sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

MINHA EXPERIÊNCIA NA DIRETORIA DA ADUFCG: de volta para a luta na base

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Não cabe em qualquer curriculum lattes esse tipo de experiência política. Nem poderia, pois ela não pontua para o crescimento da pós-graduação, não tem bolsa de produtividade científica, nem premia os egos individuais das vestais acadêmicas que se envaidecem com os títulos entronizadores da casta encastelada e conformada de doutores. Entretanto, assumir a identidade de historiador sindicalista, cabe no curriculum vida, pois dá sentido à práxis pela qual alguns de nós ainda falamos, uma vez que procuramos articular interpretação teórica e intervenção política como faces de uma mesma moeda.
Aprendi lendo vários autores, aliás, de matrizes teóricas bastante diferentes, desde um Nietzsche, passando por Marx, Engels, Gramsci, Benjamin até os fundadores da Escola dos Annales como Marc Bloch e Lucien Fevbre, que o esforço de produção de narrativa do passado que não sirva à vida no presente e para o futuro não passa de mero exercício de erudição de divertimento dos historiadores. Aliás, penso até que se a História existisse enquanto campo disciplinar apenas para divertir os filhos de clio, seria absolutamente injusto os salários que a sociedade paga para sustentar tantos meninos grandões brincando de contar histórias por pura satisfação individual.
Por isso, aceitei a função de diretor secretário da ADUFCG durante o biênio 2015-2017, embora já fosse militante na base durante a greve de 2012. Na base ou na diretoria, acredito na instituição SINDICATO como instrumento importante da luta de classe, de gênero, étnico-racial e de combate a todas as formas de opressões. Principalmente um sindicato como o ANDES-SN, com mais de 80.000 professores universitários sindicalizados voluntariamente, abrindo mão, por uma questão ideológica, do imposto sindical; um sindicato classista e combativo, independente de qualquer governo ou reitoria de plantão e cujas decisões são realizadas em assembleias de base e não pelas cúpulas de diretorias.
Nesses dois anos à frente da Diretoria/secretaria da ADUFCG, ao lado de valoros@s companheir@s da Diretoria, da base e da Comissão de Mobilização, tive a oportunidade de unfrentar uma das mais difíceis conjunturas históricas dos últimos tempos. Aprendi muito com o entusiasmo e a garra da juventude dos estudantes e professores jovens que conosco militaram; aprendi bastante com a experiência dos companheir@s históricos que não mediram esforços na hora de nos mostrar seu acúmulo de experiência de lutas de outros tempos. Juntos, procuramos ir às bases: as assembleias de unidades acadêmicas e aos campi fora de sede, pois entendemos que o sindicato deve se aproximar dos sindicalizad@s para dialogar com a categoria. Fizemos vários círculos de debates procurando estudar e dialogar sobre os temas desafiadores que a conjuntura pós 2015 foi colocando a cada dia para a classe trabalhadora. Enfrentamos o debate sobre o golpe na perspectiva da diversidade, uma vez, que não havendo consenso nem entre a diretoria, nem entre a base, abrimos um informativo para que fossem expressas as mais diversas interpretações sobre o processo do impeachment/golpe, priorizando a diversidade de leituras ideológicas no interior de uma categoria heterogênea.
Sofremos, e a mim, particularmente, foi bastante desafiador, com a condução da Assembleia de novembro de 2016 quando da possibilidade de deflagração da greve nas universidades, uma vez que estudantes e professores vieram para inviabilizar a sua realização, descambando, posteriormente para um movimento fascistizante que tomou conta das redes sociais ovacionando Jair Bolsonaro, com resposta do próprio deputado se solidarizando aos professores que votaram contra a greve e com os estudantes seus seguidores. Essa Assembleia teve desdobramentos posteriores com processos contra professores e um crescimento da onda fascistizante no interior da UFCG, algo que continuo combatendo no interior da Unidade Acadêmica de História.
Aprendi muito durante os dois Congressos do ANDES e durante o CONAD, mas, sobretudo, nos atos de ruas, algo que gosto muito de fazer. Principalmente as marchas à Brasília vivenciando a repressão da Polícia e a história greve geral de 28 de abril com o piquete da garagem da empresa de ônibus da Cabral. Aprendi também como às vezes não é fácil se construir a unidade da classe trabalhadora, suas dificuldades no processo de construção de alianças, as diferenças ideológicas que nos ensinam que na história da luta de classes a vitória não é previamente identificada, nem as alianças são sólidas, mas construídas na experiência e, às vezes, ela nos leva a caminhos não tão promissores como foi na tão esperada greve geral do dia 30 de junho, que não veio. O que veio foi a contrarreforma trabalhista, diante da fragmentação das instituições representativas e que disputam a hegemonia da classe trabalhadora.
Poderia terminar essa gestão pessimista ao extremo. Lutamos contra a PEC que congelou o orçamento por 20 anos e PERDEMOS; lutamos para derrotar a Lei da Terceirização irrestrita e também PERDEMOS; lutamos para derrotar a contrarreforma trabalhista e também PERDEMOS; estamos às portas de também perder a Contrarreforma da Previdência; nossos salários, progressões e promoções foram congelados; lutamos por uma universidade pública gratuita laica e de qualidade, estamos perdendo para as multinacionais e para o fundamentalismo do MBL e do Escola sem Partido. Realmente, a correlação de forças é desigual e as classes dominantes não deram o golpe a toa, foi justamente para tocar todo essa agenda o mais rápido possível. E conseguiram, e estão conseguindo. Mas como dizia Antônio Gramsci, é preciso ser pessimista na análise para ser otimista na vontade. Nesse sentido, saio da diretoria com a missão do dever cumprido, de quem fez história no chão da luta de classe, junto à tant@s companheir@s, enfrentando o capitalismo, defendendo um projeto de universidade, de sociedade e de Brasil que acredito. Junto a vocês, procurei atuar na conjuntura, mesmo que desfavorável a nós, pois concordando com Gramsci, “Odeio os indiferentes (...) acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes”. É verdade que nem sempre saímos vencedores na luta, como Gramsci, Benjamin e Marc Bloch que foram mortos pelo fascismo. Mas tombaram na luta com coerência política de grande envergadura, articulada com suas concepções de História. Não é porque perdemos tantas conquistas sociais históricas em tão pouco tempo nesse Brasil de retrocessos seculares que devemos abandonar o barco, nem cair num ceticismo radical, não devemos abandonar os instrumentos clássicos e fundamentais da luta de classe. Talvez seja hora de continuar lutando e, ao mesmo tempo, catando cacos sem esquecer que não é o fim da História, pois ela é dialética.  Nem tudo está perdido, pois como nos ensinou, mais uma vez o grande Antônio Gramsci: “Meu estado de espírito sintetiza estes dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas otimista com a vontade. Em cada circunstância, penso na hipótese pior, para pôr em movimento todas as reservas de vontade e ser capaz de abater o obstáculo”.


domingo, 19 de novembro de 2017

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL A CONTRAPELO

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (PET-
História/UFCG)

Falar de patrimônio remete, imediatamente, à associação a “coisa velha” pertencente às elites brancas descendentes de portugueses colonizadores, cristãs, heterossexuais e ocidentalizantes, erguido na base material de pedra e cal. Pior ainda, são lembrados como sujeitos construtores dessa memória/patrimônio, apenas os homens brancos livres heterossexuais pertencentes as classes dominantes; os chamados “grandes vultos”, sujeitos individualizados e heroicizados nas suas ações, desde padres, políticos, militares, juízes, portanto, homens de comando do Aparelho de Estado e das Igrejas Cristãs hegemônicas no Brasil. A explicação para essa concepção de memória e patrimônio no Brasil, como bem sabemos, advém do Estado Novo, quando se criou o Serviço de Proteção ao Patrimônio Artístico Nacional, no contexto de um Estado de feição nacionalista/autoritário, cuja legitimidade também foi buscada hegemonicamente no campo simbólico da memória. Nesse sentido, a seara foi aberta para os intelectuais orgânicos dos arquitetos que começaram a preparar o tombamento de casas grandes, igrejas e sobrados coloniais e imperiais, esquecendo as senzalas, os terreiros, os quilombos e cortiços dos sujeitos de baixo na estrutura econômica e social dos períodos em questão. Para embasar minha crítica, nada mais adequado do que citar o clássico poema de Bertold Brecht, Perguntas de um Trabalhador que Lê:

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedras?
E a Babilônia várias vezes destruída -
quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida,
os que se afogavam gritavam por seus escravos
na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou quando sua Armada
naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.

Escrito na década de 1930, o dramaturgo marxista alemão criticava a exclusão dos verdadeiros sujeitos da história, da memória e do patrimônio. Daqueles trabalhadores que, coletivamente, ergueram palácios, templos, pirâmides, muralhas; que foram lutar nas guerras e sequer foram marcados com honrarias, arcos do triunfo ou estátuas nas ruas; que construíram a civilização e dela não puderam desfrutar, pois o belo patrimônio arquitetônico que levantaram com muito suor e força física não lhes pertenciam e sequer nele puderam entrar após sua construção. Portanto, nos acostumamos a olhar o patrimônio pelo prisma da beleza estética, falsamente atribuída a quem não pegou uma pedra para começar qualquer alicerce. Se seguirmos as lições de uma história e memória a contrapelo, como sugeridas na poesia de Brecht e teorizadas no clássico texto de Walter Benjamin, faríamos um exercício de educação patrimonial a partir do olhar do horror e não da sua monumentalidade. Numa concepção benjaminiana de cultura

(...) todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.

Reforçando o que já foi dito, cumpre mais uma vez destacar que os sujeitos que ergueram o patrimônio cultural na história da humanidade não se tratam de “grandes gênios” individualizados, mas a essa “corveia anônima” de trabalhadores, muitas vezes escravizados, que são relegados ao plano do esquecimento seletivo da memória, algo do tipo que o filósofo Paul Ricoeur classifica como memória ideológica.
Ainda fundamentado em Benjamin, convém destacar que muito do que contemplamos do patrimônio pelo olho encantado da beleza e diante do qual paramos para tirar uma fotografia, esconde o suor, a exaustão, o sangue e a morte de muitos que participaram para sua construção. Por isso, não custa repetir que os bens culturais estão manchados de sangue e esse sangue tem cor, tem classe, tem gênero, tem religião, tem cultura, no sentido antropológico.
Feita essa argumentação conceitual, gostaria mais de levantar questões para o debate sobre Itabaiana, do que mesmo trazer respostas prontas e acabadas. Até porque, não tenho pesquisas para embasar empiricamente a teoria que defendo para uma concepção de educação patrimonial a contrapelo.
Já estive aqui outro dia e fizemos uma visita pela cidade conhecendo o que nos foi apresentado como os principais lugares de memória itabaianense a ser tombado pelo IPHAEP como patrimônio cultural. Parece-me que os maiores destaques foram feitos sobre a memória de Sivuca, o coreto da praça central, o lugar da Batalha da Confederação Equador, a casa do Major e a ponte sobre a qual passava o trem. Na oportunidade, foi citada a existência uma parte do cemitério destinada apenas ao sepultamento de trabalhadores, a existência de cabarés e de sindicatos rurais e urbanos. Também falamos bastante sobre os documentos da igreja e dos cartórios e da necessidade da construção de um arquivo público municipal.
Disso tudo, quero destacar que, se realmente se quer fazer uma educação patrimonial democrática, inclusiva, é imprescindível começar pelo exercício do diálogo com a comunidade, envolvendo associações, sindicatos, igrejas e, evidentemente, as escolas. Sobre estas, sugerimos a inclusão da história local no currículo do ensino fundamental das escolas municipais e a produção de um livro didático na linha da memória histórica de Itabaiana.
Contudo, a linha teórica e política dessa educação não deve seguir as pegadas do positivismo, pois não deve se propor ao engrandecimento de políticos, religiosos, militares, fazendeiros, comerciantes, ou grandes vultos da cultura local. Há que se perguntar sobre o patrimônio intangível que pode está por aí, os saberes, crenças e práticas da cultura popular que devem sair do anonimato para as páginas dos riscos e traços mnemônicos. Há que se olhar para o coreto fazendo perguntas a contrapelo: que foram os trabalhadores que de fato o construiu? A quem ele serviu? Que políticos a ele subiram para verbalizar discursos diferentes de projetos políticos efetivos quando chegaram ao poder. Por que não olhar para a casa do major, perguntando sobre quem de fato construiu aquela mansão naquelas alturas? E a senzala que está ao lado, não é um bem cultural manchado de sangue e opressão? E a ponte, tão vislumbrada imediatamente e que prontamente respondemos “foi construída pelos ingleses”? Por que não educamos no sentido de perguntar quantos operários trabalharam mais de 10 horas diárias para levantar essa estrutura de metal sobre o rio? Os proprietários da Great Western cavaram o alicerce, colocaram vigas, carregaram aço nas costas? Por que os operários dessa empresa fizeram várias greves no inicio do século XX? E o trem que por ela passava apitando o progresso, carregava o que? O algodão que era levado para Manchester e Liverpol para alimentar o capitalismo industrial europeu não era catado pelas sofridas mãos de meeiros, moradores, foreiros e sitiantes para alimentar a sanha de coronéis locais? E a feira de mangaio, magistralmente, composta por Sivuca, que patrimônio seria essa feira? Apenas os mangaios? E os mangaieiros? Não são os trabalhadores que dão vida a feira, que a movimenta econômica, politica e culturalmente? Por que não pensar a feira como esse espaço dos de baixo, principalmente hoje quando ela se encontra tão desvalorizada em razão do surgimento das redes de supermercados e shopping centers? E os sindicatos e sindicalistas, tão importantes no processo de luta de classe, porque não constar na memória? E o cemitério dos trabalhadores, por que não rememorar o trabalho e os trabalhadores pelo ângulo da morte, muitas das vezes seu caminho encontrado no terreno da luta de classes? E as prostitutas com seus cabarés?
São essas as questões que considero importante fazermos para um inicio de conversa a contrapelo. Para um exercício de educação patrimonial numa linha diferente da contemplação de meros estilos arquitetônicos ou de uma memória oficial. O engajamento com o passado só tem sentido a partir do engajamento das lutas do presente, no campo material e simbólico.

Palestra proferida durante o I Seminário Educação Patrimonial do Vale do Paraíba, na cidade de Itabaiana, em 16 de novembro de 2017.

domingo, 4 de junho de 2017

O PARQUE... QUE (ERA) DO POVO?

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Quando Ronaldo Cunha Lima e seu grupo inventou uma tradição megalomaníaca para Campina Grande, não obstante, suas vinculações maiores estarem assentadas nas preocupações mercadológicas, na indústria do turismo e na legitimação ideológica do poder oligárquico de sua vasta parentela, o espaço significado por eles como “PARQUE DO POVO”, ao menos não fazia muita distinção social no tocante à recepção e circulação de pessoas sobre a área destinada para se dançar forró no meio da rua.
Como historiador, me sinto na obrigação de analisar a invenção das tradições a partir do diálogo com a ideologia, portanto, trocando algumas ideias e buscando inspirações na obra do grande Eric Hobsbawm no cotejo com seu livro A invenção das Tradições. Embora enfoque no nome a dimensão universal/cosmopolita, o “MAIOR SÃO JOÃO DO MUNDO”, foi inventado como tradição local, definidora de uma campinidade, uma identidade construída por oposição a caruaruanidade, a disputarem no interior do Brasil quem fazia a maior festa do planeta. O certo que o grupo Cunha Lima criou uma festa política, um palco no qual não sobem apenas artistas da sanfona, mas atores do poder. É verdade que nem sempre o teatro político garante a hegemonia, pois às vezes as imagens luminosas são ofuscadas por vaias, como as que Cássio golpista recebera em 2016 da boca de uma multidão no “PARQUE DO POVO” que seu pai criou para sua família apenas triunfar. A criatura se rebelou contra o criador, ao menos por algum momento. É verdade também que nem sempre a continuidade do poder oligárquico por meio do espetáculo é assegurada, se assim o fosse, Ronaldo não teria visto os Vital do Rego roubarem a cena, o palco e a festa por 8 anos. Entretanto, a oligarquia Cunha Lima voltou à prefeitura de Campina Grande e ao palco do “PARQUE DO POVO”, com Romero Rodrigues dando continuidade a festa criada por Ronaldo Cunha Lima.
Acontece que Romero continua e descontinua a festa. Muda para pior. Continua uma festa política e mercadológica em sua essência, para alimentar a indústria do turismo, a rede hoteleira, as empresas de bandas e o monopólio da AMBEV. Isso mesmo: em pleno neoliberalismo, onde as elites econômicas e políticas festejam a liberdade econômica, no “PARQUE DO POVO” impera o monopólio e você é obrigado a tomar apenas cerveja Skol, conforme ouvi ontem à noite da boca de vários donos de barracas. Segundo testemunho deles, esse protecionismo da prefeitura decorre do fato de uma única marca ser a patrocinadora da festa, cerceando, assim, o gosto do consumidor de cerveja que não tem escolha concreta a fazer até na hora de beber uns goles. Manda quem tem dinheiro, portanto, a iniciativa privada.
Para piorar a situação, a geografia simbólica do setor norte do “PARQUE DO POVO”, se transformou na cara da nobreza. Ao centro da vasta área, colocaram um gigante palco que, a meu ver, roubou espaço dos forrozeiros arrastarem o pé e ainda dialoga para frente com a classe dominante que se hospeda, privilegiadamente, em camarotes privados no parque que é público e cuja festa é custeada com recursos públicos. Ao centro, a clássica pirâmide que, ao contrário dos suntuosos túmulos faraônicos egípcios, abriga o “xerém” dos “desclassificados”, aos olhos das elites, que fazem questão de se manterem à distância nos seus enclausurados camarotes. No extremo sul, restam algumas barracas menos sofisticadas e um palco, nitidamente, destinado para o tal “POVO”. E ainda sobraram dos tempos mais antigos, a réplica da catedral e do famoso cabaré Eldorado, pelo menos nesse lado de cá, ainda se pode rezar e trepar, ao menos simbolicamente na imaginação.
Pois bem, se foi embora os tempos de outrora. Sumiram as barracas de palha de coco dos anos 1980, o grande número de ilhas de forro dos anos 1990 e até os tradicionais forrozeiros nordestinos foram trocados por sertanejos e padres que vivem a fazer verdadeiras missas cantadas no suposto laico “PARQUE DO POVO”.
Em nome da lógica do privatismo, temo que até o “PARQUE DO POVO” se parta no meio e a festa “maior do mundo” se transforme em duas, uma para pobres e outras para ricos, em bairros diferentes. Em tempos de fascismos, não é de se espantar em falar de segregacionismo.