Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UAH/UFCG)
Escrevo
esse artigo a fim de expressar minha opinião sobre a laicidade das nossas
universidades públicas e, assim, responder aos vários internautas que me atacam
nas redes sociais, alguns dos quais usando fake
news.
Primeiramente, gostaria
de falar da legalidade e legitimidade da nossa defesa em torno da universidade
e do Estado laicos. Vamos à Constituição de 1988, Art. 5ª, parágrafo “VI- é inviolável
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e a suas liturgias”. No Art. 207, a Carta Magna diz que “As universidades gozam
de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e
patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão”. Já o Estatuto da UFCG diz o seguinte no Capítulo II, Art.
10, parágrafo “III – a natureza pública, gratuita, democrática, laica e
de qualidade socialmente referenciada, sendo de responsabilidade da União a
garantia de recursos para a manutenção da Instituição”.
Desses
dispositivos, podemos concluir que há embasamento legal para impedir a
realização de proselitismo religioso por meio de verdadeiros cultos que vêm se
desenvolvendo na UFCG. A Constituição, ao dizer que o Estado é laico, implica
dizer que as políticas de Estado e de governo, bem como as suas instituições,
não podem se orientar, administrar, ostentar ou se embasar em quaisquer
princípios religiosos. Por outro lado, o Estado laico deve proteger e defender
a liberdade de cultos, a diversidade religiosa e combater a intolerância religiosa,
os preconceitos e invasões a espaços sagrados por seus praticantes. Entretanto,
a garantia da liberdade de culto e da diversidade religiosa em um Estado
Moderno, desde o Iluminismo, deve existir de tal maneira que os mesmos sejam
realizados nos lugares religiosos existentes para religar o homem ao
sobrenatural (religare = religião).
No caso das
universidades públicas, nada impede que alun@s, professor@s e servidor@s
técnico-administrativos tenham suas diversas formas de religiões, muito menos
há problema algum que ostentem símbolos sagrados, mas o que é ilegal é a realização
de práticas religiosas em um espaço destinado à produção de conhecimento
científico. Nesse sentido, o Estatuto da UFCG é claro ao afirmar o caráter
público, gratuito e LAICO da nossa instituição.
Alguns podem
indagar: e a defesa da pluralidade de ideias, onde fica? Vamos lá. Quando o
Estatuto, o Regimento, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional falam de
pluralismo de ideias no âmbito da educação, é no tocante a diversas concepções
teóricas e pedagógicas, mas na dimensão do conhecimento científico, produzido a
partir de plurais fundamentações racionais passadas por regras e métodos
empíricos da ciência. Nesse particular, não há espaço para fazer explicações de
mundo no âmbito educacional laico tomando a metafísica teológica como
determinante nas nossas pesquisas. Inclusive, as próprias religiões são objeto
de estudos da ciência, ao menos desde a hermenêutica bíblica da virada do
século XIX para o XX.
Nesse ponto residem
outros esclarecimentos a fazer. Alguns poucos estudantes do curso de História
da UFCG têm afirmado haver preconceito contra cristãos no interior do nosso
curso. Outros internautas têm afirmado que meus discursos de críticas às
religiões são preconceituosos. Ora, talvez seja o caso de separar o joio do trigo.
Haveria preconceito e intolerância religiosa, caso eu desqualificasse rituais,
práticas, e crenças das pessoas em sua dimensão subjetiva. No próprio PET-História,
sob minha coordenação, temos cristãos, ateus, umbandistas, judeus e, ao que eu saiba
ninguém foi vítima de violência simbólica naquele programa, tampouco no curso
de História, no qual os professores são éticos o suficiente para respeitarem a
alteridade. O que talvez as pessoas não entendam, inclusive estudantes de
história e das ciências humanas, é que fazer a crítica às instituições
religiosas enquanto objeto de estudo historiográfico, sociológico e
antropológico, não implica preconceito e/ou intolerância. Estudantes da área de
humanas certamente saberão que as religiões, quando estudadas pelo prisma do
conceito de ideologia (Marxismo- Weberianismo) ou de dispositivo de poder
disciplinar (Michel Foucault), não estão descoladas das estruturas socioeconômicas
e políticas, e agem enquanto instrumento de dominação e resistência de classes
ou enquanto discursos que criam efeitos de verdade sobre os sujeitos,
disciplinando-os, classificando-os e hierarquizando-os.
No campo da
História, são várias as matrizes teóricas que estudam o papel das religiões
como instrumentos ideológicos de dominação de classes: o catolicismo, ideologia
do Feudalismo; o luteranismo e as igrejas reformadas do século XVI foram a
ideologia sustentáculo de uma ética burguesa do Capitalismo emergente; o Hinduísmo,
legitimador ideológico da sociedade de castas indiana, e assim por diante. Mas
as religiões e religiosidades também podem ser instrumentos ideológicos da
resistência das classes populares, é o caso do milenarismo inglês do século
XVII que, segundo Edward Thompson ajudou a conformar um projeto de formação da
classe operaria; da Teologia da Libertação latino-americana, cujo clero era
engajado nas causas dos pobres e oprimidos; ou ainda, os movimentos messiânicos
de Canudos, Contestado e Caldeirão, cuja religiosidade era o substrato
filosófico da luta contra o latifúndio e o coronelismo, portanto, padres junto
dos pobres camponeses. Sendo assim, sem essa de confundir estudos científicos
sobre religiões com preconceitos religiosos. Fazer o curso de História
pressupõe, ao menos, que a História é feita por agenciar humano, cultural e não
sobrenatural, sendo o próprio sagrado invenção humana, portanto, criatura e não
criador.
Em resumo:
v
A Constituição assegura o dever de
proteção da liberdade de cultos, mas que os mesmos sejam realizados nas igrejas,
templos, sinagogas, aldeias, terreiros, mesquitas e não na universidade;
v
A Constituição respalda a autonomia da
universidade, aliás, recentemente enfatizada longamente em sessão do STF, assim
como a liberdade de cátedra do professor;
v
Autônoma, devemos cobrar que o reitor
cumpra o Estatuto e impossibilite a realização de proselitismo religioso em
qualquer espaço destinado ao ensino, pesquisa e extensão baseado na ciência e
no pensamento racional crítico;
v
Não confundir crítica ideológica às
instituições religiosas com preconceito aos seus crentes, pois avançamos o
suficiente epistemologicamente para romper com o conhecimento no interior das
universidades calcado em preceitos teocrático-medievais escolásticos;
v
Na UFCG as pessoas podem seguir a religião
que quiser, mas não podemos fazer proselitismo, muito menos escrever nas provas
que “Deus fez a História, a Geografia, a Matemática, etc”;
v
Não há preconceito contra cristãos no
curso de História da UFCG, talvez alguns não aguentem o debate crítico da
historiografia. Nesse caso, só resta dizer que não esperem por um ensino
religioso de matriz cristocêntrica, pois os livros de História já saíram faz
tempo da Idade Média;
v
Por fim, sabemos que a busca dos
religiosos pelas Universidades se acentuou com o governo Bolsonaro e o MEC
militarizado e cristianizado, cuja sacada por trás da ideia de “apenas rezar”,
reside numa guerra de posição (Gramsci), uma disputa ideológica que visa matar
o pensamento científico e, talvez, alguns cientistas.
As universidades
públicas não “serão do senhor”, mas do povo brasileiro que tem sede de
conhecimento para transformar a si mesmo e o mundo. Para melhor, é claro.
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