segunda-feira, 4 de julho de 2011

O MARXISMO E A CULTURA: ENTRE OS FRANKFURTIANOS E OS ESTUDOS CULTURAIS



José Luciano de Queiroz Aires

O marxismo tem sido justo e injustamente atacado nos rols da academia.  No primeiro caso, se a crítica for direcionada ao que Eric Hobsbawm chama de “marxismo vulgar”. Nesse caso, acho pertinente defini-lo como ideologia ou “prática-teórica” stalinista, portanto, problemática para fundamentar teórico-metodologicamente o ofício do historiador do século XXI. Não obstante, tem que ser lido, sobretudo, para que possamos entendê-lo em seu tempo histórico e a ele fazermos a crítica. No segundo caso em tela, acho que a injustiça acadêmica cometida contra o marxismo advém daqueles que o simplifica, que o generaliza e, desse modo, contrariando a diversidade, silencia as suas várias matrizes interpretativas.  
Posto isso, gostaria de enunciar o objetivo dessa comunicação. O que pretendo é demonstrar como o marxismo se renovou no século XX, rompendo com o economicismo e passando a dar ênfase a questão da cultura.  A Escola de Frankfurt e os Estudos Culturais são os recortes utilizados para enfrentar esse diálogo, buscando as aproximações e descontinuidades efetuadas por ambos nas análises sobre a “cultura da mídia”.
Nomes como Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas e Marcuse, protagonizam os estudos sobre fotografia, cinema, rádio, música moderna, no contexto da primeira metade do século XX.  De ascendência judaica e simpatizantes das idéias de Marx, a vida desses grandes intelectuais não seria nada fácil em meio a  uma Alemanha Nazista.  Do lado oriental, a nação que se julgava socialista não passava de uma ditadura do partido Comunista Soviético, com a qual eles não concordavam, assim como Antonio Gramsci na Itália fascista. Restou aos frankfurtianos o exílio para os Estados Unidos, fincando os pés na pátria que se julga o maior exemplo de democracia e liberdade do mundo. Benjamin, ficou pelo caminho, se suicidou ao tentar entrar na Espanha franquista.
Enfim, aos olhos desses pensadores de esquerda, cai a máscara da democracia estadunidense. Em 1947, Adorno e Horkheimer formulam o conceito de indústria cultural para demonstrar que o Capitalismo transformou o entretenimento e o lazer em mercadorias. Em uma sociedade rodeada pelo rádio e a indústria fonográfica, pelo cinema, pela fotografia, enfim, pela “obra de arte permeada pela reprodutibilidade técnica”, os dois autores percebem que os donos do capital se beneficiavam duplamente dessa transformação da cultura em mercadoria: em primeiro lugar, por preencher o tempo do ócio das classes trabalhadoras, mantendo-as “alienadas”, “conformadas”, “manipuladas”, em meio ao estado do bem estar; em segundo lugar, pelos dividendos que passaram a faturar em função da imposição de um modelo de sociedade consumista consignado no american way of life.
Benjamim, em verdade, era mais otimista, um idealista, conforme observou Regina Behar.  A perda da aura, para ele, não tinha um sentido negativo. O cinema massificado, por exemplo, podia ser utilizado de forma contra-revolucionária, abrindo possibilidades de uso para o proletariado questionar o sistema.  A dupla Adorno e Horkheimer era mais pessimista. Pessimismo esse, produzido em um contexto de autoritarismos, do Estado de Bem Estar e da indústria cultural, no qual o proletariado que Marx pensou como agente da revolução, ou estava apoiando os fascismos ou conformados com a sociedade de consumo, esquecendo a lição de que “a luta de classe é o motor da história”. Marcuse, desencantado com o proletariado, apostou na juventude, participando ativamente dos movimentos contra culturais de 1968.
Em síntese podemos apontar algumas características desse marxismo alemão: a) romperam com a ideologia soviética stalinista; b) não eram militantes filiados ao Partido Comunista; c) romperam com a visão economicista e passaram a analisar os efeitos sociais da cultura; d) questionaram a razão instrumental. Esse último ponto merece uma reflexão maior.
Eu diria que os frankfurtianos se anteciparam aos pós modernos na crítica ao paradigma da modernidade.  Eles questionaram os iluministas e a certeza de que a razão e a ciência levariam a humanidade no caminho da civilização e do progresso. Afinal, foram homens que viram e sentiram na pele o cenário do inicio do século XX, tempos de catástrofes mundiais, intolerância e ódio e carnificina humana. A ciência e a técnica modernas foram aliadas de dominação do homem pelo homem e não elementos de emancipação humana conforme apregoavam as filosofias da história.
Outro campo de renovação do marxismo, em relação ao aporte leninista-stalinista pode ser observado no início dos anos 1960 com a fundação do Centro de Estudos Culturais de Birminghan. Nesse texto, vou tratar apenas dos chamados “pais fundadores”: Richard Hoggart, Raymond Williams, Stuart Hall e E. P. Thompson, a fim de compreender a dimensão da cultura na interpretação materialista da sociedade.
Tomaz Tadeu da silva nos adverte de que os Estudos Culturais não formam uma homogeneidade.  Do ponto de vista teórico, além do marxismo que, aliás, é a marca dos trabalhos fundadores, dos anos 1980 para cá tem incorporados trabalhos na perspectiva foucaultianas; do ponto de vista temático, estudam desde as “subculturas” (Stuart Hall, por exemplo), até alfabetização de massa, meios de comunicação, etc; e, do ponto de vista metodológico, tanto ocorre o método etnográfico como a hermenêutica textualista.
O surgimento dos Estudos Culturais, na virada dos anos 1950 para 1960 está indissociavelmente ligado a romper com uma concepção de cultura da crítica literária inglesa. Raymond Williams, ao fazer a historicidade do conceito propõe sua democratização. Discorda dos críticos literários, para os quais cultura significava as “grandes” obras de artes dos “gênios” da literatura, da filosofia e da arte de um modo geral. Para Williams, cultura também significa a experiência global da sociedade.
Assim recortei temporalmente nos anos 1960, acho interessante fazer mais um recorte para essa comunicação. Procuro analisar como os Estudos Culturais encaram a questão da mídia e em que medida se aproximam e se particularizam em relação à Escola de Frankfurt. Mesmo com todos esses recortes, tenho plena consciência de que estou apenas fazendo uma breve leitura da temática. O espaço, inclusive, não permite grandes aprofundações.
Os “pais fundadores” vão buscar Gramsci para ressignificar a análise frankfurtiana.  Aliás, vão utilizar os seus conceitos de hegemonia, contra-hegemonia, intelectuais orgânicos e resistência para a reflexão da cultura da mídia. Sendo, desse modo, trarão avanços em relação à escola alemã.
Segundo assinala o filósofo Douglas Kellner, os Estudos Culturais irão “corrigir as limitações” da Escola de Frankfurt. Em primeiro lugar, não irão dispensar um tratamento mais empírico para as suas análises teóricas, assim como darão ênfase aos estudos focados na recepção, algo não característico da obra dos filósofos germânicos. Em segundo lugar, os Estudos Culturais ao tratar o conceito de cultura como campos de luta para atribuição de significados sociais discordam da idéia de “massa manipulada” ou de “consumidores passivos”, tão cara ao pensamento frankfurtiano. Contudo, os estudiosos ingleses de Birmingham não jogaram a água do banho com o bebê junto. Eles reconheciam a grande contribuição e vigor do sempre problemático, mas não inteiramente descartável conceito de indústria cultural.
Uma linha dos Estudos Culturais, fortemente marcada pelas teorias críticas, jamais abandona a interface que a discussão sobre cultura permite fazer com o poder político e o econômico. Douglas kellner exemplifica isso quando afirma que ultimamente os estudos têm centrado mais atenção numa perspectiva da recepção sempre ativa dos consumidores do que na produção cultural na perspectiva da economia política. Para esse filósofo, temos que ter cuidado para não fazer fetichismo nas resistências, assim como, não devemos abandonar o campo que trabalha os aspectos ideologizantes dos textos culturais, entendendo ideologia não na perspectiva de falseamento da realidade, mas de conjunto de idéias construídas pelas elites detentoras de hegemonias, porém, nem por isso ilesas de contra-hegemonia.
Certamente Adorno e Horkheimer não estavam completamente errados. O que não faltam são exemplos para provar sua sustentabilidade conceitual, embora em parte, diga-se de passagem. Dificilmente alguém ousaria dizer que o cinema hollywoodiano e o “maravilhoso mundo da Disney”, para lembrar Henry Giroux, estariam descolados do capitalismo estadunidense. O faturamento anual dessa última gira em torno de vinte e três milhões de dólares.  Em 2004, segundo dados da Revista Veja, o faturamento anual de Hollywood era algo estimado em trinta e cinco bilhões de dólares, no qual entre sete e onze bilhões vêm da indústria pornográfica. Por falar nela, é bom que se diga que em 2006 o lucro com o mercado pornográfico superou o faturamento de oito multinacionais de grande destaque no mundo da informática: Microsoft, Google, Amazon, Ebay, Yahoo, Apple, Netflix e Earthlink. O Big Brother Brasil (2009) rendeu aos cofres da poderosa rede Globo de Televisão  US$ 280 milhões, cem milhões a mais do que a edição de 2008. O lucro do BBB-2009 equivale a todo faturamento anual da Rede TV! Por outro lado, programas religiosos da Rede Record também geram fortunas que parecem cair dos céus com a mercantilização de Deus.
São apenas alguns poucos exemplos que podemos apontar para sugerir que o debate sobre indústria cultural não está completamente ultrapassado. Além dos aspectos concernentes ao consumo e ao lucro, parece sustentável, repito, feitas as devidas ressalvas, a tese da ideologia que circula em torno da cultura da mídia. Henry Giroux mostra isso quando estuda a “disneyzação da cultura infantil”, sinalizando quanto ao estilo de vida estadunidense presente nos produtos culturais, sugerindo, assim, um padrão de cultura ocidentalizante a ser consumido em detrimento das alteridades diversas. Para não ficar falando apenas dos países capitalistas, caberiam algumas perguntas: As histórias em quadrinhos editadas pelo Vaticano não estão carregadas pela ideologia cristã? A URSS stalinista não fez uso da cultura de modo a legitimar a ideologia socialista? Em Cuba e na China, os usos e a manipulação da imagem não fizeram parte da ideologia revolucionaria da esquerda dos anos 1960? O cinema Novo no Brasil pode ser pensado descolado da ideologia marxista revolucionaria?
Douglas Kellner está convencido de que não. Eu também. Para ele, é impensável, a partir dos Estudos Culturais clássicos, trabalhar com os aspectos culturais descontextualizados dos aspectos econômicos, sociais e políticos mais amplos. Certamente, é a análise materialista da cultura, formulada por Raymond Williams que fundamenta esse ponto de vista.  O engajamento político é visível, o desengajamento, para Kellner, é um perigo.

REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Por uma leitura “safada” de Thompson. In: História: a arte de inventar o passado.

ARANHA, Gervácio Batista. A História Renovada: a emergência dos novos paradigmas. Revista Saeculum, UFPB, 1998/99.

BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura história da cultura. (Obras Escolhidas. Vol. I). São Paulo, Brasiliense, 1994.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlso Felipe Moisés, Ana Maria Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BURKE, Peter.Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004.

_______ & BRIGGS, Asa. Uma História Social da Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

GIROUX, Henry A. ‘‘Memória e Pedagogia no Maravilhoso Mundo da Disney’’.
In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução
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KELNNER, Douglas. A cultura da mídia. Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: EDUSC, 2001.

MATTELART, Armand e NEVEU, Eric. Introdução aos Estudos Culturais. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias de Currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
THOMPSON, Edward. A miséria da teoria: um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

__________ A Formação da Classe Operária. 4 ed. V.1. Tradução Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
__________ As peculiaridades dos Ingleses. 3 ed. Textos didáticos. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998.



SALA DE AULA NÃO É IGREJA, “BIRÔ” DE PROFESSOR NÃO É ALTAR




José Luciano de Queiroz Aires[1]

Aprendemos com o antropólogo Clifford Geertz[2] a prestar mais atenção à hermenêutica das práticas culturais e às simbologias constituintes. Isso não quer dizer que vou procurar interpretar brigas de galos, nem massacres de gatos. Os atores desse teatro são outros. Mas também brigam entre si, em rinhas diferentes, evidentemente. O palco são as escolas públicas estaduais de Campina Grande, lugares de encenação menos violenta, pelo menos fisicamente, de que a matança de gatos estudada por Robert Darnton[3], mas nem por isso deixam de evidenciar uma violência simbólica, nos termos do sociólogo francês Pierre Bourdieu[4].
Os símbolos aqui interpretados são as iconografias de santos e santas católicas, a Bíblia sagrada e rituais de religiosidades praticados em escolas públicas ou em igrejas, com a presença de gestores, professores e alunos. Que significados se inscrevem nessa simbologia e quais suas relações com as escolas? Esse texto, porém, não tem a pretensão de aprofundar nas respostas, se propõe, muito mais a levantar questões. Não esperem uma narrativa historiográfica produto de uma operação densa, com recortes específicos e dimensão empírica sofisticada. Essas linhas são recortes de memórias das observações em campo de estágio supervisionado, acompanhando graduandos em História da UEPB em algumas escolas estaduais de Campina Grande. Comecemos teoricamente.
Segundo o historiador Jacques Le Goff (1992, p. 444): “O Judaísmo e o Cristianismo são religiões da recordação de modo que o livro sagrado e a tradição histórica insistem na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental”. Ele assinala que o ato de rememorar não pode ser entendido senão como uma prática de cunho também pedagógico. No Antigo Testamento, o Deuteronômio apela para o dever da recordação, no que, segundo Le Goff, coloca os judeus como “o povo da memória por excelência.” No Novo Testamento, a redenção será pela lembrança de Jesus. No cotidiano, as pessoas são chamadas a viver na memória das palavras de Jesus. Aí reside o sentido pedagógico mnemônico, lembrar o passado e tomá-lo como exemplo de vida a ser seguido. O ensino cristão apresenta-se como a memória de Jesus, transmitida pelos apóstolos, seus sucessores. Assim, de acordo com Le Goff (1992, p. 445): “O ensino Cristão é memória, o culto cristão é comemoração”.
Recordar Moisés, Jesus, Pedro, Paulo, Maria e tantos outros, é parte da retórica do ensino religioso. Recordar para não esquecer os valores da moral e dos “bons costumes” a serem posta em prática no cotidiano de cada um. Tais valores estão vinculados aos santos e santas e norteiam muito as nossas subjetividades.
Realizar novenário, celebrações ou qualquer tipologia de culto, faz parte das comemorações que são lugares de memória, na acepção do historiador francês Pierre Nora. Lugares que se encarregam de lembrar por algo que já se foi, mas parece atemporal em função do processo repetitivo que traz o passado sempre presente, como sendo a essência da escatologia que trará a felicidade humana no mundo sublunar.
São lugares de memória as esculturas de Nossa Senhora, a Bíblia e as celebrações que se realizam nas escolas. Porém, não são inocentes, pelo contrário, representam a moral cristã, simbolizam os valores do ocidente medieval e objetivam legitimidade cristocêntrica. Lidos numa perspectiva pós-crítica de currículo, constroem identidades e formam subjetividades. Como nos lembra Tomaz Tadeu da Silva, pensar a questão curricular nos remete imediatamente para uma pergunta básica: O que ensinar? Esta, por sua vez, está intrinsecamente envolvida em outra também importantíssima: Que cidadão formar, que consciência e que sujeito quero construir?
Acompanho, para a escrita desse texto, Popkewitz, na definição de currículo, na qual

(...) o currículo é uma imposição do conhecimento do “eu” e do mundo que propicia ordem e disciplina aos indivíduos. A imposição não é feita através da força bruta, mas através da inscrição de sistemas simbólicos de acordo com os quais a pessoa deve interpretar e organizar o mundo e nele agir. (apud STEPHANOU, 1998, p. 23)

No mesmo artigo, Maria Stephanou cita outro teórico de currículo, Cherryholmes, se apropriando também de sua conceituação. Para ele, o currículo é tudo que proporcione aprendizado aos alunos nas escolas, explícita ou ocultamente. O currículo não é apenas aquilo que é socializado, mas também se aprende com as exclusões, com os silenciamentos que nem por isso deixam de formar certas visões de mundo.
Fundamentado nesse aparato conceitual, convido vocês a um passeio pelos rastros de minhas memórias e das anotações dos meus cadernos de campo no que vou chamar de etnografia do estágio. Não vou destacar os conteúdos propriamente ditos, prefiro olhar outras práticas da cultura escolar que, a meu ver, precisam ser compreendidas relacionadas às relações de poderes.
Vejamos o que nos diz a legislação. A LDB (1996), no TÍTULO II- Dos princípios e Fins da Educação Nacional, define onze princípios que deverão reger o ensino público. Entre esses, o “III- pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas’; e o “IV- respeito à liberdade e apreço à tolerância”. (LDB, p. 14). Os Parâmetros Curriculares Nacionais trazem como um dos temas transversais, Pluralidade cultural, cuja justificativa transcrevemos a seguir:

Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar os diferentes grupos e culturas que a constituem. A sociedade brasileira é formada não só por diferentes etnias, como por imigrantes de diferentes países. Além disso, as migrações colocam em contato grupos diferenciados. Sabe-se que as regiões brasileiras têm características culturais bastante diversas e a convivência entre grupos diferenciados nos planos social e cultural muitas vezes é marcada pelo preconceito e pela discriminação. O grande desafio da escola é investir na superação da discriminação e dar a conhecer a riqueza representada pela diversidade etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, valorizando a trajetória particular dos grupos que compõem a sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser local de diálogo, de aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e respeitando as diferentes formas de expressão cultural. (PCNs, 1997).


Em que pese às divergências teóricas sobre a temática das identidades e diferenças[5], do ponto de vista formal/oficial, parece estarmos muito à frente das práticas escolares cotidianas. A legislação educacional que, inclusive, deverá ser leitura obrigatória na formação dos cursos de licenciaturas, está embasada no debate sobre diversidade cultural. Aliás, desde 1968, a tônica das diferenças e as lutas de movimentos sociais diversos têm ocupado espaço relevante nos debates acadêmicos, nas ONGs e até na mídia (embora, muitas vezes, equivocadamente).
Penso que os profissionais de História precisam, tanto na Educação Básica como nas Universidades, levar mais a sério essas questões; trabalhar na perspectiva das identidades e alteridades como construções contingentes, sem essencialismos ou naturalização de valores que são culturais, portanto, humanos. Retornando ao título do artigo, precisam olhar a escola como espaço das diversidades, por isso, não deveriam fazer delas mais um templo sagrado que legitima o cristianismo deslegitimando outras crenças e até a falta de crenças. Aulas de História não deveriam ser uma espécie de retomada dos sermões jesuíticos nem lugar para evangelização. Se assim for, os profissionais estão indo na contramão da LDB, da Constituição Federal, e mais importante ainda, dos fundamentos teórico-historiográficos de sua própria formação. Ou seja, lêem na academia para justamente fazer o contrário nas práticas pedagógicas (inclusive nas academias, o que é muito pior ainda).
Certa vez um/a aluno/a de um curso de Licenciatura em História me indagou sobre o porquê das críticas que eu fazia em torno da questão do ensino religioso. A pergunta, tal como foi formulada remetia no sentido de que, se falamos tanto em diversidade, deveríamos, também, respeitar a fé dos cristãos. Tive que responder como historiador. O que eu critico não é a fé ou a falta de fé das pessoas. Todos nós devemos ter o direito de escolher em que acreditar como também devemos ter o direito de escolher não acreditar em nada. Entretanto, penso que ao historiador cabe estudar as diversas religiões e religiosidades como construções históricas de sujeitos localizados temporalmente e espacialmente nos seus devidos contextos. E não fazer da escola um espaço ideológico de transmissão de valores de qualquer religião.
 O historiador marxista, sobretudo, pensa nas religiões como instrumentos ideológicos que servem as classes dominantes. Ou como práticas de resistências a esses dominantes. O mito Rá, no Egito antigo, procurava manter a estabilidade e o controle social em torno do apoio ao Estado faraônico; a Igreja Católica medieval já foi considerada o “bastão do feudalismo”; o protestantismo e o calvinismo, conforme analisou Max Weber, surgiram como a ética do capitalismo moderno; recentemente, no Brasil, a Igreja Católica apoiou o golpe de 1964. Talvez, discussões como essa, realmente, incomodem bastante.
Em suma: na minha concepção, cabe aos historiadores problematizarem as religiões e religiosidades como algo contingente: o surgimento, os conflitos, os sincretismos, as dimensões ideológicas de dominação e resistência, o imaginário e guerras de representações e práticas culturais. Portanto, fazer uma história das religiões é diferente de tentar doutrinar alunos para qualquer religião. Para isso, estes têm as instituições religiosas, a sala de aula não pode ser mais uma. Assim respondi ao questionamento do/a aluno/a.
No dia 10 de setembro de 2007, observando a aula de um estagiário em uma turma de 2º ano do Ensino Médio na Escola Estadual da Prata, quando o aluno propunha uma discussão sobre identidades locais e se reportou aos estereótipos da baianidade, uma aluna fez uma intervenção e afirmou: “Axé é macumba”. Em outras aulas sobre a escravidão, quando estagiários se referiam às práticas culturais afro-brasileiras, sempre um aluno ou uma aluna faziam uma intervenção preconceituosa, demonizadora e pejorativa da religião e religiosidade como candomblé e umbanda. O que deve fazer um profissional de História nesses momentos? Fechar os olhos? Deixar esse conhecimento prévio sem nenhuma problematização? Ou pior ainda: reiterar essas afirmações extremamente desrespeitosas para com a cultura do Outro? Laura de Mello e Souza pode muito bem auxiliar os historiadores e historiadoras nesses momentos. Ela mostra, no livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz, como a Igreja Católica justificou o projeto de colonização e escravidão na América portuguesa, de tal forma que os sentidos da colonização não eram apenas econômicos, mas também culturais. O Brasil colonial era o paraíso de brancos e o inferno dos negros. Por que os negros tinham que ir para o inferno? Consulte-se Laura, ela explica muito bem.
A escola e seu currículo, pelo que tenho visto, (para nem pensar na universidade!!!!), têm se encarregado de continuar essa visão de mundo dicotômica e maniqueísta de “religião de Deus” e “religião do demônio”, uma, “normal”, a outra “anormal”; uma, que “salva”, a outra, que não leva as almas ao céu, e sim, às “profundezas do inferno”. É assim que estamos tratando as diferenças, nos deslocando do ofício de historiador para o trono divino do juízo final a condenar os “pecadores” e “salvar os puros”? Essas definições de norma e transgressão são naturais?  Mais uma vez afirmo que o papel da história e seu ensino é desnaturalizar certos discursos, estereótipos, conceitos e categorias que alcançaram a condição de verdade inquestionável.
A essa altura, preciso voltar ao inicio do texto para não perder o fio da meada. Volto e não volto sozinho. Trago Geertz, Darnton, Cherryholmes, Popkewitz, Bourdieu e Stephanou comigo, já que começamos a conversa juntos.
Sei que é preciso investigar mais a fundo, fazer recortes nos tempos e espaços, ouvir os atores envolvidos no processo educacional. Muitos trabalhos poderão seguir nessa direção de uma cultura histórica cristã nas escolas ditas laicas. Estou apenas falando da minha interpretação dos signos dessa cultura que se apresentam em espaços educacionais.
Nas escolas que visitei, em sua grande maioria, tinha uma estátua de Nossa Senhora ou uma Bíblia Sagrada, às vezes na sala da direção ou dos professores, mas também na entrada central das mesmas. Numa determinada escola, obrigatoriamente, quem tiver que adentrar por ela, passará em frente a uma espécie de nicho com uma imagem de nossa Senhora. É ela que recebe a todos que passarem do portão de entrada. Escola é templo? E se lá tivesse uma estátua de Iemanjá, velas coloridas, perfumes e flores brancas? Ou uma pomba gira, seminua, pintada de batom com uma porção de sutiãs e calcinha ao seu lado? Ou um preto velho fumando cachimbo? Não estou propondo a inversão simbólica, apenas provocando para que possamos investigar mais as representações e o imaginário das religiões afro-brasileiras no nível da cultura escolar. No campo hipotético, arriscaria concluir pela quase impossibilidade da permuta de representação. A cultura histórica cristã, hegemônica desde o período colonial, consolidou no imaginário social uma associação das religiões de base africana às forças do “mal”, portanto, demoníacas. Isso é uma questão histórico-cultural a ser investigada.
As escolas teriam, portanto, dois caminhos a trilhar para fugir ao poder simbólico cristocêntrico. Ou abriria espaço para, além da Bíblia e das imagens católicas, exporem candelabros, balangadães, o mantra sagrado hinduísta, o Alcorão, o Tei-Gi taoísta, ou, de outro modo, extinguirem toda e qualquer representação religiosa como parte da decoração de suas salas. No primeiro caso, estou ironizando; defendo a tese da escola laica, portanto, fecho com o segundo caso[6].
Vejo esses símbolos cristãos nas escolas públicas como a briga de galos balinesa, porque lá, de acordo com Geertz, os conflitos da comunidade apareciam nas lutas físicas dos pobres inocentes galos. Também se assemelha ao massacre de gatos interpretados por Darnton porque, na tipografia francesa do século XVIII, os trabalhadores se vingaram da exploração dos patrões pela via indireta da morte dos gatos. No caso que analiso, as brigas e os massacres também são simbólicos, violentam duplamente como diz Bourdieu: afirma-se sobre outras religiões e crenças e oculta a face mais cruel da dominação. São simbólicos, mas são reais, se pensarmos que, na Irlanda, católicos e protestantes brigam mais do que galos e morrem mais do que gatos. São reais se pensarmos que, no Oriente Médio, judeus e muçulmanos se atiram num ódio religioso milenar. Que terreiros de candomblé foram/ainda são perseguidos pelas forças repressivas da sociedade política[7]. De forma poética, e a título de ilustração, citemos a historiadora Rosa Godoy:


A rosa de Hiroshima
desabrocha no 101º andar do World Trade Center,
A figura de Mi Lai
desnuda
a cidade de imagens.
E devolve aos consumidores
a condição humana.

Os arrozais do Vietnã
ardem
nas ruas de Mannhatam.

Os becos da Palestina
se banalizam
entre os escombros de Nova York.

As mesquitas de Bagdá
são catedrais católicas
orando em dor universal
e no medo.

Os lugares se encontram
Sobre as fronteiras do tempo e dos espaços,
Sinalizando
que é preciso
reconfigurar a paisagem.

          
As religiões também geram guerras e conflitos. Em nome de Deus se morre e se mata. O ódio caminha junto com o discurso do “amor o próximo”. Seja no plano de guerras declaradas e coletivas com grande chacina, seja no plano cotidiano de uma briga na esquina da rua, o que está em jogo é a intolerância religiosa, o preconceito e a desqualificação do Outro.
E nós, historiadores, vamos ficar morrendo de rir, como os tipógrafos de Saint Severin ao encenar o enforcamento dos gatos? Vamos permitir que o currículo ajude a manter ódio e conflitos entre os diversos, colaborando, assim, com o preconceito e as guerras?



REFERÊNCIAS

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ARANHA, Gervácio Batista. A história renovada: a emergência dos novos paradigmas. Revista Saeculum, João Pessoa: UFPB, jan.dez. 1998/1999.

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CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. Os Afro-unbandista e a resistência na ditadura do Estado Novo. Revista Saeculum. João Pessoa: UFPB, n. 8/9, jan. dez. 2002-2003.

DARTON, Robert. Os trabalhadores se revoltam: O grande massacre de gatos na rua Saint-Severin). In: O Grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural Francesa, São Paul: Graal, 1988.

GEERTZ. Clifford. A interpretação das culturas. R.J., LTC, 1989.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: A Problemática dos Lugares. In: Projeto História. nº 10, , p. 7-28. São Paulo, 1993.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. 2.ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2006

Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997, 146p. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf. Acesso: 12 jul. 2010.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias de Currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Diversidade religiosa.  http://www.redhbrasil.net/. Acesso: 12 jul. 2010.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz - feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
STEPHANOU, Maria. Currículos de História: instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar. In: Revista Brasileira de História, vol. 18, nº. 36, 1998, p. 15-38.








[1] O autor é Professor da UAEDUC/CDSA da UFCG e Doutorando em História pela UFPE. Joseluciano9@gmail.com.
[2] A história tem dialogado com a antropologia interpretativa geertziana e o seu método da descrição densa.  O historiador estadunidense Robert Darnton é um dos mais emblemáticos exemplos dessa aliança. Contudo, as maiores críticas a essa perspectiva de história antropológica hermeneuta advém do historiador italiano da micro-história, Giovani Levi. Ele critica o que considera relativismo cultural em artigo intitulado “Os perigos do Geertismo”.
[3] Para Aranha (1998/1999), a narrativa escrita por Contat sobre o massacre de gatos na tipografia francesa do século XVIII: “Interpretando-a ou lendo densamente, o autor explora uma multiplicidade de sentidos relativamente ao episódio narrado. A ‘informação nativa’, ao passar pelo crivo da ‘descrição densa’, adquire tons e cores diversos, significados múltiplos e inesperados. Assim, a ‘informação nativa’, enquanto expressão de uma época e de uma cultura é uma coisa; outra coisa bem diferente é essa mesma informação após submeter-se aos rigores pormenorizados da ‘descrição densa’, que lê semioticamente o sentido inscrito em cada palavra, em cada gesto, em cada atitude; que lê, enfim, explorando as entrelinhas, etc”.
[4] Para Bourdieu, (2004, p. 14/15), o poder simbólico se faz “(...) pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isso significa que o poder simbólico em forma de uma” illocutionary force” mas desta- entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, a crença cuja produção não é de competência das palavras”.
[5] Não faz parte dos objetivos desse artigo entrar na discussão teórica sobre identidades, diferenças, singularidades, multiculturalismo, etc. Esse debate está longe de ser consensual (nem poderia). Entretanto, ressalto que, seja em qualquer perspectiva, é algo que está na ordem do dia dos currículos contemporâneos e da legislação no Brasil.
[6] Evidentemente que os símbolos e toda ritualística das religiões e religiosidades diversas podem ir às escolas como parte constituinte das metodologias de ensino, tais como: seminários temáticos, peças teatrais, aulas de campo, etc. A propósito das metodologias de ensino, acho interessante a visita aos terreiros de candomblé. Os objetivos e os procedimentos dependerão da proposta do professor ao planejar essa aula, porém, penso que é uma oportunidade relevante para desconstruir a visão demonológica e pejorativa que foi construída em torno das religiões me matriz africana.
[7] Na Revista Saeculum, Zuleica Dantas Pereira Campos mostra como os afro-umbandista eram duplamente perseguidos: pela ditadura varguista do Estado Novo e pelos espíritas Kardecista.