Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)
Do
alto do Monte Hélicon, a anunciação advinda da trombeta da Musa Clio sobre o
tempo presente no Brasil é bastante desafiadora para seus filhos historiadores
do lado de cá do Atlântico. Com o livro de Tucídides na outra mão e a
eloquência capaz de inspirar as ciências e as relações políticas entre os
homens, talvez seja o caso de começar esse texto recorrendo ao nosso mito maior
a fim de tentar estabelecer alguns desafios e impasses colocados aos
professores/pesquisadores de História em tempos sombrios.
O
Brasil já foi representado de diversas formas, mas é a aquarela, talvez uma das
mais canônicas imagens de sua identidade nacional, por meio dos arranjos
sambistas de Ary Barroso que musicalizou a brasilidade se apropriando de
pinceis, tintas e cores harmoniosas e miscigenadas, tão ao gosto do sociólogo
pernambucano e do governo federal varguista. Pois bem, mesmo não entrando no
debate sobre a ideologia da suposta democracia racial, gostaria de tentar
imitar o compositor, mas fazendo um texto de historiador, de maneira que, assim
como ele, tento enquadrar o Brasil atual numa aquarela.
Por
alguma analogia, pode-se dizer que os tempos que nos separam – Ari Barroso de
nós - mesmo reconhecendo as suas especificidades históricas, estavam/estão
carregados por uma onda fascistizante que tenta pintar uma representação única
de Brasil: uma nação monoliticamente cristã, branca, heteronormativa, anticomunista,
antidemocrática, elitista, cujo modelo de família tida como “superior” é a
patriarcal. As tintas com as quais quero narrar o que estamos vivendo, procura
imitar, na imaginação, o clássico Guernica,
de Picasso; o Brasil do horror, das contradições históricas profundas, das
desarmonias, da democracia nunca resolvida e substantivada. Tudo de ponta
cabeça. Sangue de Marieles, chicotadas dos latifundiários gaúchos nos sem
terra, tiros na caravana e prisão política do ex-presidente Lula, intervenção
militar nas favelas do Rio de Janeiro, violência física e simbólica contra
mulheres, negros, LGBT, indígenas, quilombolas e lideranças de esquerdas.
Intolerância religiosa e racismo. Ódio de classe, nojo de pobre. Na minha
aquarela usei dois galões de tintas verde e amarelo para pintar o Golpe de
2016, hegemonizado por frações do capital financeiro, industrial, comercial e
agrário, mas orquestrado pelos patos de classe média, do “Movimento Brasil
Livre”, do “Vem pra Rua” e outros, ideologizado pela grande mídia reacionário-burguesa
e pelo Judiciário soba toga do juiz de
Curitiba que se acha maior que o próprio Deus. O golpe fez o Brasil regredir e,
por isso, construiu sua ponte para o passado. A roda da História girou para
trás e se encontrou com outros tempos nefastos. A privatização do que ainda
resta da PETROBRAS e a entrega do pré-sal às multinacionais; a contrarreforma
trabalhista e o encontro com o século XIX quando a legislação de proteção ao
trabalhador era pauta de luta de classe e greves históricas; a EC-95 que
congelou nosso orçamento por vinte anos, de modo que, visivelmente,
desmontam-se investimentos públicos e os mercantilizam na lógica do Consenso de
Washington; a terceirização irrestrita e a precarização do mundo do trabalho
acaba qualquer segurança jurídica e a estabilidade do trabalhador; a
contrarreforma da previdência que na verdade é o fim da aposentadoria pública
para favorecer fundos de pensões e o capital financeiro, rasgando o capítulo da
Seguridade Social da Constituição Cidadã de 1988.
Piorando
o quadro, há uma verdadeira guerra de cores. Uma juventude com camisa da
seleção brasileira resolveu aparecer na cena para enfrentar tudo quanto fosse
vermelho que aparecesse à sua frente. Na aquarela brasileira do meu tempo o que
não falta é espaço para desenhar e pintar a monstruosidade nostálgica daquele
passado de barbárie que pensávamos descansar no repouso eterno das catacumbas.
Eis que em tempos de crise orgânica, de descrença nas instituições
democráticas, passa-se a ocorrer a revolução passiva do cemitério. Saem das
tumbas do passado, arrancados pelas mãos de gerações do presente, desde
monarquistas e integralistas até defensores da volta da Ditadura Militar. Tudo,
ainda, em nome do combate à corrupção e ao comunismo, relembrando as Marchas de
1964 em nome de Deus e da Família.
Pinto
esses cadáveres abraçados com alguns ícones do presente, um abraço fraterno de
gerações promotoras da catástrofe que paira sob os que jazem sob as rodas do
cortejo triunfante da História. Que os venham receber seus defuntos prediletos,
Jair Bolsonaro, Magno Malta, Kin Kataguiri, Eduardo Cunha, Silas Malafaia e
toda bancada fundamentalista do Congresso Nacional e os ideólogos do “Movimento
Escola Sem Partido” exorcizando Carlos Brilhante Ustra e todos os ditadores,
torturadores e fascistas que passaram reinando na História desse país.
Um
pouco mais de dois anos de governo Bolsonaro o que vimos foi a intensificação
da autocracia burguesa e do flerte constante com a ideologia neofascista.
Ameaças às liberdades e às instituições da Democracia burguesa foram realizadas
à luz do dia, preferencialmente ao sol dos domingos e com a participação do
chefe de Estado alimentando uma horda fascistizante. A militarização da
política, a busca de apoio em setores da policia militar e milícias constituem
hoje sérias ameaças de um golpe de Estado de estilo bonapartista. Resta saber
se o presidente tem forças sociais e políticas para tal, o que ao meu modo de
ver não tem, mas preocupa sua vontade que não vem de hoje de lançar o Brasil em
uma guerra civil, alimentar o caos, para chamar a espada como talismã, conforme
bela metáfora da historiadora Emília Viotti da Costa. Ademais, a política
genocida e negacionista do governo já nos levaram mais de 300 mil pessoas, a
maioria constituída por velhos que, aos olhos do governo da necropolítica ajuda
ainda mais a reduzir o tal déficit na previdência social. Inflação crescente,
desemprego às alturas, precarização do mundo trabalho, falta de vacina, falta
de auxílio emergencial, volta do Brasil ao mapa da fome, retirada dos direitos
sociais que ainda restam, privatizações, reforma administrativa que acaba com
os serviços e servidores públicos, queimadas na Amazônia com a boiada passando,
corte nos orçamento da união para a saúde e educação publicas. Tudo isso, sob
as bênçãos de um Deus cúmplice, forte cabo eleitoral das igrejas
neopentecostais.
Diante
desse quadro que conjuga crise econômica internacional do capitalismo com crise
política e avanço da onda fascistizante, cabe perguntar o que estão fazendo e o
que podem fazer os filhos da musa da História em seu métier enquanto pesquisadores. Responder à questão requer definir
uma concepção de História, da possibilidade da função social desse campo
disciplinar e a relação entre a pesquisa acadêmica e a vida em sociedade. Por
isso mesmo, gostaria de esboçar algumas considerações a respeito dessas
premissas à luz de alguns autores com os quais mantenho uma interlocução
teórico-metodológica e política.
Uma
escrita da História que não sirva à vida e que não nos ajude a viver melhor não
passa de elucubrações para mero orgasmo individual do intelectual. Diante do exposto, cabe direcionar o texto no sentido de
tentar esboçar uma resposta que o garoto de Marc Bloch já perguntava nos anos
1940: “papai, então me explica, para que serve a História?”. Eu acrescentaria
para nosso tempo: afinal, para que escrever e ensinar História em tempos de
avanços da extrema direita, da crise do capitalismo e da retirada da
obrigatoriedade da disciplina de História no Ensino médio?
Vale a pena repetir as lições do mestre em sua Apologia da História:
Sobre o
livro que se vai ler, gostaria de poder dizer que é minha resposta. Pois não
imagino, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos
escolares. Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos.
Pelos menos conservarei aqui de bom grado essa pergunta como epígrafe, pergunta
de uma criança cuja sede de saber eu talvez não tenha, naquele momento,
conseguido satisfazer muito bem. Alguns, provavelmente, julgarão sua formulação
ingênua. Parece-me, ao contrário, mais que pertinente. O problema que ela
coloca, com a incisiva objetividade dessa idade implacável, não é nada menos do
que o da legitimidade da história. (BLOCH, 2001, p. 41)
Não poderiam soar tão atual as palavras do grande mestre dos Annales. Escritas nos anos 1940, já se
tornaram clássicas, pois envelheceram muito bem e estão à altura da indagação
do menino. Aliás, que moleque sapeca! Colocou todos nós na roda para a conversa
e desafiou o reinado de Clio a dar explicações convincentes a quem, certamente,
espera respostas práticas e funcionais para uma ciência humana cuja matéria
prima é retirada da poeira do tempo passado.
Para nós, historiadores brasileiros, atualmente mergulhados no turbilhão
de contrarreformas e retrocessos em todas as instâncias, incluindo a já citada
contrarreforma do Ensino Médio, que retira a obrigatoriedade da disciplina de
História naquele nível de ensino, cabe-nos seguir as lições de Marc Bloch e,
fortalecendo e chamando ao combate a nossa cinquentenária ANPUH, brigar em
defesa da legitimidade do conhecimento histórico. Aliás, fica um alerta aos
professores universitários que se encastelam na nobreza da pesquisa e esquecem
ou negligenciam, conscientemente, o ensino básico como se fosse algo “menor”,
esquecendo que não devemos/podemos falar apenas para doutos, mas também para os
escolares, conforme posição elogiosa defendida por Marc Bloch. Nossa juventude
carece de História para a formação de consciência histórica. E nós,
historiadores, precisamos continuar a luta da ANPUH para alargar o campo de
nossa atuação, para além dos bancos universitários e escolares. Tenho
acompanhado bastante, nas redes sociais, respostas aos discursos fascistizantes
daqueles que pedem a volta
da ditadura na linha afirmativa de quem diz mais ou menos: “eu não defendo
isso, eu estudei História”. Entretanto, se por um lado é correto que nem todos
aqueles que estudam História formam uma consciência histórica crítica de mundo,
por outro, não podemos abrir mão dessa função social e política de constituição
de sentido nessa linha, fazendo com que a História, enquanto ciência, não tome
a memória apenas como objeto de estudo, mas ela própria assuma essa condição de
memória histórica que traga as rememorações temporais passadas pelas regras e
métodos da operação historiográfica. Portanto, se o saber que produzimos deve
servir aos interesses das gerações do presente, ele deve ser realizado por
profissionais e cumprir uma função política que tenha em si a dimensão da
emancipação humana e não da exploração do homem pelo homem. Por isso, devolvo a
palavra a Marc Bloch para dizer que, se fosse julgada como incapaz de prestar
outros serviços à humanidade, restaria, em favor da História, sua defesa em
nome do nosso entretenimento. Contudo, mais adiante, ele questiona se todo
nosso esforço e atração para o nosso ofício de historiador se justificaria apenas em função de ser um amável
passatempo e responde categoricamente nas seguintes palavras que faço questão de
citar:
Com
toda certeza, num mundo que acaba de abordar a química do átomo e mal começa a
sondar o segredo dos espaços estelares, em nosso pobre mundo que, justamente
orgulhoso de sua ciência, não consegue todavia criar para si um pouco de
felicidade, as longas minúcias da erudição histórica, muito capazes de devorar
uma vida inteira, mereceriam ser condenadas como um desperdício de forças
absurdo a ponto de ser criminoso, se se devesse apenas servir para dissimular
com um pouco de verdade uma de nossas distrações. Ou será preciso desaconselhar
a prática da história a todos os espíritos capazes de serem melhor utilizados
em outro lugar, ou é como conhecimento que a história terá de provar sua
consciência limpa. (BLOCH, 2001, p. 44)
Nesse ponto, o historiador francês coloca a questão: “o que,
precisamente, torna legítimo um esforço intelectual?”. Para ele, a ciência
História seria incompleta se não nos ajudasse a viver melhor, agir e
compreender são inseparáveis no nosso métier.
Um primeiro impasse que gostaria de destacar em relação à pesquisa
historiográfica, principalmente na historiografia paraibana que conheço um
pouco melhor, se trata do já mencionado distanciamento entre a escrita e a
práxis, ou seja, muitos historiadores hiperdimensionam a pesquisa separada do
ensino e, principalmente, da extensão universitária. Sendo assim, põem a mão na
luva do sistema produtivista da CAPES vivendo apenas de contar números de
artigos publicados, qualis de
revistas e participação em congressos a fim de alimentar seu curriculum lattes e reverter em capital
cultural. Pior ainda é que muitas vezes tomam-se os indígenas, quilombolas,
LGBT, mulheres, trabalhadores, as instituições escolares, etc, como objeto de
estudo de Teses e Dissertações, que não passam de calhamaços encalhados em
prateleira de bibliotecas, mas rendem progressão e ascensão funcionais para os
pesquisadores, sem nenhum retorno político para os sujeitos do presente que
foram narrados pela pena do historiador de gabinete. Isso, sim, é uma atitude
bastante antiética.
Esse muro universitário que isola os intelectuais em guetos
competitivos e individualistas, tão ao gosto da ideologia neoliberal,
afastando-os do mundo lá fora, de seus problemas e contradições, para mim é um
grande problema, pois separa a pesquisa do ensino e extensão e, assim, o
exercício de interpretação do gesto político da ação. Aliás, essa preocupação
já estava no horizonte teórico de Antônio Gramsci, ao criticar, no Primeiro
Caderno do Cárcere, todas as correntes filosóficas imanentes anteriores à
filosofia da práxis justamente “por não terem sabido criar uma unidade
ideológica entre o baixo e o alto, entre os ´simples` e os intelectuais”.
(GRAMSCI, 2015, p. 99) Para o marxista italiano, a organicidade do pensamento e
a solidez cultural apenas poderiam ocorrer “se entre os intelectuais e os
simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática,
isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas
massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e
problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática,
constituindo assim um bloco cultural e social”. (GRAMSCI, 2015, p. 100) Dessa
maneira, ele anota no seu caderno de prisão que apenas através desse contato é
que uma filosofia se torna histórica, depurando-se de “elementos
intelectualistas de natureza individual e se transformando em ´vida`”.
(GRAMSCI, 2015, p. 100) Cabe perguntar para os historiadores do presente:
estamos mais preocupados em tornar o conhecimento histórico crítico e
socializá-lo para as classes e grupos subalternos em suas guerras de movimento
e posição? Ou em escrever uma Tese de Doutorado com 700 páginas para mera
satisfação individual dos intelectuais, da CAPES e de seus pares acadêmicos?
Ligada a essa questão, destacaria um segundo impasse que considero
igualmente problemático, este de natureza teórico-metodológica, mas também
político-ideológica. Trata-se da hegemonia do culturalismo e do
pós-estruturalismo nas pesquisas e no ensino de História nas universidades,
feito à custa do funeral da teoria marxista. Desde os anos 1990, muitos
historiadores vêm jogando fora a água com o bebê juntos e muitos estudantes de
graduação saem repetindo barbaridades a respeito do marxismo sem ao menos ter lido
a orelha de um livro de Marx. E ainda vem a santa ignorância do “Movimento
Brasil Livre” e do “Escola Sem Partido” dizer que nas nossas universidades
reina a “doutrinação ideológica” de base marxista!!!! Se assim o fosse, talvez
não teríamos, muito pelo contrário, termos que conviver com estudantes
fascistas em cursos de História nas nossas salas de aula, eleitores e cabo
eleitorais de Jair Bolsonaro.
Eis que como a história processo é dinâmica e aberta, a crise
atual demonstra que a teoria do materialismo histórico é a mais adequada para
se entender as contradições sistêmicas, o processo de globalização, a etapa do
capitalismo financeiro e neoliberal, o desmonte dos direitos dos trabalhadores
e a luta de classes em escala global. Por isso mesmo, o velho barbudo alemão
fez sua festa de 200 anos com uma jovialidade de dar inveja a qualquer
historiador pós-moderno. Karl Marx anda esbanjando saúde, lançando livros e
sendo um dos autores mais lidos pelo mundo a fora para se entender a crise
econômica do capitalismo contemporâneo.
Nesse particular, defendo que devemos começar a ensinar nossos
estudantes de graduação a ler os textos de Marx, Engels e do marxismo e não de
comentadores detratores de suas obras. Ler, sobretudo, para que possamos formar
cidadão críticos, engajados com os grupos subalternos e suas causas, pois,
conforme bela definição do filósofo Paul Ricoeur (2007, p. 506), em passagem
bastante benjaminiana que é que “a história, dizíamos então, encarrega-se dos
mortos de antigamente de que somos herdeiros. A operação histórica por inteira
pode então ser considerada como um ato de sepultamento”. Ao se referir à morte,
Ricoeur afirma que no campo da História não se trata de “um lugar, um
cemitério, simples depósito de ossadas, mas um ato renovado de sepultamento.
Essa sepultura escriturária prolonga no plano da História o trabalho de memória
e o trabalho de luto”. Nesse sentido, ele se aproxima da teoria da história à
contrapelo de Walter Benjamin, ao afirmar que “o trabalho de luto separa
definitivamente o passado do presente e abre espaço ao futuro. O trabalho de
memória teria alcançado sua meta se a reconstrução do passado conseguisse
suscitar um tipo de ressurreição do passado (...)” E formula uma interpelação
muito válida a todos nós, com a qual estou inteiramente de acordo: “Não é a
ambição de todo historiador alcançar, atrás da máscara da morte, o rosto dos
que no passado, existiram, agiram e sofreram, e fizeram promessas que deixaram
de cumprir”? (RICOEUR, 2007, p. 506).
Um
terceiro problema que gostaria de destacar, talvez resultado de questões já
apontadas, é o distanciamento dos historiadores em relação às lutas de ruas,
incluindo aí o esvaziamento das suas próprias assembleias sindicais. O governo
Temer implantou a pauta golpista do grande capital em menos de dois anos,
diante de uma ausência marcante de nossa categoria a fazer a resistência
concreta com os dois pés colocados sobre o chão da História. É óbvio que esse
problema não é apenas dos historiadores, mas quando convocados por centrais sindicais
e movimentos sociais para mobilizações/paralisações e greve geral, poucos de
nós aparecemos. E acompanhando esse movimento, nossos estudantes também se
ausentam de fazer política e deixam de vivenciar a práxis do movimento
estudantil para também viver correndo atrás de publicar artigos para alimentar
a máquina feroz e avassaladora do lattes.
No geral, o que temos visto com maior frequência é a revolução do facebook, muita gente indignada a pedir
o “Fora Temer” e a fazer oposição a toda pauta golpista, mas em uma situação
bastante confortável diante de uma tela de computador no seu escritório de
trabalho. Esquecemos que as redes sociais são um meio, e não um fim, embora
muito importantes em um país que não democratizou os meios de comunicação, mas
certamente não será de casa pela via da manifestação virtual que vamos mudar a
História. Se assim o fosse, Renan Calheiros não teria concluído o mandado na
presidência do senado federal, dada a quantidade de caixas com milhões de
assinaturas de abaixo assinado virtual que correram pelas redes sociais e
chegaram à mesa do senado. É mais que necessário que as esquerdas nesse país
retomem o trabalho de base e que os historiadores que se identificam com uma
concepção de História à contrapelo procurem seguir essa mesma direção, pois
estamos perdendo as ruas para o fascismo verde amarelo que marcha, mais uma
vez, na História do Brasil, à luz dos evangelhos e da defesa da família, da
ordem burguesa ultra neoliberal e da sacrossanta propriedade privada. Disputar
cada praça, cada rua, cada movimento de bairro, cada escola, cada movimento que
desponte do horizonte do inesperado, como no caso da greve dos caminhoneiros;
disputar hegemonia, fazer guerra de posição, eis alguns desafios para os
historiadores que tenham preocupação com a emancipação humana e com o combate a
todas as formas de dominação, exploração e opressão. E nós, senhores e senhoras
profissionais das narrativas do tempo histórico, temos o imperativo ético de
fazer o trabalho de consciência histórica articulando as categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa.
Baseado no historiador alemão Reinhart Koseleck, o filósofo
francês Paul Ricoeur (2010) é quem nos chama a atenção sobre a universalidade
meta-histórica dessas duas categorias históricas. Primeiro, porque em todos os
tempos os homens pensaram sua existência em termos históricos, na sua dupla
acepção (vivida e narrada); segundo, em função da variabilidade de que as duas
categorias assumem conforme as épocas, por isso mesmo, tornam possível uma
história conceitual das variações de seu conteúdo; em terceiro lugar, e para o
objetivo desse texto, o mais importante, a ambição universal do par categorial
meta-histórico é muito importante pelas suas implicações éticas e políticas
permanentes.
Tal implicação requer como tarefa aos historiadores impedir que a
tensão entre as duas categorias da temporalidade, experiência e expectativa, se
torne cisma. Para isso, Ricoeur nos coloca a par de dois imperativos: “resistir
à sedução de expectativas puramente utópicas; elas nada mais podem senão
desencorajar a ação; pois, por falta de enraizamento na experiência em curso,
são incapazes de formular um caminho praticável dirigido para os ideais que
elas situam em ´outro lugar`”. (RICOEUR, 2007, p. 367). É preciso aproximar o
horizonte de expectativa do tempo presente. Por outro lado, é preciso resistir
ao encolhimento do espaço de experiência:
Para tanto, é preciso lutar contra a tendência de só considerar o
passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo. É preciso reabrir o
passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas, massacradas
até. Em suma, contra o adágio que diz que o futuro é aberto e contingente e o
passado univocamente fechado e necessário, temos de tornar nossas expectativas
mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada. Ora, essas são duas
faces de uma mesma tarefa: pois somente expectativas determinadas podem ter
sobre o passado o efeito retroativo de revela-lo como tradição viva. É por isso
que nossa meditação crítica sobre o futuro pede o complemento de uma meditação
semelhante sobre o passado. (RICOEUR, 2007, p. 368)
É preciso “ser afetado pelo passado”. Primeiramente, para que no
nosso horizonte de expectativas possamos abrir o espaço de experiência, abrindo
no passado “possibilidades esquecidas, potencialidades abortadas, tentativas
reprimidas (uma das funções da história é, quanto a isto, reconduzir aos
momentos do passado em que o porvir ainda não estava decidido, em que o passado
era ele mesmo um espeço de experiência aberto para um horizonte de
expectativa)”. (RICOEUR, 2007, p.388) Por outro lado, esse potencial liberado
do “ser afetado pelo passado”, atribuindo-lhe tal sentido, pode contribuir para
dar “carne e sangue” às nossas expectativas em uma história por fazer no
presente-futuro.
Portanto, é no tempo presente que se pode ampliar ou encolher o
espaço da experiência do passado. O presente deixa de ser uma categoria do ver
para ser o tempo da iniciativa, portanto da ação e do sofrer, do “eu posso” raiz
“eu sou” sujeito atuante que Ricoeur vai buscar em Merleau-Ponty. Como o tempo
da iniciativa é o tempo da promessa, mas, sobretudo do seu cumprimento, “o de
manter a palavra é fazer com que a iniciativa tenha seguimento, que a
iniciativa inaugure verdadeiramente um novo curso das coisas, em suma, que o
presente não seja apenas uma incidência, mas o começo de uma continuação”.
(RICOEUR, 2007, p. 396) Por meio do “eu posso”, sugerimos a iniciativa do nosso
poder; por meio do eu faço, demonstraremos a força da nossa ação; por meio da
intervenção, inscrevemos nossos atos no curso das coisas, fazendo coincidir o
presente vivo com um instante qualquer; por meio da promessa mantida, darmos ao
presente a força de preservar, de durar e, portanto, deste último aspecto
resulta propriamente a significação ética que anuncia o caráter mais
especificamente político do presente histórico.
O presente é o tempo situado entre um passado que já não é e um
futuro que ainda não é. É o tempo do “agora” solidário entre o futuro próximo e
o passado que acabou de acabar. Ele supostamente pode inaugurar um tempo novo,
um novo começo, mas apoiado no chamado “reino dos contemporâneos” a intercalar
“entre o dos predecessores e dos sucessores”.
Voltando ao Brasil do presente, creio que precisamos romper com o
presentismo, que não vem de hoje, como se não tivéssemos mais horizontes de
expectativas nem espaço de experiências, pois futuro e passado pareciam
condenados pelo culto ao progresso e o fetichismo ao atual modelo de sociedade
pós-queda do Muro de Berlim. Tal posição teve reflexo na pesquisa
historiográfica que deixou de tratar temas importantes do passado para o
presente futuro, restando um profundo mergulho no culturalismo e em outras
abordagens teóricas que, indiretamente, reforçam certo conformismo com o tempo
presente descolado de seus dois vizinhos fundamentais da dialética do tempo
histórico.
Creio que é muito significativo passar por cima da teoria
conservadora do “fim da História”. É preciso criar horizontes de possibilidades
de futuro à luz da promessa ética e política da dívida com as gerações do
passado e seus projetos de emancipação impedidos, mas agindo no chão da
História e não apenas escrevendo em gabinete de universidade.
REFERÊNCIAS
BILIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política.
Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São
Paulo, Brasiliense, 1994.
BLOCH,
Marc. Apologia
da história ou o ofício de historiador Rio de Janeiro. Ed. Zahar/2001.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001- 2006, 6v.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa III. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
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