sexta-feira, 18 de abril de 2014

OLHANDO SALVADOR A CONTRAPELO

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG-ANPUH-PB)

 “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (Walter Benjamin)

 Depois que li Walter Benjamin, aprendi a olhar o patrimônio cultural de modo completamente diferente. Ruiu aquele edifício conceitual prévio que associava patrimônio a apenas símbolos antigos, tangíveis e pertencentes às elites, sobre os quais paramos para sermos fotografados, dada a concepção de beleza estética sobre eles imaginados. Olhamos as igrejas barrocas e os sobrados coloniais e, imediatamente, eis que surge a pergunta: “como os portugueses conseguiram construir tudo isso naquela época?”. O filósofo alemão, certamente, reorientaria o questionamento. Para Benjamin, a origem dos bens culturais não pode ser refletida sem o olhar do horror, pois suas criações “devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos”. (BENJAMIN, 1994, p. 225)
 Fundamentado teórico e politicamente nessa concepção de cultura e de História a contrapelo, é que direciono meu olhar para a primeira capital do Brasil. E acompanhado por Benjamin como guia turístico dos melhores e mais críticos, percorro uma cidade construída sobre o sangue de nativos e africanos escravizados. Foram eles os sujeitos que pegaram pedra e cal para erguerem igrejas, praças, palácios e conventos que abrigavam uma elite colonial ávida por almas e açúcares. O Pelourinho, hoje tombado patrimônio da humanidade e cartão postal da cidade, tinha significação de sofrimento no Brasil Colonial. Eram colunas erguidas, inicialmente no Terreiro de Jesus e nas atuais Praças Castro Alves e Tomé de Sousa, sobre as quais os negros escravizados eram castigados publicamente e que, aos poucos, foi denominando todo o complexo do centro histórico de Salvador. A própria geografia simbólica da cidade também foi excludente, no alto, foram erguidas sedes administrativas, instituições religiosas e residências das elites; na cidade baixa, o porto e o comércio, ambas ligadas pelo atual Elevador Lacerda, herdeiro simbólico das desigualdades geográfica, social e étnico-racial. Os espaços públicos de Salvador, Praça Municipal, Terreiro de Jesus, Caminho de São Francisco, Largo do Pelourinho, Largo de Santo Antônio e Largo do Boqueirão, entre os quais se localizam a Igreja dos Jesuítas, hoje Catedral de Salvador; a Igreja e Convento de São Francisco, a Igreja do Carmo, a Igreja e Convento de Santa Teresa, a Igreja e Mosteiro de São Bento, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco e o Palácio do Governador, foram construídos no século XVII a partir da riqueza gerada pela lavoura açucareira, o verdadeiro inferno dos negros escravizados. Tanta cana doce trabalhada envolta pelo suor amargo do escravo. Tanta igreja para “salvar almas brancas” e “condenar almas negas”, igrejas tão belas na plasticidade, mas tão sujas na história, pois em nome da universalização religiosa ocidental judaico-cristã, fora acionado o catecismo para convencer e a inquisição para punir. Entretanto, vale dizer que nativos e negros escravizados jamais se curvaram à dominação enquanto durou por mais de três séculos a escravidão no Brasil. Na Praça da Piedade, centro histórico de Salvador, em 1799, foram enforcados e esquartejados os líderes da Conjuração Baiana, movimento popular inspirado pelo Iluminismo e que defendia uma independência com República, liberdade de expressão e abolição da escravatura. Delatado por um dos participantes, a praça se transformara em palco de espetacularização política de uma tragédia exemplar, a demonstração pública de autoridade e poder expondo cabeças despedaçadas e corpos estilhaçados como forma de educar pelo medo e constituinte de uma teia de significados que mandava recado: “pode acontecer isso com qualquer um de vocês que se rebelarem contra a coroa”. Sangue continuou escorrendo sobre as ruas estreitas da Salvador antiga. 
A Independência de 1822, feita a partir de cima, manteve os privilégios das elites agrárias, o latifúndio e a escravidão. Pela Constituição de 1824, Estado e Igreja Católica eram irmãs gêmeas na continuidade da perseguição aos terreiros de Candomblé na Bahia do século XIX. O sincretismo religioso colonial não aboliu a intolerância e o preconceito contra as religiosidades afro-ameríndias, muito pelo contrário, acentuou a continuidade da desqualificação das mesmas a partir da visão estereotipada da “demonização”, do “pecado”, do “mal”, em detrimento do catolicismo, auto-afirmando-se como a “verdadeira” religião da salvação. Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, os escravos malês (muçulmanos) insurgiram-se contra a ordem vigente e foram às ruas de Salvador defender a sua liberdade. A revolta envolveu 600 homens e foi delatada antes mesmo do seu inicio. Com a patrulha já em ação para conter a rebelião, os malês invadiram a Câmara Municipal sem muito sucesso nas investidas. No centro da cidade, segundo o historiador João José dos Reis, (...) atacaram um posto policial ao lado do Mosteiro de São Bento, outro na atual Rua Joana Angélica (imediações do Colégio Central), lutaram também no Terreiro de Jesus e outras partes da cidade. Em seguida desceram o Pelourinho,seguiram pela Ladeira do Taboão e foram dar na Cidade Baixa. Daqui tentaram seguir na direção do Cabrito, onde tinham marcado encontro com escravos de engenho. Mas foram barrados no quartel da cavalaria em Água de Meninos. Neste local se deu a última batalha do levante, sendo os malês massacrados. Alguns que tentaram fugir a nado terminaram se afogando. O saldo da revolta não foi dom melhores para os escravos africanos muçulmanos. Os envolvidos foram sentenciados com prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Do total, quatro escravos foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora no dia 14 de maio de 1835. E assim terminava mais um capítulo sangrento da História do Brasil. Rememorar essas gerações oprimidas no passado é condição importante para uma atuação política no presente-futuro, na qual a História como memória social deve está a serviço da construção do que Paul Ricoeur denomina de “memória feliz” ou “justa memória”, o de fazer justiça pela lembrança do Outro cuja memória fora alçada ao esquecimento e silêncio.

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