segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

PREFEITO DE CAMPINA GRANDE PROIBE CARNAVAL DE RUA EM 2024

 



Luciano Queiroz (Historiador UFCG e Resistência-PSOL/PB)

No último dia 12, foi publicado no Semanário Oficial de Campina Grande o Decreto 4.813, assinado pelo prefeito Bruno Cunha Lima, proibindo a realização de carnaval de rua na cidade. O decreto reserva o período entre os dias 08 (quinta-feira) e 13 (terça-feira) para a realização exclusiva dos “eventos ecumênicos” relacionados ao “Carnaval da Paz”. Estabelece que as áreas em torno do Açude Velho, Parque da Criança, Parque do Povo, Bairro do Catolé, Centro da cidade, Bairro Santo Antônio, Bairro do Jardim Tavares, Bairro do São José, Bairro da Palmeira, Bairro da Liberdade, Bairro do Alto Branco e Estação Velha estão reservadas apenas para os eventos de cunho religioso.

Assim, oferece parte da cidade para quem pretende ficar em Campina Grande discutindo o sagrado e expulsa das ruas foliões, blocos carnavalescos tradicionais e quem pretende ficar em Campina no lado profano do calendário. Podem até brincar, desde que fora do calendário do carnaval e com a devida solicitação e autorização da prefeitura, diz o prefeito. Ou seja: brincar carnaval, fora do carnaval.

Além da benevolência religiosa em ceder a cidade ao espaço do sagrado, ainda escala funcionários públicos para trabalharem durante todo o período para a realização do tal “Carnaval da Paz”. E que se dane a laicidade do Estado! A política e a religião sempre se encontram na primeira esquina da História. E se abraçam em nome de Deus, da Pátria e do Capital!

O prefeito também coloca a guarda municipal para fiscalizar o cumprimento do decreto devendo “tomar as providências cabíveis, inclusive a comunicação policial”. Essa é a parte coercitiva do aparelho de Estado. Em parceria com o Ministério Público baixa-se um decreto proibindo a cultura popular carnavalesca e no mesmo ato de força escala uma força policialesca para reprimir qualquer iniciativa que sinalize quanto à resistência e a desobediência ao todo poderoso gesto autoritário da prefeitura.

Nada contra as pessoas que optam por passar o carnaval debatendo e se relacionando com as mais diversas formas do sagrado... desde que a festa não seja bancada pelo erário público e pelo patrocínio estatal, a exemplo da construção de um Monumento à Bíblia realizado pela prefeitura municipal no passado.

Nada contra as pessoas que optam por passar o carnaval debatendo e se relacionando com as mais diversas formas do sagrado...desde que a cidade comporte o espaço de suas ruas também para aqueles e aquelas que pretendem brincar carnaval em terras campinenses, pois aprendemos desde 1968 que é “proibido, proibir”.

O carnaval, apesar de ter se transformado bastante na História, comportando uma mercadoria de alto valor de troca no capitalismo, ainda é uma festa aberta em potencial para explodirem as contradições e resistências as mais diversas. Não estamos mais nos tempos da praça pública medieval estudada por Mikail Bakhtin, mas quero crer que ainda há espaço para que o riso, o cômico, a paródia, ainda possam fazer oposição à cultura oficial. Que ainda possamos criar uma segunda vida, um segundo mundo até a quarta feira de cinzas, até o dia em que outro modelo de sociedade seja construído com maior perenidade. Acredito que Campina Grande vai resistir. E resistir com festa nas ruas proibidas, o melhor espaço para darmos respostas à altura ao autoritarismo da oligarquia de plantão.

 

 

 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

QUE DEUS É ESSE, DO VALADÃO?



Prof. Luciano Queiroz (UFCG- Resistência/PSOL)


Independente de qualquer religião, quando se fala em Deus (es), pressupõe-se que se trata de uma entidade metafísica a quem muitas pessoas acreditam condutora de seu destino histórico. No caso de cristãos, espera-se que se cumpram junto a ele, dois grandes mandamentos: 1º) amar a Deus sobre todas as coisas e 2º) amar ao próximo como a si mesmo. Isso se aprende já nos tempos da Primeira Eucaristia, no caso do catolicismo. Se Deus é o pai, o criador, o onipresente, dele se espera amor, cuidado, proteção, solidariedade, respeito.

Contudo, na boca de alguns pastores, como André Valadão, Deus deve ser a representação do castigo, da punição, da seletividade classificatória da espécie humana e, no limite... da MORTE! Esse Deus possui uma encarnação mais fascista que cristã, mais fundamentalista, que religioso.

Um Deus que se apresenta aos templos-mercadorias pelos gritos estonteantes de alguns pastores, que procuram em nome divino eliminar da terra uma parte humana, não pode ser o Deus do mandamento do amor ao próximo. É o Deus que serve para afortunar uma elite empresarial da fé, controladora de bancadas políticas, de meios de comunicação e dos dízimos de um rebanho bastante consistente. Esse Deus tem a dupla face do capitalismo e do fundamentalismo, da mercantilização da fé e da instrumentalização política da ideologia.

As LBBTQIAP+ são seres humanos, portadores de direitos e de muito respeito. Chega de, em nome da liberdade de expressão, atirar fraseologias que as associam ao pecado, à doença e ao crime. São formas de viver suas identidades de gênero e orientação sexual de forma diferente do padrão normativo do patriarcado heterossexista. Nem melhor, nem pior, apenas diferente. Não existe “A” FAMÍLIA, mas AS FAMÍLIAS e assim que deve ser.

Gritos condenatórios de alguns pastores não mais intimidam a multidão que já saiu do armário para as ruas e não teme condenações moralistas com coloração fascistoide de eliminação das diferenças. A luta é contra o Neofascismo e as LGBTQIAP+ não recuarão mais um passo que seja. Depois das urnas e dos tribunais, precisamos derrotar essa extrema direita que continua viva e contando com cultos fortalecedores.

André Valadão e sua turma precisa urgentemente ser responsabilizado. Precisa ler direitinho a Bíblia e procurar entender que se Deus é o criador do mundo e dos homens ele não iria, nem deveria, aceitar os filhos heterossexuais e matar as filhas (os) lgbts. Muito menos Jesus Cristo faria isso, a julgar pelo que ele fez no interior do todo poderoso Império Romano andando com pobres, prostitutas, doentes, sendo preso, torturado e antes da morte, perdoando seus crucificadores.

Talvez estivesse na hora do Deus do amor enviar o mais urgente possível Jesus para terra, com direito a uma passadinha inicial pelo Brasil. Mas não era para realizar o juízo final. Pelo contrário, era para chamar a atenção de falsos pastores que usam o nome de Deus e de Cristo para não pagarem impostos ao Estado, enganarem parte da população com cobranças de dízimos altíssimos e tomar satisfação a respeito dessa ideia de matar LGBTQIAP+. E depois fechar aqueles templos que não sigam as lições do amor ao próximo e ameaçam com fundamentalismo religioso.

Depois Jesus pode subir novamente que a vida na terra continuará com profundo respeito às mais variadas formas de viver nesse planeta azul... e COLORIDO!!!!.


terça-feira, 6 de julho de 2021

UM “GOVERNADOR GAY”, OS BLACK BLOCS E OS TUCANOS NAS RUAS: ALGUNS PITACOS SOBRE A CONJUNTURA

 



José Luciano de Queiroz Aires

Historiador (UFCG), Resistência (PSOL)

Entramos no mês de julho com mais uma grande manifestação nacional pelo Fora Bolsonaro e o projeto político que ele representa. As ruas deram seu recado político no chão histórico da luta de classes. Já no campo da institucionalidade, o governo vem enfrentando os tiroteios diários da CPI da Covid, a caneta da ministra Rosa Weber e a sombra ameaçadora de Lula. O centrão, insaciável que é, pressiona o governo por mais espaço no Planalto cujo presidente é refém de mais de 100 pedidos de impeachment sobre os quais está sentado o presidente da câmara Artur Lira. Para piorar a situação lá em cima, a semana começa com os áudios bombásticos divulgados pelo UOL dando conta do esquema de “rachadinhas” no gabinete do então deputado federal, Jair Bolsonaro. Diante desse quadro dramático no qual o governo parece derreter como neve, o capitão cloroquina ameaça à luz do dia com um golpe de Estado tendo Deus como o maior fiador.

Contudo, o grosso das frações burguesas ainda está com Bolsonaro. Não confiam ainda em Lula, apesar de seus acenos, nem conseguiram emplacar um nome da direita liberal com algum grau de popularidade nas pesquisas. Ao que tudo indica, Luciano Huck sairá do caldeirão para o domingão, sendo rifada sua ideia de disputar o planalto. João Doria, apesar de toda politização em torno da vacina, parece não ter votos além de São Paulo e Mandeta não tem mais que 3% nas pesquisas eleitorais. O finado Sérgio Moro, articulador central do Golpe de 2016, desceu para o subterrâneo da política juntamente com as águas sujas da “vaza-jato”. Restou, aos defensores do liberalismo e sua direita clássica saudosa dos anos 1990, tentarem emplacar o nome do governador gaúcho Eduardo Leite.

Para tanto, ninguém melhor do que Pedro Bial, ideólogo burguês da Rede Globo, para apresentar o nome da “terceira via” travestido com as cores da bandeira do arco íris. E assim, Eduardo Leite fez uma encenação política ao assumir publicamente sua orientação sexual que, aliás, não pegou muita gente de surpresa Brasil a fora. O “governador gay” que a Rede Globo oferece aos eleitores como solução para fugir da polaridade entre o bolsonarismo e o lulismo governa as terras gaúchas sob a égide do neoliberalismo, do privatismo, do ajuste fiscal e do arrocho sob os servidores públicos. Desse modo, a imagem de um tucano colorido e defensor dos direitos humanos contradita com a essência do projeto político que de fato ele representa.

Por falar em tucanos, pudemos vê-los pela Avenida Paulista durante as manifestações do 3 de Julho desfraldando a bandeira de Bruno Covas, mais um cadáver insepulto da politica brasileira. Resolveram embarcar no Fora Bolsonaro e colar na esquerda em seus atos de rua. Porém, sua recepção não foi tão calorosa por parte do PCO que resolveu ir para o confronto com o partido golpista de 2014.

Na linha do confronto, os black blocs atiraram sua ira contra as agências bancárias e incendiaram a cidade, ato esse, reprovado pela mídia burguesa tolerante apenas de manifestações “pacíficas” e também pelo Presidente da República que se aproveita para desqualificar o conjunto da obra e ainda ameaçar, mais uma vez, com as bravatas golpistas.

Desse resumo do último final de semana, creio que o conjunto da esquerda brasileira tem uma responsabilidade histórica a cumprir e não podemos deixá-la escapar no instante de uma relâmpago. Dessas tarefas, algumas são para ontem:

v Continuar nas ruas fortalecendo e consolidando a frente de esquerda pelo Fora Bolsonaro ainda em 2021. Frente essa que também deverá apresentar um programa da classe trabalhadora para as eleições de 2022;

v Não quebrar a unidade na luta, de modo a envidar todos os esforços para acompanhar o calendário de atos definido pela Coordenação Nacional pelo Fora Bolsonaro;

v Rechaçar qualquer movimento na esquerda em direção a construção de frentes amplas nas ruas e nas urnas com partidos burgueses e golpistas.

v Por outro lado, não devemos, em hipótese alguma, agredir, censurar ou impedir a presença tucana marchando nas ruas conosco, desde que mantida a independência total em relação ao projeto que eles representam. Não devemos descartar forças políticas e sociais antifascistas que se somem pelo Fora Bolsonaro como tática para esse momento decisivo, pois se Bolsonaro e o bolsonarismo estão em crise isso não significa que estejam derrotados a priori;

v Denunciar e delimitar nossa diferença em relação à tática black bloc, não porque somos contra a violência revolucionário, mas porque as condições para uma revolução não estão dadas na conjuntura. Dessa forma, temos que considerar que os atos estão sendo realizados em plena pandemia, onde, sequer o conjunto da militância possa arriscar quebrar a quarentena social. Por isso, acreditamos que os atos massivos, ressalvados todos os cuidados sanitários, em formato de caminhada e/ou carreata serão mais adequados para esse momento. Sem falar que o governo e a mídia burguesa se legitimam nesse tipo de tática black bloc levando água para o moinho golpista da “segurança nacional”.

v Por fim, o confronto de rua não está descartado para um futuro (quem sabe próximo?) - de combate ao neofascismo. Para tanto, a esquerda deve se organizar no sentido da autodefesa, das liberdades democráticas e do combate ao fascismo do século XXI. Espero que não possamos chegar a esse momento.

quarta-feira, 31 de março de 2021

A PESQUISA EM HISTÓRIA E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE

 

Prof. Dr. José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

 

Do alto do Monte Hélicon, a anunciação advinda da trombeta da Musa Clio sobre o tempo presente no Brasil é bastante desafiadora para seus filhos historiadores do lado de cá do Atlântico. Com o livro de Tucídides na outra mão e a eloquência capaz de inspirar as ciências e as relações políticas entre os homens, talvez seja o caso de começar esse texto recorrendo ao nosso mito maior a fim de tentar estabelecer alguns desafios e impasses colocados aos professores/pesquisadores de História em tempos sombrios.

O Brasil já foi representado de diversas formas, mas é a aquarela, talvez uma das mais canônicas imagens de sua identidade nacional, por meio dos arranjos sambistas de Ary Barroso que musicalizou a brasilidade se apropriando de pinceis, tintas e cores harmoniosas e miscigenadas, tão ao gosto do sociólogo pernambucano e do governo federal varguista. Pois bem, mesmo não entrando no debate sobre a ideologia da suposta democracia racial, gostaria de tentar imitar o compositor, mas fazendo um texto de historiador, de maneira que, assim como ele, tento enquadrar o Brasil atual numa aquarela.

Por alguma analogia, pode-se dizer que os tempos que nos separam – Ari Barroso de nós - mesmo reconhecendo as suas especificidades históricas, estavam/estão carregados por uma onda fascistizante que tenta pintar uma representação única de Brasil: uma nação monoliticamente cristã, branca, heteronormativa, anticomunista, antidemocrática, elitista, cujo modelo de família tida como “superior” é a patriarcal. As tintas com as quais quero narrar o que estamos vivendo, procura imitar, na imaginação, o clássico Guernica, de Picasso; o Brasil do horror, das contradições históricas profundas, das desarmonias, da democracia nunca resolvida e substantivada. Tudo de ponta cabeça. Sangue de Marieles, chicotadas dos latifundiários gaúchos nos sem terra, tiros na caravana e prisão política do ex-presidente Lula, intervenção militar nas favelas do Rio de Janeiro, violência física e simbólica contra mulheres, negros, LGBT, indígenas, quilombolas e lideranças de esquerdas. Intolerância religiosa e racismo. Ódio de classe, nojo de pobre. Na minha aquarela usei dois galões de tintas verde e amarelo para pintar o Golpe de 2016, hegemonizado por frações do capital financeiro, industrial, comercial e agrário, mas orquestrado pelos patos de classe média, do “Movimento Brasil Livre”, do “Vem pra Rua” e outros, ideologizado pela grande mídia reacionário-burguesa e pelo Judiciário soba toga do juiz de Curitiba que se acha maior que o próprio Deus. O golpe fez o Brasil regredir e, por isso, construiu sua ponte para o passado. A roda da História girou para trás e se encontrou com outros tempos nefastos. A privatização do que ainda resta da PETROBRAS e a entrega do pré-sal às multinacionais; a contrarreforma trabalhista e o encontro com o século XIX quando a legislação de proteção ao trabalhador era pauta de luta de classe e greves históricas; a EC-95 que congelou nosso orçamento por vinte anos, de modo que, visivelmente, desmontam-se investimentos públicos e os mercantilizam na lógica do Consenso de Washington; a terceirização irrestrita e a precarização do mundo do trabalho acaba qualquer segurança jurídica e a estabilidade do trabalhador; a contrarreforma da previdência que na verdade é o fim da aposentadoria pública para favorecer fundos de pensões e o capital financeiro, rasgando o capítulo da Seguridade Social da Constituição Cidadã de 1988.

Piorando o quadro, há uma verdadeira guerra de cores. Uma juventude com camisa da seleção brasileira resolveu aparecer na cena para enfrentar tudo quanto fosse vermelho que aparecesse à sua frente. Na aquarela brasileira do meu tempo o que não falta é espaço para desenhar e pintar a monstruosidade nostálgica daquele passado de barbárie que pensávamos descansar no repouso eterno das catacumbas. Eis que em tempos de crise orgânica, de descrença nas instituições democráticas, passa-se a ocorrer a revolução passiva do cemitério. Saem das tumbas do passado, arrancados pelas mãos de gerações do presente, desde monarquistas e integralistas até defensores da volta da Ditadura Militar. Tudo, ainda, em nome do combate à corrupção e ao comunismo, relembrando as Marchas de 1964 em nome de Deus e da Família. 

Pinto esses cadáveres abraçados com alguns ícones do presente, um abraço fraterno de gerações promotoras da catástrofe que paira sob os que jazem sob as rodas do cortejo triunfante da História. Que os venham receber seus defuntos prediletos, Jair Bolsonaro, Magno Malta, Kin Kataguiri, Eduardo Cunha, Silas Malafaia e toda bancada fundamentalista do Congresso Nacional e os ideólogos do “Movimento Escola Sem Partido” exorcizando Carlos Brilhante Ustra e todos os ditadores, torturadores e fascistas que passaram reinando na História desse país.

Um pouco mais de dois anos de governo Bolsonaro o que vimos foi a intensificação da autocracia burguesa e do flerte constante com a ideologia neofascista. Ameaças às liberdades e às instituições da Democracia burguesa foram realizadas à luz do dia, preferencialmente ao sol dos domingos e com a participação do chefe de Estado alimentando uma horda fascistizante. A militarização da política, a busca de apoio em setores da policia militar e milícias constituem hoje sérias ameaças de um golpe de Estado de estilo bonapartista. Resta saber se o presidente tem forças sociais e políticas para tal, o que ao meu modo de ver não tem, mas preocupa sua vontade que não vem de hoje de lançar o Brasil em uma guerra civil, alimentar o caos, para chamar a espada como talismã, conforme bela metáfora da historiadora Emília Viotti da Costa. Ademais, a política genocida e negacionista do governo já nos levaram mais de 300 mil pessoas, a maioria constituída por velhos que, aos olhos do governo da necropolítica ajuda ainda mais a reduzir o tal déficit na previdência social. Inflação crescente, desemprego às alturas, precarização do mundo trabalho, falta de vacina, falta de auxílio emergencial, volta do Brasil ao mapa da fome, retirada dos direitos sociais que ainda restam, privatizações, reforma administrativa que acaba com os serviços e servidores públicos, queimadas na Amazônia com a boiada passando, corte nos orçamento da união para a saúde e educação publicas. Tudo isso, sob as bênçãos de um Deus cúmplice, forte cabo eleitoral das igrejas neopentecostais.

Diante desse quadro que conjuga crise econômica internacional do capitalismo com crise política e avanço da onda fascistizante, cabe perguntar o que estão fazendo e o que podem fazer os filhos da musa da História em seu métier enquanto pesquisadores. Responder à questão requer definir uma concepção de História, da possibilidade da função social desse campo disciplinar e a relação entre a pesquisa acadêmica e a vida em sociedade. Por isso mesmo, gostaria de esboçar algumas considerações a respeito dessas premissas à luz de alguns autores com os quais mantenho uma interlocução teórico-metodológica e política.

Uma escrita da História que não sirva à vida e que não nos ajude a viver melhor não passa de elucubrações para mero orgasmo individual do intelectual. Diante do exposto, cabe direcionar o texto no sentido de tentar esboçar uma resposta que o garoto de Marc Bloch já perguntava nos anos 1940: “papai, então me explica, para que serve a História?”. Eu acrescentaria para nosso tempo: afinal, para que escrever e ensinar História em tempos de avanços da extrema direita, da crise do capitalismo e da retirada da obrigatoriedade da disciplina de História no Ensino médio?

Vale a pena repetir as lições do mestre em sua Apologia da História:

 

Sobre o livro que se vai ler, gostaria de poder dizer que é minha resposta. Pois não imagino, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos. Pelos menos conservarei aqui de bom grado essa pergunta como epígrafe, pergunta de uma criança cuja sede de saber eu talvez não tenha, naquele momento, conseguido satisfazer muito bem. Alguns, provavelmente, julgarão sua formulação ingênua. Parece-me, ao contrário, mais que pertinente. O problema que ela coloca, com a incisiva objetividade dessa idade implacável, não é nada menos do que o da legitimidade da história. (BLOCH, 2001, p. 41)

 

Não poderiam soar tão atual as palavras do grande mestre dos Annales. Escritas nos anos 1940, já se tornaram clássicas, pois envelheceram muito bem e estão à altura da indagação do menino. Aliás, que moleque sapeca! Colocou todos nós na roda para a conversa e desafiou o reinado de Clio a dar explicações convincentes a quem, certamente, espera respostas práticas e funcionais para uma ciência humana cuja matéria prima é retirada da poeira do tempo passado.

Para nós, historiadores brasileiros, atualmente mergulhados no turbilhão de contrarreformas e retrocessos em todas as instâncias, incluindo a já citada contrarreforma do Ensino Médio, que retira a obrigatoriedade da disciplina de História naquele nível de ensino, cabe-nos seguir as lições de Marc Bloch e, fortalecendo e chamando ao combate a nossa cinquentenária ANPUH, brigar em defesa da legitimidade do conhecimento histórico. Aliás, fica um alerta aos professores universitários que se encastelam na nobreza da pesquisa e esquecem ou negligenciam, conscientemente, o ensino básico como se fosse algo “menor”, esquecendo que não devemos/podemos falar apenas para doutos, mas também para os escolares, conforme posição elogiosa defendida por Marc Bloch. Nossa juventude carece de História para a formação de consciência histórica. E nós, historiadores, precisamos continuar a luta da ANPUH para alargar o campo de nossa atuação, para além dos bancos universitários e escolares. Tenho acompanhado bastante, nas redes sociais, respostas aos discursos fascistizantes daqueles que pedem a volta da ditadura na linha afirmativa de quem diz mais ou menos: “eu não defendo isso, eu estudei História”. Entretanto, se por um lado é correto que nem todos aqueles que estudam História formam uma consciência histórica crítica de mundo, por outro, não podemos abrir mão dessa função social e política de constituição de sentido nessa linha, fazendo com que a História, enquanto ciência, não tome a memória apenas como objeto de estudo, mas ela própria assuma essa condição de memória histórica que traga as rememorações temporais passadas pelas regras e métodos da operação historiográfica. Portanto, se o saber que produzimos deve servir aos interesses das gerações do presente, ele deve ser realizado por profissionais e cumprir uma função política que tenha em si a dimensão da emancipação humana e não da exploração do homem pelo homem. Por isso, devolvo a palavra a Marc Bloch para dizer que, se fosse julgada como incapaz de prestar outros serviços à humanidade, restaria, em favor da História, sua defesa em nome do nosso entretenimento. Contudo, mais adiante, ele questiona se todo nosso esforço e atração para o nosso ofício de historiador se justificaria apenas em função de ser um amável passatempo e responde categoricamente nas seguintes palavras que faço questão de citar:

Com toda certeza, num mundo que acaba de abordar a química do átomo e mal começa a sondar o segredo dos espaços estelares, em nosso pobre mundo que, justamente orgulhoso de sua ciência, não consegue todavia criar para si um pouco de felicidade, as longas minúcias da erudição histórica, muito capazes de devorar uma vida inteira, mereceriam ser condenadas como um desperdício de forças absurdo a ponto de ser criminoso, se se devesse apenas servir para dissimular com um pouco de verdade uma de nossas distrações. Ou será preciso desaconselhar a prática da história a todos os espíritos capazes de serem melhor utilizados em outro lugar, ou é como conhecimento que a história terá de provar sua consciência limpa. (BLOCH, 2001, p. 44)

 

Nesse ponto, o historiador francês coloca a questão: “o que, precisamente, torna legítimo um esforço intelectual?”. Para ele, a ciência História seria incompleta se não nos ajudasse a viver melhor, agir e compreender são inseparáveis no nosso métier.

Um primeiro impasse que gostaria de destacar em relação à pesquisa historiográfica, principalmente na historiografia paraibana que conheço um pouco melhor, se trata do já mencionado distanciamento entre a escrita e a práxis, ou seja, muitos historiadores hiperdimensionam a pesquisa separada do ensino e, principalmente, da extensão universitária. Sendo assim, põem a mão na luva do sistema produtivista da CAPES vivendo apenas de contar números de artigos publicados, qualis de revistas e participação em congressos a fim de alimentar seu curriculum lattes e reverter em capital cultural. Pior ainda é que muitas vezes tomam-se os indígenas, quilombolas, LGBT, mulheres, trabalhadores, as instituições escolares, etc, como objeto de estudo de Teses e Dissertações, que não passam de calhamaços encalhados em prateleira de bibliotecas, mas rendem progressão e ascensão funcionais para os pesquisadores, sem nenhum retorno político para os sujeitos do presente que foram narrados pela pena do historiador de gabinete. Isso, sim, é uma atitude bastante antiética.

Esse muro universitário que isola os intelectuais em guetos competitivos e individualistas, tão ao gosto da ideologia neoliberal, afastando-os do mundo lá fora, de seus problemas e contradições, para mim é um grande problema, pois separa a pesquisa do ensino e extensão e, assim, o exercício de interpretação do gesto político da ação. Aliás, essa preocupação já estava no horizonte teórico de Antônio Gramsci, ao criticar, no Primeiro Caderno do Cárcere, todas as correntes filosóficas imanentes anteriores à filosofia da práxis justamente “por não terem sabido criar uma unidade ideológica entre o baixo e o alto, entre os ´simples` e os intelectuais”. (GRAMSCI, 2015, p. 99) Para o marxista italiano, a organicidade do pensamento e a solidez cultural apenas poderiam ocorrer “se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social”. (GRAMSCI, 2015, p. 100) Dessa maneira, ele anota no seu caderno de prisão que apenas através desse contato é que uma filosofia se torna histórica, depurando-se de “elementos intelectualistas de natureza individual e se transformando em ´vida`”. (GRAMSCI, 2015, p. 100) Cabe perguntar para os historiadores do presente: estamos mais preocupados em tornar o conhecimento histórico crítico e socializá-lo para as classes e grupos subalternos em suas guerras de movimento e posição? Ou em escrever uma Tese de Doutorado com 700 páginas para mera satisfação individual dos intelectuais, da CAPES e de seus pares acadêmicos?

Ligada a essa questão, destacaria um segundo impasse que considero igualmente problemático, este de natureza teórico-metodológica, mas também político-ideológica. Trata-se da hegemonia do culturalismo e do pós-estruturalismo nas pesquisas e no ensino de História nas universidades, feito à custa do funeral da teoria marxista. Desde os anos 1990, muitos historiadores vêm jogando fora a água com o bebê juntos e muitos estudantes de graduação saem repetindo barbaridades a respeito do marxismo sem ao menos ter lido a orelha de um livro de Marx. E ainda vem a santa ignorância do “Movimento Brasil Livre” e do “Escola Sem Partido” dizer que nas nossas universidades reina a “doutrinação ideológica” de base marxista!!!! Se assim o fosse, talvez não teríamos, muito pelo contrário, termos que conviver com estudantes fascistas em cursos de História nas nossas salas de aula, eleitores e cabo eleitorais de Jair Bolsonaro.

Eis que como a história processo é dinâmica e aberta, a crise atual demonstra que a teoria do materialismo histórico é a mais adequada para se entender as contradições sistêmicas, o processo de globalização, a etapa do capitalismo financeiro e neoliberal, o desmonte dos direitos dos trabalhadores e a luta de classes em escala global. Por isso mesmo, o velho barbudo alemão fez sua festa de 200 anos com uma jovialidade de dar inveja a qualquer historiador pós-moderno. Karl Marx anda esbanjando saúde, lançando livros e sendo um dos autores mais lidos pelo mundo a fora para se entender a crise econômica do capitalismo contemporâneo.

Nesse particular, defendo que devemos começar a ensinar nossos estudantes de graduação a ler os textos de Marx, Engels e do marxismo e não de comentadores detratores de suas obras. Ler, sobretudo, para que possamos formar cidadão críticos, engajados com os grupos subalternos e suas causas, pois, conforme bela definição do filósofo Paul Ricoeur (2007, p. 506), em passagem bastante benjaminiana que é que “a história, dizíamos então, encarrega-se dos mortos de antigamente de que somos herdeiros. A operação histórica por inteira pode então ser considerada como um ato de sepultamento”. Ao se referir à morte, Ricoeur afirma que no campo da História não se trata de “um lugar, um cemitério, simples depósito de ossadas, mas um ato renovado de sepultamento. Essa sepultura escriturária prolonga no plano da História o trabalho de memória e o trabalho de luto”. Nesse sentido, ele se aproxima da teoria da história à contrapelo de Walter Benjamin, ao afirmar que “o trabalho de luto separa definitivamente o passado do presente e abre espaço ao futuro. O trabalho de memória teria alcançado sua meta se a reconstrução do passado conseguisse suscitar um tipo de ressurreição do passado (...)” E formula uma interpelação muito válida a todos nós, com a qual estou inteiramente de acordo: “Não é a ambição de todo historiador alcançar, atrás da máscara da morte, o rosto dos que no passado, existiram, agiram e sofreram, e fizeram promessas que deixaram de cumprir”? (RICOEUR, 2007, p. 506).

Um terceiro problema que gostaria de destacar, talvez resultado de questões já apontadas, é o distanciamento dos historiadores em relação às lutas de ruas, incluindo aí o esvaziamento das suas próprias assembleias sindicais. O governo Temer implantou a pauta golpista do grande capital em menos de dois anos, diante de uma ausência marcante de nossa categoria a fazer a resistência concreta com os dois pés colocados sobre o chão da História. É óbvio que esse problema não é apenas dos historiadores, mas quando convocados por centrais sindicais e movimentos sociais para mobilizações/paralisações e greve geral, poucos de nós aparecemos. E acompanhando esse movimento, nossos estudantes também se ausentam de fazer política e deixam de vivenciar a práxis do movimento estudantil para também viver correndo atrás de publicar artigos para alimentar a máquina feroz e avassaladora do lattes. No geral, o que temos visto com maior frequência é a revolução do facebook, muita gente indignada a pedir o “Fora Temer” e a fazer oposição a toda pauta golpista, mas em uma situação bastante confortável diante de uma tela de computador no seu escritório de trabalho. Esquecemos que as redes sociais são um meio, e não um fim, embora muito importantes em um país que não democratizou os meios de comunicação, mas certamente não será de casa pela via da manifestação virtual que vamos mudar a História. Se assim o fosse, Renan Calheiros não teria concluído o mandado na presidência do senado federal, dada a quantidade de caixas com milhões de assinaturas de abaixo assinado virtual que correram pelas redes sociais e chegaram à mesa do senado. É mais que necessário que as esquerdas nesse país retomem o trabalho de base e que os historiadores que se identificam com uma concepção de História à contrapelo procurem seguir essa mesma direção, pois estamos perdendo as ruas para o fascismo verde amarelo que marcha, mais uma vez, na História do Brasil, à luz dos evangelhos e da defesa da família, da ordem burguesa ultra neoliberal e da sacrossanta propriedade privada. Disputar cada praça, cada rua, cada movimento de bairro, cada escola, cada movimento que desponte do horizonte do inesperado, como no caso da greve dos caminhoneiros; disputar hegemonia, fazer guerra de posição, eis alguns desafios para os historiadores que tenham preocupação com a emancipação humana e com o combate a todas as formas de dominação, exploração e opressão. E nós, senhores e senhoras profissionais das narrativas do tempo histórico, temos o imperativo ético de fazer o trabalho de consciência histórica articulando as categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa.

Baseado no historiador alemão Reinhart Koseleck, o filósofo francês Paul Ricoeur (2010) é quem nos chama a atenção sobre a universalidade meta-histórica dessas duas categorias históricas. Primeiro, porque em todos os tempos os homens pensaram sua existência em termos históricos, na sua dupla acepção (vivida e narrada); segundo, em função da variabilidade de que as duas categorias assumem conforme as épocas, por isso mesmo, tornam possível uma história conceitual das variações de seu conteúdo; em terceiro lugar, e para o objetivo desse texto, o mais importante, a ambição universal do par categorial meta-histórico é muito importante pelas suas implicações éticas e políticas permanentes.

Tal implicação requer como tarefa aos historiadores impedir que a tensão entre as duas categorias da temporalidade, experiência e expectativa, se torne cisma. Para isso, Ricoeur nos coloca a par de dois imperativos: “resistir à sedução de expectativas puramente utópicas; elas nada mais podem senão desencorajar a ação; pois, por falta de enraizamento na experiência em curso, são incapazes de formular um caminho praticável dirigido para os ideais que elas situam em ´outro lugar`”. (RICOEUR, 2007, p. 367). É preciso aproximar o horizonte de expectativa do tempo presente. Por outro lado, é preciso resistir ao encolhimento do espaço de experiência:

Para tanto, é preciso lutar contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo. É preciso reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas, massacradas até. Em suma, contra o adágio que diz que o futuro é aberto e contingente e o passado univocamente fechado e necessário, temos de tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada. Ora, essas são duas faces de uma mesma tarefa: pois somente expectativas determinadas podem ter sobre o passado o efeito retroativo de revela-lo como tradição viva. É por isso que nossa meditação crítica sobre o futuro pede o complemento de uma meditação semelhante sobre o passado. (RICOEUR, 2007, p. 368)

 

É preciso “ser afetado pelo passado”. Primeiramente, para que no nosso horizonte de expectativas possamos abrir o espaço de experiência, abrindo no passado “possibilidades esquecidas, potencialidades abortadas, tentativas reprimidas (uma das funções da história é, quanto a isto, reconduzir aos momentos do passado em que o porvir ainda não estava decidido, em que o passado era ele mesmo um espeço de experiência aberto para um horizonte de expectativa)”. (RICOEUR, 2007, p.388) Por outro lado, esse potencial liberado do “ser afetado pelo passado”, atribuindo-lhe tal sentido, pode contribuir para dar “carne e sangue” às nossas expectativas em uma história por fazer no presente-futuro.

Portanto, é no tempo presente que se pode ampliar ou encolher o espaço da experiência do passado. O presente deixa de ser uma categoria do ver para ser o tempo da iniciativa, portanto da ação e do sofrer, do “eu posso” raiz “eu sou” sujeito atuante que Ricoeur vai buscar em Merleau-Ponty. Como o tempo da iniciativa é o tempo da promessa, mas, sobretudo do seu cumprimento, “o de manter a palavra é fazer com que a iniciativa tenha seguimento, que a iniciativa inaugure verdadeiramente um novo curso das coisas, em suma, que o presente não seja apenas uma incidência, mas o começo de uma continuação”. (RICOEUR, 2007, p. 396) Por meio do “eu posso”, sugerimos a iniciativa do nosso poder; por meio do eu faço, demonstraremos a força da nossa ação; por meio da intervenção, inscrevemos nossos atos no curso das coisas, fazendo coincidir o presente vivo com um instante qualquer; por meio da promessa mantida, darmos ao presente a força de preservar, de durar e, portanto, deste último aspecto resulta propriamente a significação ética que anuncia o caráter mais especificamente político do presente histórico.

O presente é o tempo situado entre um passado que já não é e um futuro que ainda não é. É o tempo do “agora” solidário entre o futuro próximo e o passado que acabou de acabar. Ele supostamente pode inaugurar um tempo novo, um novo começo, mas apoiado no chamado “reino dos contemporâneos” a intercalar “entre o dos predecessores e dos sucessores”.

Voltando ao Brasil do presente, creio que precisamos romper com o presentismo, que não vem de hoje, como se não tivéssemos mais horizontes de expectativas nem espaço de experiências, pois futuro e passado pareciam condenados pelo culto ao progresso e o fetichismo ao atual modelo de sociedade pós-queda do Muro de Berlim. Tal posição teve reflexo na pesquisa historiográfica que deixou de tratar temas importantes do passado para o presente futuro, restando um profundo mergulho no culturalismo e em outras abordagens teóricas que, indiretamente, reforçam certo conformismo com o tempo presente descolado de seus dois vizinhos fundamentais da dialética do tempo histórico.

Creio que é muito significativo passar por cima da teoria conservadora do “fim da História”. É preciso criar horizontes de possibilidades de futuro à luz da promessa ética e política da dívida com as gerações do passado e seus projetos de emancipação impedidos, mas agindo no chão da História e não apenas escrevendo em gabinete de universidade.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador Rio de Janeiro. Ed.  Zahar/2001.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001- 2006, 6v.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa III. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A REVOLTA DA VACINA: ONTEM E HOJE

 


José Luciano de Queiroz Aires (UFCG)

Em 1904, o Rio de Janeiro, então capital da República brasileira foi palco de uma das grandes revoltas populares do inicio do século XX. O governo federal era Rodrigues Alves e o prefeito do Rio era Pereira Passos. Ambos estavam afinados com o projeto de modernização soprado pelos ventos da Paris de Haussmann e sustentado por três eixos centrais: a reforma urbana, o melhoramento do porto e o sanitarismo contra as doenças epidêmicas.

Geralmente se explica a Revolta da Vacina apenas como uma recusa da população em não aceitar a pistola imunológica comandada pelo médico Oswaldo Cruz sobre o seu corpo e, menos ainda, de forma obrigatória. Esse tipo de explicação, além de eivada de certo preconceito- (“povo ignorante” X “razão médica”), ainda é insuficiente para entender as causas da rebelião popular se não colocar o problema em um escopo estrutural bem mais amplo.

É verdade que houve resistência a tomar a vacina em 1904, até porque há que se considerar que os grupos e classes subalternos tinham razões em desconfiar dos governos, como também de uma campanha de vacinação na qual os médicos compareciam às casas das pessoas acompanhados da polícia. Isso mesmo: campanha de vacinação militarizada, regada muito mais a coação do que a uma campanha de convencimento da população.

Entretanto, o povo pobre da capital da República estava resistindo a um amplo projeto de modernização capitalista autoritário implementado à luz do eurocentrismo parisiense. Casebres, vielas, cortiços, vieram abaixo para ceder lugar a uma larga avenida, ruas com novo tipo de calçamento, prédios luxuosos e vitrines. Uma série de restrições passou a compor o código de postura municipal alterando, profundamente, os costumes populares e todo um modo de vida por ele orientado havia séculos. Em nome da ideologia da “civilização” e do “progresso”, agentes municipais e corpo de guarda reprimiam os populares.

A nova cara da capital republicana era enfeitada com os signos da modernidade burguesa. Devia, a partir de então, ser a cidade para o capital financeiro internacional, uma cidade cosmopolita, em vez de uma velha cidade colonial.  O avesso desse “progresso” só podia recair sobre a classe trabalhadora. A ideia higienista de combate às doenças epidêmicas incluía também a “limpeza” humana das ruas, expulsando mendigos, prostitutas, “vagabundos” e pedintes. Além disso, o povo pobre perdeu suas casas e foi afastado do centro para as periferias, dando inicio ao processo de favelização.

Esse projeto autoritário geraria suas contradições e explodiria em algum momento. Na verdade, antes de 1904, já havia uma tradição de motins populares no Rio de Janeiro como forma de resistência ao projeto do grande capital por parte dos “de baixo”. Em 1901, por exemplo, depredaram bondes contra o aumento do preço das tarifas e as péssimas qualidades nos transportes públicos; em 1902, combateram o monopólio dos marchantes sobre o comércio da carne verde. Portanto, como bem assinalou o historiador Nicolau Sevecenko, a Revolta da Vacina foi uma manifestação popular de resistência ao processo autoritário da transformação do Rio de janeiro em capital da República burguesa e cosmopolita. Aquele povo pobre, explorado e oprimido, olhava para a concretização da modernização burguesa como o símbolo do poder opressivo do Estado burguês. Por isso, não podemos concordar que as razões da revolta se restringiam apenas a questão da vacina obrigatória.

O preço da resistência foi cobrado com dose de repressão. O movimento era heterogêneo e desdobrado em duas rebeliões imbrincadas: o motim popular e a rebelião militar. Após o fracasso da tentativa de derrubar o governo do presidente Rodrigues Alves, este, convocou o Exército e a Marinha para reprimir as manifestações. Quando 300 alunos da escola Militar da Praia Vermelha marcharam em direção ao Palácio do Catete para depor o presidente, defrontaram-se com forças fieis ao governo e a tentativa de golpe fracassou. A partir daí, navios se encaminharam com deportados em direção ao Acre. A polícia e os bombeiros já vinham atuando contra as barricadas populares nas ruas cariocas e a cavalaria já avançava contra o povo pobre que resistia ao projeto de modernização burguesa. As forças repressivas estavam para garantir a “ordem social” e a propriedade privada e a ideologia já funcionava procurando inculcar os valores da modernidade como símbolos da “civilização” e do “progresso”, por oposição o modo de vida e a cultura popular, tida como representação do “atraso” e da “incivilizade”.

Estamos a 117 anos de distância da Revolta da Vacina. O contexto é outro completamente diferente. Vivemos uma crise global do sistema capitalista em suas várias dimensões e, por outro lado, o avanço do neofascismo e do neoliberalismo como saída do capital para enfrentar a crise em curso. Muito antes da Covid-19, o desemprego, a precarização do mundo do trabalho, a informalidade, o ajuste fiscal, a retirada de direitos sociais historicamente conquistados pela classe trabalhadora, já vinham contaminando muitas pessoas com o vírus assassino do capitalismo.

No caso do Brasil, além da crise e seu ônus mortífero sobre a classe trabalhadora, tivemos que entrar o ano de 2019 com um governo que flerta com a ideologia neofascista e que alimenta e é alimentado por um movimento de sustentação na sociedade que chamamos de bolsonarismo. Para piorar a situação, o ano de 2020 nos trouxe a Covid-19 que, por baixo, já deve ter matado cerca de quase trezentas mil pessoas.

Nessa conjuntura, o governo brasileiro preferiu o negacionismo. Chamou de “gripezinha”, falou que “não era coveiro”, perguntou “e daí?”, aglomerou, trocou três vezes de ministro para colocar um fantoche militar, brigou com a OMS e os com os epidemiologistas, receitou cloroquina, politizou a vacina e orientou a sua não obrigatoriedade. Ficou claro, para o governo, que a economia capitalista não podia parar e, assim, defendeu o lucro acima da vida. Para os pobres, o governo reservou um mísero valor de auxílio emergencial de trezentos reais, indo a seiscentos após muita pressão dos partidos de esquerda no Congresso Nacional. Mesmo assim, ao apagar das luzes de 2020, com a pandemia em alta, o governo preferiu cortar o auxílio e jogar a maioria da população ao Deus dará.

E chegamos ao ano novo com o mundo todo começando a vacinar as pessoas e o Brasil sem política nacional de vacinação. Foi preciso judicializar o caso no Supremo Tribunal Federal para que o Ministério da Saúde o apresentasse, mesmo assim, sendo entregue sem data para o inicio da vacinação. Depois de muita pressão, agora o governo aparece em rede nacional para afirmar que a vacinação ocorreria no “dia D e na hora H”.

Por meio da pesquisa, da ciência e da universidade pública, temos vacinas desenvolvidas em tempo recorde. Graças aos servidores públicos que muitos o tomam como “parasita”, temos vacina. Graças aos investimentos em instituições como o Instituto Butantã e a Fiocruz, temos vacina. O que falta é um governo que coordene uma política de distribuição dessas vacinas e priorize a vida das pessoas. Um governo que não negue a ciência e que valorize os serviços públicos a exemplo do SUS.

Ao que tudo indica, no Brasil será preciso uma nova Revolta da Vacina, desta feita contra o governo, mas em defesa da sua obrigatoriedade.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

“LUGAR DE FALA” E INTELECTUAL BRANCO

 





José Luciano de Queiroz Aires

Me chamo José Luciano de Queiroz Aires, professor de História do Brasil pela UFCG, militante da Resistência/PSOL e do ANDES-SN, tutor do PET História, trabalhador, branco, nascido e vivido por mais de 27 anos no campo, portanto, filho de agricultor/mangaero e professora primária/dona de casa. Nunca fui muito apegado à roça, sofria de asma e meus pais diziam que “eu tinha nascido para estudar”. Frequentei a vida toda o ensino público e gratuito, do primário ao doutorado e meus pais fizeram de tudo para que eu conseguisse fazer um curso superior. Vim para Campina Grande fazer a Escola Normal em 1989 e depois o curso de História em 1994 morando na casa dos outros. Chorava horrores, porque queria mesmo o aconchego do lar familiar que ficava há 130 Km de distância, no sítio Campo Grande. Com muita luta consegui me formar em História, quando, aos 18 anos, já era professor da rede estadual de ensino. Fiz mestrado e doutorado sem bolsa e trabalhando na universidade, fazendo da migalha de professor substituto um verdadeiro milagre que custeasse os estudos e a reprodução da minha força de trabalho. Hoje coordeno projeto de extensão na Comunidade Quilombola do Grilo e faço parceria política com o Movimento Negro de Campina Grande.

Não pretendia escrever um parágrafo tão carregado na primeira pessoa do singular, mas fui provocado por um professor universitário negro a escrever esse texto. Na última semana recebi um convite da Escola Nossa Senhora de Lurdes, da cidade paraibana de Cajazeiras para proferir uma palestra para estudantes do Ensino Médio cujo título era “A CONDIÇÃO NEGRA NO BRASIL ONTEM E HOJE”. Ao postar o card do evento no meu instagran- (a imagem que abre esse texto)-, um professor universitário negro comentou o seguinte: “lugar de fala meu querido, chama alguém negro para falar”. Após essa intervenção, voltei ao livro de Djamila Ribeiro, ao qual já havia lido antes do brilhante texto de Sílvio Almeida escrito para a mesma coleção.

Embora tenha uma série de divergências teórica e política com Ribeiro, às quais não cabem aqui serem apontadas, penso que o livro dela não caminha nessa direção que virou senso comum, a de que apenas pessoas negras possam falar, pesquisar e estudar a questão racial. “Lugar de fala”, segundo ela, não é um conceito para se aplicar a uma análise individual, mas aos grupos historicamente excluídos e marginalizados pelo o lugar que ocupa na sociedade que distribui privilégios para uns e exclusão para outros. Tampouco parece a autora pretender “proibir” que intelectuais de grupos sociais brancos possam falar sobre raça e racismo. Nesse sentido, o professor que exigiu minha retirada da palestra em nome do conceito de “lugar de fala”, ou não leu, ou não compreendeu muito bem o livro da Djamila Ribeiro.

Iniciei o texto numa concepção individual justamente para mostrar o equívoco do professor ao tratar da questão. Mas se fosse o caso de entender o assunto de forma individual, advogaria minha legitimidade na exposição da palestra, pois apesar de ser branco e nunca ter sofrido racismo, sou um professor de História do Brasil que estuda e ministra aulas sobre todos os temas, inclusive raça e racismo e sou intelectual orgânico sensível às causas do povo negro brasileiro e do combate ao racismo. E até o dia em que for bem recebido pelo Movimento Negro e pelas Comunidades Quilombolas, este intelectual branco estará fora de seu gabinete universitário e marchará ombro a ombro com homens e mulheres negras que tanto sofrem discriminação nesse país que pretende transmitir a ideologia da democracia racial como sua identidade nacional.

Agora pretendo transformar o singular em plural, o individuo em grupos e classes sociais. Somos homens e mulheres brancos pobres, a maioria absoluta do povo da região do meu Cariri Paraibano viveu e vive excluída, marginalizada, explorada e oprimida. São agricultores, donas de casas, meeiros, moradores, vaqueiros, sem terra, explorados pelos herdeiros de uma estrutura colonial agroexportadora e escravagista do império da casa grande. Muitos da minha geração sequer conseguiram assinar o nome, outros foram no limite da conclusão do Ensino Médio, pouquíssimos concluíram um curso superior e menos ainda conseguiram se tornarem mestre ou doutor. Tantos e tantos tiveram que migrar para o sul do país em busca de emprego. A maioria de nós, homens e mulheres brancos da classe trabalhadora foi privada de qualquer privilégio na estrutura social pelo seu condicionamento classista. Ou seja, ser branco não significa automaticamente privilégio e poder, pois o lugar que ocupa na estrutura capitalista de produção é de pobreza, desigualdade e exploração social. A historiadora Maria Silvia de Carvalho Franco já percebia isso para o século XIX quando estudou os homens brancos livres pobres na ordem escravocrata. Contudo, quando essa classe trabalhadora tem gênero e raça não branca, o peso estrutural da opressão e exploração é muito maior do que em relação aos trabalhadores brancos, pois se apresentam sobre suas costas o peso de mais duas estruturas além do capitalismo: o patriarcado e o racismo.

Precisamos cada vez mais complexificar as análises e fugir de binarismo e maniqueísmo do tipo HOMEM x MULHER, HETEROSSEXUAL x LGBTQA+, BRANCOS x NEGROS, BURGUESIA x PROLETARIADO. Até porque, na realidade concreta da estrutura social, temos a classe com gênero (burguesia, classe média e proletariado- homens, mulheres e LGBTQIA+); o gênero com classe (homens, mulheres e LGBTQIA+- burgueses, proletários e de classe média); a classe com raça (burguesia, proletariado e classe média- não brancos); a classe com raça e gênero (burguesia, proletariado e classe média branca e não branca, heterossexual e LGBTQIA+, homens e mulheres). Isso implica dizer não existem grupos homogêneos por simples oposição a outros igualmente constituídos como se fossem sujeitos universais em identidades generalizantes. Cada combinação entre classe, raça e gênero permite adentrar a complexidade do tecido social sem cair na superficialidade, na fragmentação e na guetificação. Se por um lado é verdade que a situação estrutural pesa muito mais sobre as mulheres negras da classe trabalhadora, explorando-as e oprimindo-as, por outro lado, também são alçados à condição de subalternos os homens negros da classe trabalhadora e os homens e mulheres brancas da classe trabalhadora. Na hierarquia dos privilégios, contudo, os homens negros pobres estão em posição de exploração de classe e opressão de raça, mas não gênero; já as mulheres brancas trabalhadoras sofrem exploração de classe e opressão de gênero, sem a opressão racial; enquanto os homens brancos trabalhadores sofrem exploração de classe, mas não podem sentir as opressões de gênero e de raça. No geral, esse conjunto complexo constitui um grande grupo subalterno e é composto pela a maioria da população do planeta explorada e oprimida, guardadas as devidas gradações hierarquizadoras.

Sendo assim, sairíamos todos ganhando politicamente se soubéssemos juntar os 99% do planeta em uma pauta revolucionária anticapitalista, antipatriarcado, antirracista, ecossocialista e laica. Até porque, como afirma Silvio Almeida, o racismo é uma estrutura e não se resume a comportamentos individuais ou funcionamentos institucionais, porque indivíduos e instituições reproduzem o racismo que organiza, distribui privilégios e opressões aos grupos com base no critério racial. Na concepção do autor citado, “além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”. (ALMEIDA, 2019, p. 50) Temos que transformar as estruturas e isso requer unidade na diversidade, lutas conjuntas sem perder as pautas específicas e movimento de rua, radical e multitudinal.

Evidentemente que as falas negras em uma sociedade racista e herdeira do legado da escravidão são alijadas de posições hegemônicas em exercício como a produção intelectual, justamente pelo condicionamento estrutural/sistêmico, o “lugar de fala”, na terminologia usada Djamila Ribeiro. E vejo com muita alegria que intelectuais negros sejam alçados cada vez mais à condição de escrever grandes livros, fazer grandes pesquisas e falar muito para toda a sociedade. Aliás, já temos bons nomes no Brasil, como Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Clovis Moura, Luís Gama, Carolina Maria de Jesus, embora ainda seja um número pequeno, porém, em crescimento. Isso não dispensa a fala de grandes intelectuais brancos de esquerda como Florestan Fernandes e Roger Bastide que produziram obras clássicas sobre a questão de raça/classe para o Brasil Capitalista. Ou de um Alberto Banal, intelectual branco, europeu que coordena um trabalho importantíssimo no processo de titulação das terras quilombolas paraibanas.

Conforme aponta Sílvio Almeida (2019, p. 110), “o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real. O fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder, e muito menos que a população negra esteja no poder”. Primeiro, porque uma pessoa negra “empoderada” pode não significar um representante que verbalize as demandas por igualdade racial em relação ao seu grupo de pertença; segundo, porque, mesmo havendo certo compromisso entre as pessoas negras em espaço de poder para com seu grupo racial, isso não significa que elas terão poder necessário para transformar as estruturas políticas e econômicas que se servem do racismo para promover e reproduzir as desigualdades. Nesse particular, acredito que a teoria marxista e o movimento negro ganham, reciprocamente, se dialogar na perspectiva estrutural e materialista, no plano teórico e político. O primeiro, incorporando com força a questão racial na sua teoria e prática política e o segundo, se abrindo para a leitura racial em chaves do materialismo histórico e dialético e emparedando a luta antirracista com a anticapitalista e a luta de raças marchando nas mesmas ruas com a luta de classes.

 Isso implica que ativistas brancos proletários, não sejam jogados fora da luta antirracista, pois o gueto e a fragmentação servem ao sistema. Desde que brancos ou não brancos, falem, gritem, lutem para derrubar o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Eu estou nessa linha. E pretendo continuar falando sobre a questão racial, apesar dos equívocos de quem quer me fazer calar.