sábado, 7 de maio de 2016

AREIA: POR UMA MEMÓRIA E PATRIMÔNIO A CONTRAPELO



Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Areia. Cidade patrimônio histórico nacional tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no ano de 2006. Terra do romancista e político, José Américo de Almeida e dos pintores Aurélio de Figueiredo e de seu irmão, Pedro Américo. Cidade rota turística dos “Caminhos do Frio”, da Cachaça Triunfo, do famoso Teatro Minerva (1859) e da, igualmente, famosa, Escola de Agronomia (1936).
São esses os mais expressivos símbolos da identidade local areiense, pois são eles os referenciais simbólicos que a identifica para muitos. Porém, conforme nos mostra Stuart Hall, as identidades são construções históricas, múltiplas, móveis e contraditórias. Em sendo assim, as identidades locais também são inventadas no tempo e pela ação, seletiva, dos homens e mulheres. Nesse processo histórico, as identidades são modeladas a partir do que o historiador Eric Hobsbawm denomina de tradição inventada, um conceito que permite a desnaturalização e a concepção a-histórica do conceito de tradição.
Amparado nessa fundamentação teórica, podemos dizer que a memória e o patrimônio selecionados para serem lembrados como parte da tradição e da identidade local da cidade de Areia, é bastante seletivo, porque feito pelas e para as elites dirigentes canavieiras que, juntamente ao controle do poder político e econômico também não abrem mão do poder simbólico dos lugares de memórias de feição oficialesca.
Por outro lado, se há uma memória oficial das classes dominantes, realçada na pedra e cal do tombamento do IPHAN, outras narrativas e tantos outros narradores foram jogados para o mundo subterrâneo da memória, para os porões do silêncio e do esquecimento dos quais nos fala o filósofo Paul Ricoeur. Como encontrar outros símbolos para rememorar o município de Areia? Procurando, não no tombamento do IPHAN, mas no tombamento da vida para a morte, nos excluídos da História e nos esquecidos nas covas anônimas e na poeira escaldante dos cemitérios. Quantos índios e negros escravizados foram utilizados para construir esse patrimônio elitista, cristocêntico, branco e europeizante? Quantos trabalhadores e trabalhadoras de engenhos e usinas suaram o corpo e arderam nas chagas do chicote e do tronco para fazer com lágrimas salgadas as doçuras que saem da cana de açúcar para os bolsos dos senhores e usineiros? Quantos braços não foram engolidos pela prensa que também devora energia de gente na mesma proporção com que faz moer a cana? Quem construiu o Teatro, a Igreja, o casario colonial, a casa grande? Certamente, não foram as elites agrárias, mas a “corveia anônima de oprimidos” da qual nos fala Walter Benjamin.
O conceito de História e de cultura em Benjamim nos ensina a escovar o tempo a contrapelo, indo no sentido contrário a temporalidade linear do “progresso” e buscando nos escombros do passado as vítimas e seus projetos impedidos e derrotados. A cultura é definida por ele a partir do horror e não da monumentalidade, pois “nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie”. (BENJAMIN, 1994, p. 225). Os bens culturais sobre os quais posamos para tirar fotografia ou que são vendidos pela indústria do turismo geralmente estão manchados de sangue e de suor, pois foram erguidos pelo braço indígena ou do africano escravizado que, além de plantarem, cortarem e moerem cana, também ergueram igrejas, sobrados, teatros, engenhos, e que sequer são lembrados por esse trabalho, como se fossem desprovidos de saber.
Areia é parte do Nordeste açucareiro escravocrata dos tempos da colônia e do Império. Areia também se insere no processo de modernização da economia açucareira a partir da implantação de usinas na primeira metade do século XX. Usinas das gigantes chaminés, do saber técnico-científico, das esteiras para puxar a cana, das moendas novas e dos mecânicos, das modernas balanças e da relação com sistema de crédito, são as mesmas usinas da fome de terra, do retirante, do pagamento em vale e do barracão, do fim do roçado e da poluição do rio. O “progresso” tem um outro lado que expressa a exploração, a desigualdade social e a concentração de renda. O “progresso” tem uma conotação de classe social e se confunde com o avanço do Capitalismo cujo modo de produção objetiva o lucro a qualquer custo, sobretudo, retirando da força de trabalho a acumulação do capital. E no caso da modernização da economia açucareira do inicio do século XX, cabe ainda ressaltar que ela sequer fora acompanhada das modernas relações sociais de produção, pois não foi a mão de obra assalariada que se configurou, mas o pagamento em vales a serem trocados no barracão, o cambão, o arrendamento, o foro, relações sociais questionadas nos anos 1950 pelas Ligas Camponesas.
As usinas engoliram engenhos, terra e gente. E muitos trabalhadores e trabalhadoras do passado foram triturados por elas, moídos como cana, sem poder fazer muita coisa. Nós do presente, podemos pagar essa dívida ética com as gerações que nos antecederam no tempo acertando as contas com o atual agronegócio, pois como nos ensina Benjamin, apenas a geração atual pode redimir os sonhos e projetos derrotados do passado no presente-futuro.