Dr. José Luciano
de Queiroz Aires (UFCG-ANPUH-PB)
A
dialética do lembrar e esquecer tem uma dimensão política que envolve o campo
da memória e da história. E como toda atividade humana, está sujeita a
manipulações, usos, abusos, esquecimentos e silêncios. Assim, inserida no campo
das batalhas, a memória se movimenta num campo de disputas políticas marcadas a
partir das leituras e escavações que as gerações do presente realizam sobre o
passado.
Daí
por que, um filósofo engajado como Walter Benjamin, ao escrever as famosas
Teses sobre o conceito de História, em 1939, aludia a dimensão do passado a ser
lembrado como condição de “redenção” das gerações oprimidas. Para ele, era
preciso retirar o passado da condição de neutralidade, ao qual fora alçado pela
historiografia oficial, a fim de mostrar as relações de dominação de classe e
de impedimentos e derrotas dos projetos dos trabalhadores nele realizados.
Afinal de contas, a concepção de cultura e de História benjaminiana, perpassa
pelo ângulo dos sinais de dominação, da barbárie que se esconde sob a beleza estética
dos monumentos e das gotas de sangue que mancham os bens culturais. Escovando
ao contrário, podemos/devemos explicitar os fracassos e as irrealizações dos
projetos e das lutas dos excluídos da História, entender o processo dessas
dominações e resistências na espessura do tempo passado.
Interessante
notar a relação estabelecida entre os vivos e os mortos. Na Tese 2 Benjamin
pergunta a respeito do “encontro secreto” entre as gerações precedentes e o
presente, sinaliza quanto às ligações entre as vozes que escutamos no agora e
os ecos das vozes que emudeceram, e alerta ao historiador materialista
histórico ser um messiânico a redimir os apelos do passado. De um passado que
foi prometido e não foi cumprido. Mas esse passado grita e o historiador
precisa escutá-lo em seus horrores e não na sua monumentalidade. É dever do
historiador, articular o passado não como de fato ocorreu, mas se apropriar
dele como uma reminiscência a relampejar no momento de um perigo, buscar nele
centelhas de esperanças, pois nem os mortos estarão seguros se o inimigo
vencer. Aqueles que dominam no presente são herdeiros dos vencedores do passado
ao passo que os oprimidos no presente herdaram a exploração e lutas dos
excluídos do passado. (BENJAMIN, 1994, p. 224/225) Desse modo, a redenção/revolução
encontra-se indissociável do trabalho de rememoração, de uma memória ferida e
derrotada em oposição à memória oficial do vencedor, de uma reparação das
injustiças aos oprimidos e da consequente punição moral aos responsáveis por
elas. Os vivos do presente têm uma dívida para com os vivos do passado.
A
redenção do passado oprimido, sua realização e reparação no presente dos
projetos não realizados no passado, devem ocorrer em ligação com a rememoração
histórica das vítimas desse passado (TESE 2). Nesse aspecto, segundo observa
Michael Löwy, cabe ao anão teológico a tarefa da rememoração, num movimento
dialético para o passado (memória) e para o presente (redenção/revolução). Nesse
particular, pode-se perguntar a respeito da especificidade do marxismo
benjaminiano. Ao ler História e
consciência de classe (1924), obra de Georges Lukács, o aspecto que mais
despertou atenção de Benjamin foi a ênfase na luta de classes, pois rememorar a
luta entre exploradores e explorados interessava mais a ele do que estudar as
forças produtivas, contradições sociais, formas de propriedades, modos de
produção e Estado. Embora concorde com Brecht sobre a importância das coisas
materiais, ele atribui grande importância aos aspectos espirituais e morais,
uma vez que são esses que impulsionarão a luta por aquelas. O materialismo
histórico benjaminiano foge a abstrações filosóficas evolucionistas e se volta
para a luta concreta, para a dialética dos tempos.
A
propósito dessa discussão, faz-se bastante relevante explicitar mais
detalhadamente o conceito de revolução em Walter Benjamin. Benjamin entendia a
revolução como um momento de ruptura no curso da história afastando a
catástrofe que ameaça a humanidade. (SCHLESNER, 2011, p. 42). A revolução é o
correspondente profano da redenção dos oprimidos, o dia do acerto de contas com
as vítimas dos passados, um processo de liberação das aspirações libertárias
das classes exploradas no cortejo triunfal da história. Esse dia, em que a
revolução introduz um novo calendário (TESE XV) é, ao mesmo tempo, ruptura e
tradição, pois como nos mostra Michael Löwy, se trata do dia do encontro do
novo com todos os momentos de revoltas do passado.
Mais
de setenta anos se passaram da escrita das teses benjaminianas, mas em grande
medida elas são bastante importantes para os historiadores do Século XXI. Em um
tempo marcado pelo conformismo e pela hegemonia do discurso da inevitabilidade
do neoliberalismo e da sociedade de consumo, escrever e agir no contrapelo significa romper com o
conservadorismo da teoria do fim da História. Como Benjamin alertava para o
perigo do fascismo, com ele podemos alertar sobre o perigo do capitalismo
neoliberal, pois a propaganda do progresso esconde as desigualdades que imperam
no mundo contemporâneo. Dessa maneira, o historiador filiado ao materialismo
histórico deve continuar se colocando do lado dos marginalizados, não apenas da
questão de classe social, mas de gênero, sexualidade, geracional, étnica, pois
como afirma Michael Löwy (2011, p. 153), “sua crítica geral à opressão e seu
apelo para que se conceba a história do ponto de vista das vítimas- de todas as
vítimas- dão ao seu projeto um alcance mais universal”.
Mais
recentemente, outro filósofo, Paul Ricoeur, também se ocuparia de escrever uma
obra emblemática sobre a memória, a história e o esquecimento, ressaltando a
dimensão política e ética do ato de lembrar-esquecer. Diferentemente de
Benjamin, que escreveu no tempo dos fascismos, a escrita de Ricoeur estava
marcada pelo apartheid sul-africano e pela experiência da Comissão Verdade e
Reconciliação. O filósofo francês retoma a noção de dívida transgeracional
abordada nas teses do alemão. E, na esteira de Freud, defende o trabalho de
memória em detrimento do dever de memória.
Essas
reflexões filosóficas são importantes para pensarmos no trabalho que a ANPUH-PB
vem fazendo com a memória dos vencidos de 1964. Instituída pelo Decreto
governamental nº 33.426, de 31 de outubro de 2012, a Comissão Estadual da
Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba conta com dois
historiadores representando a seção paraibana da Associação Nacional de
Professores de História. Tão logo o governador Ricardo Coutinho assinou e
publicou o decreto, a diretoria da associação entrou em contato com o chefe de
gabinete do governo, Waldir Porfírio, demonstrando interesse em nossa
participação na Comissão. Desse modo, nos foi sugerido que apresentássemos uma
lista compondo três nomes, dos quais um deles seria nomeado. Ao consultar os
associados, foram sugeridos alguns nomes de historiadores que vem estudando o
período do Regime Militar, de modo que enviamos três nomes dos quais o governo
nomeou dois deles: a professora Lúcia Guerra e o professor Paulo Giovani
Antonino, ambos do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba.
Pelo Ato Governamental 6.018, de 11 de março de 2013, foram nomeados os sete
membros da Comissão, cuja presidência coube ao anpuhano Paulo Giovani Antonino.
A
Comissão dividiu as atividades em dez grupos de trabalhos:
1-
Mortos e desaparecidos políticos do regime militar
2-
Mapa da Tortura
3-
A bomba estourada no Cine-Teatro Apolo II
4-
Cassação de mandatos eletivos e a magistrados
5-
Demissão de servidores públicos federais, estaduais e
municipais.
6-
Ditadura e Gênero
7-
Estrutura de repressão na Paraíba
8-
Intervenção nos sindicatos e em outras entidades da
sociedade civil
9-
Perseguição dos órgãos de segurança ao setor educacional
10- Repressão do Estado e
de milícias privadas aos camponeses
Cabe,
no entanto, ressaltar o papel desenvolvido pela ANPUH-PB nesse importante
trabalho de resgate de memórias junto a Comissão da Verdade e Preservação da
Memória. Sobretudo para os mais céticos em relação à nossa Associação e que
chegam a questionar até sua utilidade. A história da ANPUH-PB é uma história de
lutas políticas advindas dos tempos da ditadura. Não apenas porque somos uma
das mais ativas sessões no tocante à realização de encontros estaduais, mas,
sobretudo, pelas ações realizadas em prol da valorização do profissional de
História e dos posicionamentos críticos diante das questões mais amplas que
abrange a sociedade.
Assim
sendo, uma associação de profissionais de História que viveu os tempos da
ditadura civil-militar, não poderia faltar a esse momento importante do revirar
do baú nos quais se escondem rastros de uma memória ferida, dolorida,
traumática. Os dois anpuhanos que representam a ANPUH-PB na Comissão Estadual
da Verdade e Preservação da Memória não apenas estão prestando relevantes
serviços à comunidade de historiadores, levantando documentação que poderá
render inúmeras pesquisas acadêmicas, mas, também, prestando serviços de larga
envergadura à sociedade paraibana de modo geral, tentando pagar uma dívida,
muitas vezes, mesmo que simbólica (mas nem por isso menos importante), as
gerações que sofreram na pele o peso da tortura e do aparato militar montado
para a repressão.
Sem
desmerecer em nenhum momento os demais membros da Comissão, a ANPUH-PB, desde o
primeiro momento do ato governamental de instauração da mesma defendeu que nela
tivesse a participação de historiadores, profissionais formados para narrar
sobre as temporalidades históricas. Até porque soaria estranho mexer na memória
social sem um trabalho historiográfico eivado pela crítica inerente à operação
historiográfica. De modo que a ANPUH luta justamente pelo reconhecimento da
profissão de historiador para que sejam incluídos em um campo alargado de
trabalho (museus, arquivos, centro de memória e documentação, consultoria) a
participação de um profissional que tem formação compatível com as demandas da
construção narrativa da experiência humana no tempo, embora não sejam os únicos
a terem direito sobre os passados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet.
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LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma
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Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
ROUANET, Sérgio
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Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SCHLESENER,
Anita Helena. Os tempos da História:
leituras de Walter Benjamin. Brasília: Liber Livro, 2011.
SELIGMANN-SILVA,
Márcio. A atualidade de Walter Benjamin
e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009
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