José
Luciano de Queiroz Aires (UFCG)
Em
1904, o Rio de Janeiro, então capital da República brasileira foi palco de uma
das grandes revoltas populares do inicio do século XX. O governo federal era
Rodrigues Alves e o prefeito do Rio era Pereira Passos. Ambos estavam afinados
com o projeto de modernização soprado pelos ventos da Paris de Haussmann e
sustentado por três eixos centrais: a reforma urbana, o melhoramento do porto e
o sanitarismo contra as doenças epidêmicas.
Geralmente
se explica a Revolta da Vacina apenas como uma recusa da população em não
aceitar a pistola imunológica comandada pelo médico Oswaldo Cruz sobre o seu
corpo e, menos ainda, de forma obrigatória. Esse tipo de explicação, além de
eivada de certo preconceito- (“povo ignorante” X “razão médica”), ainda é
insuficiente para entender as causas da rebelião popular se não colocar o
problema em um escopo estrutural bem mais amplo.
É
verdade que houve resistência a tomar a vacina em 1904, até porque há que se
considerar que os grupos e classes subalternos tinham razões em desconfiar dos
governos, como também de uma campanha de vacinação na qual os médicos
compareciam às casas das pessoas acompanhados da polícia. Isso mesmo: campanha
de vacinação militarizada, regada muito mais a coação do que a uma campanha de
convencimento da população.
Entretanto,
o povo pobre da capital da República estava resistindo a um amplo projeto de
modernização capitalista autoritário implementado à luz do eurocentrismo
parisiense. Casebres, vielas, cortiços, vieram abaixo para ceder lugar a uma
larga avenida, ruas com novo tipo de calçamento, prédios luxuosos e vitrines.
Uma série de restrições passou a compor o código de postura municipal alterando,
profundamente, os costumes populares e todo um modo de vida por ele orientado
havia séculos. Em nome da ideologia da “civilização” e do “progresso”, agentes
municipais e corpo de guarda reprimiam os populares.
A
nova cara da capital republicana era enfeitada com os signos da modernidade burguesa.
Devia, a partir de então, ser a cidade para o capital financeiro internacional,
uma cidade cosmopolita, em vez de uma velha cidade colonial. O avesso desse “progresso” só podia recair
sobre a classe trabalhadora. A ideia higienista de combate às doenças
epidêmicas incluía também a “limpeza” humana das ruas, expulsando mendigos,
prostitutas, “vagabundos” e pedintes. Além disso, o povo pobre perdeu suas
casas e foi afastado do centro para as periferias, dando inicio ao processo de
favelização.
Esse
projeto autoritário geraria suas contradições e explodiria em algum momento. Na
verdade, antes de 1904, já havia uma tradição de motins populares no Rio de
Janeiro como forma de resistência ao projeto do grande capital por parte dos
“de baixo”. Em 1901, por exemplo, depredaram bondes contra o aumento do preço
das tarifas e as péssimas qualidades nos transportes públicos; em 1902,
combateram o monopólio dos marchantes sobre o comércio da carne verde.
Portanto, como bem assinalou o historiador Nicolau Sevecenko, a Revolta da
Vacina foi uma manifestação popular de resistência ao processo autoritário da
transformação do Rio de janeiro em capital da República burguesa e cosmopolita.
Aquele povo pobre, explorado e oprimido, olhava para a concretização da
modernização burguesa como o símbolo do poder opressivo do Estado burguês. Por
isso, não podemos concordar que as razões da revolta se restringiam apenas a
questão da vacina obrigatória.
O
preço da resistência foi cobrado com dose de repressão. O movimento era heterogêneo
e desdobrado em duas rebeliões imbrincadas: o motim popular e a rebelião
militar. Após o fracasso da tentativa de derrubar o governo do presidente
Rodrigues Alves, este, convocou o Exército e a Marinha para reprimir as
manifestações. Quando 300 alunos da escola Militar da Praia Vermelha marcharam
em direção ao Palácio do Catete para depor o presidente, defrontaram-se com
forças fieis ao governo e a tentativa de golpe fracassou. A partir daí, navios
se encaminharam com deportados em direção ao Acre. A polícia e os bombeiros já
vinham atuando contra as barricadas populares nas ruas cariocas e a cavalaria
já avançava contra o povo pobre que resistia ao projeto de modernização
burguesa. As forças repressivas estavam para garantir a “ordem social” e a propriedade
privada e a ideologia já funcionava procurando inculcar os valores da
modernidade como símbolos da “civilização” e do “progresso”, por oposição o
modo de vida e a cultura popular, tida como representação do “atraso” e da
“incivilizade”.
Estamos
a 117 anos de distância da Revolta da Vacina. O contexto é outro completamente
diferente. Vivemos uma crise global do sistema capitalista em suas várias
dimensões e, por outro lado, o avanço do neofascismo e do neoliberalismo como
saída do capital para enfrentar a crise em curso. Muito antes da Covid-19, o
desemprego, a precarização do mundo do trabalho, a informalidade, o ajuste
fiscal, a retirada de direitos sociais historicamente conquistados pela classe
trabalhadora, já vinham contaminando muitas pessoas com o vírus assassino do capitalismo.
No
caso do Brasil, além da crise e seu ônus mortífero sobre a classe trabalhadora,
tivemos que entrar o ano de 2019 com um governo que flerta com a ideologia
neofascista e que alimenta e é alimentado por um movimento de sustentação na
sociedade que chamamos de bolsonarismo. Para piorar a situação, o ano de 2020
nos trouxe a Covid-19 que, por baixo, já deve ter matado cerca de quase
trezentas mil pessoas.
Nessa
conjuntura, o governo brasileiro preferiu o negacionismo. Chamou de
“gripezinha”, falou que “não era coveiro”, perguntou “e daí?”, aglomerou,
trocou três vezes de ministro para colocar um fantoche militar, brigou com a
OMS e os com os epidemiologistas, receitou cloroquina, politizou a vacina e
orientou a sua não obrigatoriedade. Ficou claro, para o governo, que a economia
capitalista não podia parar e, assim, defendeu o lucro acima da vida. Para os
pobres, o governo reservou um mísero valor de auxílio emergencial de trezentos
reais, indo a seiscentos após muita pressão dos partidos de esquerda no
Congresso Nacional. Mesmo assim, ao apagar das luzes de 2020, com a pandemia em
alta, o governo preferiu cortar o auxílio e jogar a maioria da população ao
Deus dará.
E
chegamos ao ano novo com o mundo todo começando a vacinar as pessoas e o Brasil
sem política nacional de vacinação. Foi preciso judicializar o caso no Supremo
Tribunal Federal para que o Ministério da Saúde o apresentasse, mesmo assim,
sendo entregue sem data para o inicio da vacinação. Depois de muita pressão,
agora o governo aparece em rede nacional para afirmar que a vacinação ocorreria
no “dia D e na hora H”.
Por
meio da pesquisa, da ciência e da universidade pública, temos vacinas
desenvolvidas em tempo recorde. Graças aos servidores públicos que muitos o
tomam como “parasita”, temos vacina. Graças aos investimentos em instituições
como o Instituto Butantã e a Fiocruz, temos vacina. O que falta é um governo
que coordene uma política de distribuição dessas vacinas e priorize a vida das
pessoas. Um governo que não negue a ciência e que valorize os serviços públicos
a exemplo do SUS.
Ao
que tudo indica, no Brasil será preciso uma nova Revolta da Vacina, desta feita
contra o governo, mas em defesa da sua obrigatoriedade.