domingo, 24 de março de 2019

TIREM AS MÃOS DA UFCG, ELA É LAICA SIM!

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UAH/UFCG)

Escrevo esse artigo a fim de expressar minha opinião sobre a laicidade das nossas universidades públicas e, assim, responder aos vários internautas que me atacam nas redes sociais, alguns dos quais usando fake news.
Primeiramente, gostaria de falar da legalidade e legitimidade da nossa defesa em torno da universidade e do Estado laicos. Vamos à Constituição de 1988, Art. 5ª, parágrafo “VI- é inviolável liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. No Art. 207, a Carta Magna diz que “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Já o Estatuto da UFCG diz o seguinte no Capítulo II, Art. 10, parágrafo “III – a natureza pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade socialmente referenciada, sendo de responsabilidade da União a garantia de recursos para a manutenção da Instituição”.
Desses dispositivos, podemos concluir que há embasamento legal para impedir a realização de proselitismo religioso por meio de verdadeiros cultos que vêm se desenvolvendo na UFCG. A Constituição, ao dizer que o Estado é laico, implica dizer que as políticas de Estado e de governo, bem como as suas instituições, não podem se orientar, administrar, ostentar ou se embasar em quaisquer princípios religiosos. Por outro lado, o Estado laico deve proteger e defender a liberdade de cultos, a diversidade religiosa e combater a intolerância religiosa, os preconceitos e invasões a espaços sagrados por seus praticantes. Entretanto, a garantia da liberdade de culto e da diversidade religiosa em um Estado Moderno, desde o Iluminismo, deve existir de tal maneira que os mesmos sejam realizados nos lugares religiosos existentes para religar o homem ao sobrenatural (religare = religião).
No caso das universidades públicas, nada impede que alun@s, professor@s e servidor@s técnico-administrativos tenham suas diversas formas de religiões, muito menos há problema algum que ostentem símbolos sagrados, mas o que é ilegal é a realização de práticas religiosas em um espaço destinado à produção de conhecimento científico. Nesse sentido, o Estatuto da UFCG é claro ao afirmar o caráter público, gratuito e LAICO da nossa instituição.
Alguns podem indagar: e a defesa da pluralidade de ideias, onde fica? Vamos lá. Quando o Estatuto, o Regimento, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional falam de pluralismo de ideias no âmbito da educação, é no tocante a diversas concepções teóricas e pedagógicas, mas na dimensão do conhecimento científico, produzido a partir de plurais fundamentações racionais passadas por regras e métodos empíricos da ciência. Nesse particular, não há espaço para fazer explicações de mundo no âmbito educacional laico tomando a metafísica teológica como determinante nas nossas pesquisas. Inclusive, as próprias religiões são objeto de estudos da ciência, ao menos desde a hermenêutica bíblica da virada do século XIX para o XX.
Nesse ponto residem outros esclarecimentos a fazer. Alguns poucos estudantes do curso de História da UFCG têm afirmado haver preconceito contra cristãos no interior do nosso curso. Outros internautas têm afirmado que meus discursos de críticas às religiões são preconceituosos. Ora, talvez seja o caso de separar o joio do trigo. Haveria preconceito e intolerância religiosa, caso eu desqualificasse rituais, práticas, e crenças das pessoas em sua dimensão subjetiva. No próprio PET-História, sob minha coordenação, temos cristãos, ateus, umbandistas, judeus e, ao que eu saiba ninguém foi vítima de violência simbólica naquele programa, tampouco no curso de História, no qual os professores são éticos o suficiente para respeitarem a alteridade. O que talvez as pessoas não entendam, inclusive estudantes de história e das ciências humanas, é que fazer a crítica às instituições religiosas enquanto objeto de estudo historiográfico, sociológico e antropológico, não implica preconceito e/ou intolerância. Estudantes da área de humanas certamente saberão que as religiões, quando estudadas pelo prisma do conceito de ideologia (Marxismo- Weberianismo) ou de dispositivo de poder disciplinar (Michel Foucault), não estão descoladas das estruturas socioeconômicas e políticas, e agem enquanto instrumento de dominação e resistência de classes ou enquanto discursos que criam efeitos de verdade sobre os sujeitos, disciplinando-os, classificando-os e hierarquizando-os.
No campo da História, são várias as matrizes teóricas que estudam o papel das religiões como instrumentos ideológicos de dominação de classes: o catolicismo, ideologia do Feudalismo; o luteranismo e as igrejas reformadas do século XVI foram a ideologia sustentáculo de uma ética burguesa do Capitalismo emergente; o Hinduísmo, legitimador ideológico da sociedade de castas indiana, e assim por diante. Mas as religiões e religiosidades também podem ser instrumentos ideológicos da resistência das classes populares, é o caso do milenarismo inglês do século XVII que, segundo Edward Thompson ajudou a conformar um projeto de formação da classe operaria; da Teologia da Libertação latino-americana, cujo clero era engajado nas causas dos pobres e oprimidos; ou ainda, os movimentos messiânicos de Canudos, Contestado e Caldeirão, cuja religiosidade era o substrato filosófico da luta contra o latifúndio e o coronelismo, portanto, padres junto dos pobres camponeses. Sendo assim, sem essa de confundir estudos científicos sobre religiões com preconceitos religiosos. Fazer o curso de História pressupõe, ao menos, que a História é feita por agenciar humano, cultural e não sobrenatural, sendo o próprio sagrado invenção humana, portanto, criatura e não criador.
Em resumo:
v  A Constituição assegura o dever de proteção da liberdade de cultos, mas que os mesmos sejam realizados nas igrejas, templos, sinagogas, aldeias, terreiros, mesquitas e não na universidade;
v  A Constituição respalda a autonomia da universidade, aliás, recentemente enfatizada longamente em sessão do STF, assim como a liberdade de cátedra do professor;
v  Autônoma, devemos cobrar que o reitor cumpra o Estatuto e impossibilite a realização de proselitismo religioso em qualquer espaço destinado ao ensino, pesquisa e extensão baseado na ciência e no pensamento racional crítico;
v  Não confundir crítica ideológica às instituições religiosas com preconceito aos seus crentes, pois avançamos o suficiente epistemologicamente para romper com o conhecimento no interior das universidades calcado em preceitos teocrático-medievais escolásticos;
v  Na UFCG as pessoas podem seguir a religião que quiser, mas não podemos fazer proselitismo, muito menos escrever nas provas que “Deus fez a História, a Geografia, a Matemática, etc”;
v  Não há preconceito contra cristãos no curso de História da UFCG, talvez alguns não aguentem o debate crítico da historiografia. Nesse caso, só resta dizer que não esperem por um ensino religioso de matriz cristocêntrica, pois os livros de História já saíram faz tempo da Idade Média;
v  Por fim, sabemos que a busca dos religiosos pelas Universidades se acentuou com o governo Bolsonaro e o MEC militarizado e cristianizado, cuja sacada por trás da ideia de “apenas rezar”, reside numa guerra de posição (Gramsci), uma disputa ideológica que visa matar o pensamento científico e, talvez, alguns cientistas.
As universidades públicas não “serão do senhor”, mas do povo brasileiro que tem sede de conhecimento para transformar a si mesmo e o mundo. Para melhor, é claro.




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