sexta-feira, 18 de abril de 2014

MEMÓRIAS TRAUMÁTICAS: A ANPUH-PB E A COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE E DA PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA

Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG-ANPUH-PB)

A dialética do lembrar e esquecer tem uma dimensão política que envolve o campo da memória e da história. E como toda atividade humana, está sujeita a manipulações, usos, abusos, esquecimentos e silêncios. Assim, inserida no campo das batalhas, a memória se movimenta num campo de disputas políticas marcadas a partir das leituras e escavações que as gerações do presente realizam sobre o passado.
Daí por que, um filósofo engajado como Walter Benjamin, ao escrever as famosas Teses sobre o conceito de História, em 1939, aludia a dimensão do passado a ser lembrado como condição de “redenção” das gerações oprimidas. Para ele, era preciso retirar o passado da condição de neutralidade, ao qual fora alçado pela historiografia oficial, a fim de mostrar as relações de dominação de classe e de impedimentos e derrotas dos projetos dos trabalhadores nele realizados. Afinal de contas, a concepção de cultura e de História benjaminiana, perpassa pelo ângulo dos sinais de dominação, da barbárie que se esconde sob a beleza estética dos monumentos e das gotas de sangue que mancham os bens culturais. Escovando ao contrário, podemos/devemos explicitar os fracassos e as irrealizações dos projetos e das lutas dos excluídos da História, entender o processo dessas dominações e resistências na espessura do tempo passado.
Interessante notar a relação estabelecida entre os vivos e os mortos. Na Tese 2 Benjamin pergunta a respeito do “encontro secreto” entre as gerações precedentes e o presente, sinaliza quanto às ligações entre as vozes que escutamos no agora e os ecos das vozes que emudeceram, e alerta ao historiador materialista histórico ser um messiânico a redimir os apelos do passado. De um passado que foi prometido e não foi cumprido. Mas esse passado grita e o historiador precisa escutá-lo em seus horrores e não na sua monumentalidade. É dever do historiador, articular o passado não como de fato ocorreu, mas se apropriar dele como uma reminiscência a relampejar no momento de um perigo, buscar nele centelhas de esperanças, pois nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. Aqueles que dominam no presente são herdeiros dos vencedores do passado ao passo que os oprimidos no presente herdaram a exploração e lutas dos excluídos do passado. (BENJAMIN, 1994, p. 224/225) Desse modo, a redenção/revolução encontra-se indissociável do trabalho de rememoração, de uma memória ferida e derrotada em oposição à memória oficial do vencedor, de uma reparação das injustiças aos oprimidos e da consequente punição moral aos responsáveis por elas. Os vivos do presente têm uma dívida para com os vivos do passado.
A redenção do passado oprimido, sua realização e reparação no presente dos projetos não realizados no passado, devem ocorrer em ligação com a rememoração histórica das vítimas desse passado (TESE 2). Nesse aspecto, segundo observa Michael Löwy, cabe ao anão teológico a tarefa da rememoração, num movimento dialético para o passado (memória) e para o presente (redenção/revolução). Nesse particular, pode-se perguntar a respeito da especificidade do marxismo benjaminiano. Ao ler História e consciência de classe (1924), obra de Georges Lukács, o aspecto que mais despertou atenção de Benjamin foi a ênfase na luta de classes, pois rememorar a luta entre exploradores e explorados interessava mais a ele do que estudar as forças produtivas, contradições sociais, formas de propriedades, modos de produção e Estado. Embora concorde com Brecht sobre a importância das coisas materiais, ele atribui grande importância aos aspectos espirituais e morais, uma vez que são esses que impulsionarão a luta por aquelas. O materialismo histórico benjaminiano foge a abstrações filosóficas evolucionistas e se volta para a luta concreta, para a dialética dos tempos.
A propósito dessa discussão, faz-se bastante relevante explicitar mais detalhadamente o conceito de revolução em Walter Benjamin. Benjamin entendia a revolução como um momento de ruptura no curso da história afastando a catástrofe que ameaça a humanidade. (SCHLESNER, 2011, p. 42). A revolução é o correspondente profano da redenção dos oprimidos, o dia do acerto de contas com as vítimas dos passados, um processo de liberação das aspirações libertárias das classes exploradas no cortejo triunfal da história. Esse dia, em que a revolução introduz um novo calendário (TESE XV) é, ao mesmo tempo, ruptura e tradição, pois como nos mostra Michael Löwy, se trata do dia do encontro do novo com todos os momentos de revoltas do passado.
Mais de setenta anos se passaram da escrita das teses benjaminianas, mas em grande medida elas são bastante importantes para os historiadores do Século XXI. Em um tempo marcado pelo conformismo e pela hegemonia do discurso da inevitabilidade do neoliberalismo e da sociedade de consumo, escrever e agir no contrapelo significa romper com o conservadorismo da teoria do fim da História. Como Benjamin alertava para o perigo do fascismo, com ele podemos alertar sobre o perigo do capitalismo neoliberal, pois a propaganda do progresso esconde as desigualdades que imperam no mundo contemporâneo. Dessa maneira, o historiador filiado ao materialismo histórico deve continuar se colocando do lado dos marginalizados, não apenas da questão de classe social, mas de gênero, sexualidade, geracional, étnica, pois como afirma Michael Löwy (2011, p. 153), “sua crítica geral à opressão e seu apelo para que se conceba a história do ponto de vista das vítimas- de todas as vítimas- dão ao seu projeto um alcance mais universal”.
Mais recentemente, outro filósofo, Paul Ricoeur, também se ocuparia de escrever uma obra emblemática sobre a memória, a história e o esquecimento, ressaltando a dimensão política e ética do ato de lembrar-esquecer. Diferentemente de Benjamin, que escreveu no tempo dos fascismos, a escrita de Ricoeur estava marcada pelo apartheid sul-africano e pela experiência da Comissão Verdade e Reconciliação. O filósofo francês retoma a noção de dívida transgeracional abordada nas teses do alemão. E, na esteira de Freud, defende o trabalho de memória em detrimento do dever de memória. 
Essas reflexões filosóficas são importantes para pensarmos no trabalho que a ANPUH-PB vem fazendo com a memória dos vencidos de 1964. Instituída pelo Decreto governamental nº 33.426, de 31 de outubro de 2012, a Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba conta com dois historiadores representando a seção paraibana da Associação Nacional de Professores de História. Tão logo o governador Ricardo Coutinho assinou e publicou o decreto, a diretoria da associação entrou em contato com o chefe de gabinete do governo, Waldir Porfírio, demonstrando interesse em nossa participação na Comissão. Desse modo, nos foi sugerido que apresentássemos uma lista compondo três nomes, dos quais um deles seria nomeado. Ao consultar os associados, foram sugeridos alguns nomes de historiadores que vem estudando o período do Regime Militar, de modo que enviamos três nomes dos quais o governo nomeou dois deles: a professora Lúcia Guerra e o professor Paulo Giovani Antonino, ambos do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. Pelo Ato Governamental 6.018, de 11 de março de 2013, foram nomeados os sete membros da Comissão, cuja presidência coube ao anpuhano Paulo Giovani Antonino.

A Comissão dividiu as atividades em dez grupos de trabalhos:
1-      Mortos e desaparecidos políticos do regime militar

2-      Mapa da Tortura

3-      A bomba estourada no Cine-Teatro Apolo II

4-      Cassação de mandatos eletivos e a magistrados

5-      Demissão de servidores públicos federais, estaduais e municipais.

6-      Ditadura e Gênero

7-      Estrutura de repressão na Paraíba

8-      Intervenção nos sindicatos e em outras entidades da sociedade civil

9-      Perseguição dos órgãos de segurança ao setor educacional

10-  Repressão do Estado e de milícias privadas aos camponeses


Cabe, no entanto, ressaltar o papel desenvolvido pela ANPUH-PB nesse importante trabalho de resgate de memórias junto a Comissão da Verdade e Preservação da Memória. Sobretudo para os mais céticos em relação à nossa Associação e que chegam a questionar até sua utilidade. A história da ANPUH-PB é uma história de lutas políticas advindas dos tempos da ditadura. Não apenas porque somos uma das mais ativas sessões no tocante à realização de encontros estaduais, mas, sobretudo, pelas ações realizadas em prol da valorização do profissional de História e dos posicionamentos críticos diante das questões mais amplas que abrange a sociedade.
Assim sendo, uma associação de profissionais de História que viveu os tempos da ditadura civil-militar, não poderia faltar a esse momento importante do revirar do baú nos quais se escondem rastros de uma memória ferida, dolorida, traumática. Os dois anpuhanos que representam a ANPUH-PB na Comissão Estadual da Verdade e Preservação da Memória não apenas estão prestando relevantes serviços à comunidade de historiadores, levantando documentação que poderá render inúmeras pesquisas acadêmicas, mas, também, prestando serviços de larga envergadura à sociedade paraibana de modo geral, tentando pagar uma dívida, muitas vezes, mesmo que simbólica (mas nem por isso menos importante), as gerações que sofreram na pele o peso da tortura e do aparato militar montado para a repressão.
Sem desmerecer em nenhum momento os demais membros da Comissão, a ANPUH-PB, desde o primeiro momento do ato governamental de instauração da mesma defendeu que nela tivesse a participação de historiadores, profissionais formados para narrar sobre as temporalidades históricas. Até porque soaria estranho mexer na memória social sem um trabalho historiográfico eivado pela crítica inerente à operação historiográfica. De modo que a ANPUH luta justamente pelo reconhecimento da profissão de historiador para que sejam incluídos em um campo alargado de trabalho (museus, arquivos, centro de memória e documentação, consultoria) a participação de um profissional que tem formação compatível com as demandas da construção narrativa da experiência humana no tempo, embora não sejam os únicos a terem direito sobre os passados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e História. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987.
_______ Walter Benjamin ou a História aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
_______ Seis teses sobre as teses. Revista Cult. http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/seis-teses-sobre-as-teses/. Acesso: 13 dez. 2012.
LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SCHLESENER, Anita Helena. Os tempos da História: leituras de Walter Benjamin. Brasília: Liber Livro, 2011.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009

OLHANDO SALVADOR A CONTRAPELO

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG-ANPUH-PB)

 “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (Walter Benjamin)

 Depois que li Walter Benjamin, aprendi a olhar o patrimônio cultural de modo completamente diferente. Ruiu aquele edifício conceitual prévio que associava patrimônio a apenas símbolos antigos, tangíveis e pertencentes às elites, sobre os quais paramos para sermos fotografados, dada a concepção de beleza estética sobre eles imaginados. Olhamos as igrejas barrocas e os sobrados coloniais e, imediatamente, eis que surge a pergunta: “como os portugueses conseguiram construir tudo isso naquela época?”. O filósofo alemão, certamente, reorientaria o questionamento. Para Benjamin, a origem dos bens culturais não pode ser refletida sem o olhar do horror, pois suas criações “devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos”. (BENJAMIN, 1994, p. 225)
 Fundamentado teórico e politicamente nessa concepção de cultura e de História a contrapelo, é que direciono meu olhar para a primeira capital do Brasil. E acompanhado por Benjamin como guia turístico dos melhores e mais críticos, percorro uma cidade construída sobre o sangue de nativos e africanos escravizados. Foram eles os sujeitos que pegaram pedra e cal para erguerem igrejas, praças, palácios e conventos que abrigavam uma elite colonial ávida por almas e açúcares. O Pelourinho, hoje tombado patrimônio da humanidade e cartão postal da cidade, tinha significação de sofrimento no Brasil Colonial. Eram colunas erguidas, inicialmente no Terreiro de Jesus e nas atuais Praças Castro Alves e Tomé de Sousa, sobre as quais os negros escravizados eram castigados publicamente e que, aos poucos, foi denominando todo o complexo do centro histórico de Salvador. A própria geografia simbólica da cidade também foi excludente, no alto, foram erguidas sedes administrativas, instituições religiosas e residências das elites; na cidade baixa, o porto e o comércio, ambas ligadas pelo atual Elevador Lacerda, herdeiro simbólico das desigualdades geográfica, social e étnico-racial. Os espaços públicos de Salvador, Praça Municipal, Terreiro de Jesus, Caminho de São Francisco, Largo do Pelourinho, Largo de Santo Antônio e Largo do Boqueirão, entre os quais se localizam a Igreja dos Jesuítas, hoje Catedral de Salvador; a Igreja e Convento de São Francisco, a Igreja do Carmo, a Igreja e Convento de Santa Teresa, a Igreja e Mosteiro de São Bento, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco e o Palácio do Governador, foram construídos no século XVII a partir da riqueza gerada pela lavoura açucareira, o verdadeiro inferno dos negros escravizados. Tanta cana doce trabalhada envolta pelo suor amargo do escravo. Tanta igreja para “salvar almas brancas” e “condenar almas negas”, igrejas tão belas na plasticidade, mas tão sujas na história, pois em nome da universalização religiosa ocidental judaico-cristã, fora acionado o catecismo para convencer e a inquisição para punir. Entretanto, vale dizer que nativos e negros escravizados jamais se curvaram à dominação enquanto durou por mais de três séculos a escravidão no Brasil. Na Praça da Piedade, centro histórico de Salvador, em 1799, foram enforcados e esquartejados os líderes da Conjuração Baiana, movimento popular inspirado pelo Iluminismo e que defendia uma independência com República, liberdade de expressão e abolição da escravatura. Delatado por um dos participantes, a praça se transformara em palco de espetacularização política de uma tragédia exemplar, a demonstração pública de autoridade e poder expondo cabeças despedaçadas e corpos estilhaçados como forma de educar pelo medo e constituinte de uma teia de significados que mandava recado: “pode acontecer isso com qualquer um de vocês que se rebelarem contra a coroa”. Sangue continuou escorrendo sobre as ruas estreitas da Salvador antiga. 
A Independência de 1822, feita a partir de cima, manteve os privilégios das elites agrárias, o latifúndio e a escravidão. Pela Constituição de 1824, Estado e Igreja Católica eram irmãs gêmeas na continuidade da perseguição aos terreiros de Candomblé na Bahia do século XIX. O sincretismo religioso colonial não aboliu a intolerância e o preconceito contra as religiosidades afro-ameríndias, muito pelo contrário, acentuou a continuidade da desqualificação das mesmas a partir da visão estereotipada da “demonização”, do “pecado”, do “mal”, em detrimento do catolicismo, auto-afirmando-se como a “verdadeira” religião da salvação. Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, os escravos malês (muçulmanos) insurgiram-se contra a ordem vigente e foram às ruas de Salvador defender a sua liberdade. A revolta envolveu 600 homens e foi delatada antes mesmo do seu inicio. Com a patrulha já em ação para conter a rebelião, os malês invadiram a Câmara Municipal sem muito sucesso nas investidas. No centro da cidade, segundo o historiador João José dos Reis, (...) atacaram um posto policial ao lado do Mosteiro de São Bento, outro na atual Rua Joana Angélica (imediações do Colégio Central), lutaram também no Terreiro de Jesus e outras partes da cidade. Em seguida desceram o Pelourinho,seguiram pela Ladeira do Taboão e foram dar na Cidade Baixa. Daqui tentaram seguir na direção do Cabrito, onde tinham marcado encontro com escravos de engenho. Mas foram barrados no quartel da cavalaria em Água de Meninos. Neste local se deu a última batalha do levante, sendo os malês massacrados. Alguns que tentaram fugir a nado terminaram se afogando. O saldo da revolta não foi dom melhores para os escravos africanos muçulmanos. Os envolvidos foram sentenciados com prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Do total, quatro escravos foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora no dia 14 de maio de 1835. E assim terminava mais um capítulo sangrento da História do Brasil. Rememorar essas gerações oprimidas no passado é condição importante para uma atuação política no presente-futuro, na qual a História como memória social deve está a serviço da construção do que Paul Ricoeur denomina de “memória feliz” ou “justa memória”, o de fazer justiça pela lembrança do Outro cuja memória fora alçada ao esquecimento e silêncio.