Segurança Pública, José Américo de Almeida, o Secretário da Fazenda Flodoardo Lima da Silveira e pelos deputados Velloso Borges, Lima Mindêllo e Guedes Pereira. Esse bloco não era homogêneo e nele existia um conflito que podemos dimensionar na dicotomia - tradição antiga versus tradição nova, ou melhor, “ordem, pacificação” versus “agitação, revolução”. O discurso de Álvaro de Carvalho, naquele momento, reflete a postura de epitacistas antigos, aqueles que “preferiam dez vezes Júlio Prestes a uma Revolução”. Falou do “amor às tradições” e disse que “sacrificava o seu ponto de vista pessoal em favor da vontade de seus concidadãos” (Jornal A União, 5  set. 1930).
Mesmo com a ressalva de Álvaro de Carvalho, o projeto nº 4 se transformou em Lei nº 700 e, mais do que simplesmente uma homenagem a João Pessoa, o que ocorreu naquele momento, foi uma vitória da ala “revolucionária” da Aliança Liberal, chefiada por José Américo, que assumirá o governo da Paraíba após a tomada do Quartel do 22º BC.
E assim se fez mais uma alteração toponímica na capital paraibana. De Felipéia de Nossa Senhora das Neves, em homenagem ao rei Felipe II, da Espanha e a um nome Cristão, passou, em 1634, com a invasão holandesa à Frederica, prestando homenagem ao príncipe flamengo, Frederico. Com a expulsão dos holandeses, em 1654, passou à Parahyba, topônimo tupi que significa rio ruim e, em 1930, volta a homenagear um homem: João Pessoa.
Os perrepistas nunca aceitaram essa mudança. Ainda hoje, alguns remanescentes, cujas memórias, mesmo vividas por tabela, como assinala Pollak, rejeitam esse novo lugar de memória.
O depoimento de Inadi Torres Vilar é pertinente ao que afirmamos, senão vejamos: “lá na capital, na Parahyba, que aquela merda se chama Parahyba, registre é um velho com setenta e oito anos que está dizendo”. Em tom de provocação, insistimos no assunto, interpelando se ele não chamava a capital pelo nome de João Pessoa. A resposta sobreveio de imediato: “só quando eu erro”, respondeu o entrevistado.
Além das palavras, vale ressaltar a entonação da voz do entrevistado, falando com ódio, alterando a voz no decorrer da conversa, como se estivesse fisicamente vivendo os acontecimentos daquele contexto histórico.
Entendemos que o conceito de pertencimento grupal, que é afetivo, e não apenas físico, como analisa Maurice Halbwachs, explica a continuidade do passado no presente da memória. Márcia Mansor D`Áléssio, em artigo para a Revista Brasileira de História, analisa a categoria memória nas obras de Pierre Nora e Maurice Halbwachs. Analisando este último autor, ela afirma que

(...) situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu.Aliás, ao que pertence, pois só se fez parte de um grupo no passado se se continua afetivamente a fazer parte dele no presente. Se no presente, alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo- ainda que pertencesse fisicamente-, já que é o afetivo que indica o pertencimento”.(D`ÁLÉSSIO, 1992, p. 98-99).

A transmissão oral, efetivada no seio dos grupos familiares, foi o mecanismo essencial para a manutenção de sua versão, diferentemente dos vitoriosos de 1930, que vão instituir uma memória pautada por um imaginário situado mais no ângulo dos lugares de memória institucionalizados. Como argumenta Michael Pollak (1989, p.3), o fato das memórias vencidas pela oficialidade não se configurarem nos chamados lugares de memória, não implica em esquecimento total, elas se conservam na marginalidade, à espera de um contexto futuro que possa tirá-las do silêncio.


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