domingo, 31 de março de 2019

FOI GOLPE E FOI DITADURA SIM, SENHOR PRESIDENTE!



Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Escrevo esse texto, na qualidade de Historiador profissional e estudioso da História Republicana Brasileira. E não gostaria de começar dessa forma, fazendo uma espécie de auto-apresentação, mas a conjuntura política atual exige que assim o faça para afirmar meu lugar de pesquisador contra os vulgarizadores, banalizadores e irresponsáveis para com a manipulação do conhecimento histórico.  Os fake-news metidos a historiadores.
A começar do presidente da República, seus ministros e seguidores do “mito” da extrema-direita brasileira. Intelectuais orgânicos do sistema Capitalista, que se arvoram ao papel de historiadores sem, ao menos, ter cursado uma disciplina de metodologia da História. Se é verdade que o saber histórico não é monopólio dos historiadores profissionais, igualmente verdadeiro é defender que somos os mais qualificados para narrar sobre o tempo, uma vez que vivemos estudando para tecer a estrutura narrativa com base na profissionalização que o bom ofício requer.
Dito isso, gostaria de iniciar manifestando repúdio à decisão do presidente da República em ordenar que as Forças Armadas comemorassem o 31 de março de 1964 como “uma revolução que salvou o Brasil do Comunismo”. Igualmente repudiável, é um vídeo que circula nas redes sociais do dia de hoje agradecendo ao Exército Brasileiro por ter feito a tal “revolução” para “salvar” o Brasil da suposta “ditadura Comunista”.
Talvez fosse pedir de mais a turma de Bolsonaro uma leitura da magnífica obra de Paul Ricoeur: A Memória, a História, o Esquecimento. Lá eles encontrariam um filósofo defendendo a “justa memória”, a “memória feliz”, aquela que, em nome da ética, faz justiça às vítimas e não aos seus algozes da memória e da História oficiais. Os “heróis emoldurados” verdadeiros vampiros do sangue dos subalternos, tão criticados pelo samba enredo da Estação Primeira de mangueira no Carnaval de 2019.
Talvez fosse pedir bastante aos aprendizes de historiadores que conhecessem a historiografia brasileira sobre o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar, a exemplo do clássico livro de René Dreifuss que prova, exaustivamente, baseado em pesquisa empírica nos arquivos do IPES e do IBAD que havia um bloco do capital multinacional-associado cujos intelectuais orgânicos atuaram no combate ao bloco reformista-nacionalista durante a luta de classes anterior a 1964. Portanto, a articulação em torno das classes dominantes e de parte do Exército, com apoio de fração da classe média tradicional e da Igreja Católica, tinha por objetivo derrubar o governo trabalhista de Jango, impedir a continuidade da Democracia Liberal e frear qualquer possibilidade de reformas que viessem na linha nacionalista e trabalhista. Portanto, foi um golpe de classe, da classe dominante contra as classes populares que vinham intensificando sua organização e práxis na defesa dos seus interesses econômicos, políticos e sociais e lutando contra a opressão Capitalista.
Assim como o golpe, a Ditadura Militar que, ao contrário do que diz alguns historiadores revisionistas, durou vinte e um ano, também foi um regime político compatível com a natureza classista da dominação burguesa, portanto, uma Ditadura que matou, censurou, exilou e prendeu a fim de defender os interesses da burguesia local articulada com sua sócia maior transnacional.
A Ditadura Militar censurou inúmeras peças de teatro, composições musicais, novelas e a imprensa de modo geral. Ela não sabe conviver com a crítica, a contradição e a divergência. A Ditadura fez muitos companheiros e companheiras deixarem o Brasil, pois não podiam amar o regime autocrático enrolado no patriotismo verde-amarelo e disfarçado no conceito de Pátria propagado no “Ame-o, ou deixe-o”. A Ditadura prendeu e torturou àqueles e àquelas que sonhavam com um mundo mais justo e a tortura é a pior face por que passa o ser humano. Ele se anula na sua humanidade, diante o pau-de-arara. Parece impotente diante da máquina da morte, operada por gente da qualidade de Carlos Brilhante Ustra cujo livro da autoria desse monstro hoje é recomendado pelo governo para ser utilizado nas escolas e quando o mesmo é instado ao panteão dos “heróis” brasileiros pelo mesmo governo de plantão e seus seguidores. A Ditadura matou crianças inocentes, exterminou índios, perseguiu homossexuais. Calou a resistência em nome da “Ordem e Progresso” e em favor da acumulação de capital burguesa. Intensificou a intervenção e desmantelamento dos sindicatos trabalhistas, prendeu e torturou camponeses e camponesas que lutavam por um pedaço de chão para plantar. Era esse o “crime” cometido, a luta para trabalhar e produzir para se alimentarem, preço que pagaram alto diante do monstro que os engoliam ainda vivos. A Ditadura trouxe o agronegócio e o agrotóxico, “modernizou” o campo através do sistema de crédito, da mecanização e da proletarização dos agricultores, modelo de agricultura centrada na grande propriedade que ainda hoje vive a exportar e pouco empregar e alimentar os brasileiros. A Ditadura e a tortura foram patrocinadas pelas grandes empresas nacionais e multinacionais, incluindo bancos e empresas de meios de comunicação de massa, sem que até hoje ninguém tenha respondido pelos crimes cometidos contra os direitos humanos. Por fim, a Ditadura foi um regime político corrupto e deixou o Brasil em 1985 com uma crise econômica gravíssima: a concentração de renda, a hiperinflação, o aumento considerável da dívida externa e a dependência externa cada vez maior em relação aos Estados Unidos. Qualquer semelhança com a conjuntura atual, não é mera coincidência.
Portanto, hoje, passados 55 anos do Golpe Militar, não é momento de comemorar, pois a comemoração de regimes autoritários dessa natureza viola princípios caros de civilidade e humanidade. É preciso rememorar criticamente, de preferência ouvindo os historiadores profissionais a fim de que lutemos no presente para que experiências dessa natureza não se repitam. Façamos justiça às vítimas do passado, enfrentar governo que namora com a Ditadura é fazer a redenção benjaminiana do passado ao presente, é denunciar os algozes e fazer justiça às vítimas. Lutar contra o fechamento do regime atualmente é dever de todos que conhecem, na prática ou nos bons livros de História, o que se passou naquelas décadas sombrias. Ter consciência histórica crítica nesse momento é fundamental para fazermos a grande política. Nessa seara, os bons historiadores deverão prestar um grande serviço ao país.

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